MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Open Energy: A revolução dos dados no mercado de energia elétrica e o papel da regulação

Open Energy: A revolução dos dados no mercado de energia elétrica e o papel da regulação

Brenda Beltramin

O texto explora o Open Energy no Brasil, destacando avanços regulatórios, desafios de proteção de dados e oportunidades para o mercado livre de energia.

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Atualizado em 23 de dezembro de 2024 11:23

A abertura da segunda fase da consulta pública 28/23 da ANEEL1 - Agência Nacional de Energia Elétrica sinaliza os primeiros passos do Open Energy no Brasil.

A partir de janeiro de 2024, todos os consumidores de energia elétrica pertencentes ao Grupo A têm a possibilidade de migrar para o Ambiente Contratual Livre - ou seja, escolher seu fornecedor2. A mudança foi promovida pela portaria 50/22 do Ministério de Minas e Energia e permite que hotéis, restaurantes, supermercados e comércios possam aderir ao mercado livre de energia elétrica independentemente de consumo mínimo, critério que antes impedia a participação desses consumidores nesse mercado3.

A mencionada consulta pública da ANEEL refere-se aos ajustes nas regras e procedimentos de comercialização de energia elétrica elaborados pela CCEE - Câmara de Comercialização de Energia Elétrica - ajustes esses que têm por objetivo facilitar a migração dos novos consumidores ao mercado livre. O Open Energy ganhou destaque com a nota técnica 52/24-SGM4-STD5/ANEEL6, que antecedeu a abertura da consulta pública mencionada, na qual os órgãos defendem a criação de uma plataforma aberta para compartilhamento dos dados dos consumidores entre diferentes agentes no mercado.

A medida representa o primeiro passo para o Open Energy no Brasil.

O que é Open Energy?

O Open Energy propõe que os diferentes agentes do mercado de energia tenham acesso a dados dos consumidores, de forma que possam propor diferentes soluções para que o consumidor escolha o fornecedor que melhor atende às suas necessidades.

O modelo estimula a competição, o que é particularmente importante no cenário brasileiro, cujo mercado de energia elétrica teve sua abertura há apenas 30 anos7. A disponibilização de determinadas informações dos consumidores é, sem dúvida, um elemento que favorizaria os operadores do mercado livre de energia.

A noção de disponibilização das informações dos consumidores de um determinado setor a outros operadores setoriais não é recente. No Brasil, o Open Finance já é realidade: O BC organiza e regulamenta o compartilhamento dos dados dos usuários entre diferentes instituições financeiras8.

O Open Energy já é adotado em outros países, e traz benefícios tanto para os usuários quanto para o mercado. No entanto, sua implementação no Brasil deve vir acompanhada de uma regulamentação adequada para garantir a devida proteção dos dados - notadamente pessoais - dos consumidores.

Cenário regulatório

A discussão sobre o compartilhamento dos dados dos consumidores na segunda fase da consulta pública 28/23 iniciou-se com a proposta da CCEE de suprimir o inciso III do art. 16-A da REN ANEEL 1.011/22, que previa acesso às informações "àqueles a quem os responsáveis pelas unidades consumidoras concedam autorização de acesso às respectivas informações"9

A CCEE defende que "a publicidade dos dados para terceiros já está prevista em PdC - procedimentos de comercialização, mas a proposta é dar publicidade para todos os agentes e não ser "seletivo"". Argumenta, ainda, que

"É improvável que consumidor do varejo queira entrar em sistemas ou mandar email para CCEE permitindo agentes específicos acessar seus dados do ACL - Ambiente Contratual Livre."

Na nota técnica 52/2024-SGM-STD/ANEEL, a ANEEL, a SGM e a STD defendem a criação de uma plataforma para o compartilhamento dessas informações.

"Como os contratos não são perpétuos e há liberdade de troca de fornecedor, deve ser possível ao consumidor compartilhar suas informações com futuros pretendentes ao fornecimento, de modo que as estimativas e negociações sigam um fluxo adequado e baseado em informações corretas. Fora dessa hipótese, as informações devem ser adequadamente salvaguardadas e protegidas."

A abertura do mercado livre de energia elétrica, acompanhada pela expectativa de um alto volume de migrações de consumidores que eram cativos até janeiro de 2024, acendeu as discussões sobre a criação de um mercado competitivo e que favoreça o consumidor.

Por outro lado, o compartilhamento de dados de consumo exige uma regulação adequada, que seja capaz de assegurar a segurança e o uso razoável desses dados. Os ensinamentos do Open Finance mostram que os pré-requisitos para a implementação desse tipo de plataforma incluem uma regulação específica, que adentre nos aspectos técnicos de segurança e proteção dos dados10.

Com o resultado da segunda fase da consulta pública, teremos um vislumbre sobre a percepção dos agentes em relação ao Open Energy e sua possível estruturação no mercado brasileiro.

Experiência europeia

Na UE, o Data Act11, que será implementado até setembro de 2025, tem como uma de suas premissas facilitar o acesso a dados em setores de interesse público. A ideia é que agentes desses setores possam utilizar os dados disponíveis para aprimorar a prestação dos serviços, em última instância favorecendo os consumidores.

O GDPR - General Data Protection Regulation já previa o direito à portabilidade dos dados pessoais (ou seja, aqueles vinculados a uma pessoa física)12. No entanto, esse direito depende de consentimento específico para compartilhamento com cada empresa. Além disso, o setor de energia europeu enfrenta um problema de interoperabilidade de sistemas, o que dificulta a utilização desse direito13.

É esperado que o novo Data Act ajude a promover o Open Energy na Europa, já que a legislação propõe regras gerais para compartilhamento de dados entre diferentes agentes que são aplicáveis a todos os setores. Dentre essas regras, a regulação reitera os dispositivos do GDPR que determinam que os agentes devem possuir uma base legal que respalde o compartilhamento e o uso dos dados pessoais. Em diversos casos, essa base legal será, por exclusão, o consentimento do consumidor.

Questões de proteção de dados pessoais no setor de energia

A preocupação das autoridades com o uso de dados pessoais no Open Energy vem a calhar em um momento de transformação tecnológica no setor de energia elétrica. A substituição dos medidores tradicionais pelos medidores inteligentes é incentivada na Europa desde a diretiva 09/72/EC14. No Brasil, a ANEEL também tem promovido o uso dos medidores inteligentes e diversas concessionárias de distribuição já estão implementando essas novas ferramentas, mas ainda aos consumidores do grupo A15.

Os medidores inteligentes coletam uma quantidade muito maior de informações sobre o consumo de um estabelecimento. Essa informação é mais detalhada (descreve o consumo de forma mais granular), permitindo que empresas do setor utilizem esses dados para aumentar a eficiência na prestação do serviço, reduzir custos operacionais e responder mais rapidamente a falhas na rede.

No entanto, não podemos ignorar a sensibilidade das informações coletadas por medidores inteligentes. Com dados tão detalhados sobre o consumo de energia, é possível determinar os horários em que um estabelecimento (ou residência) está desocupada e até mesmo inferir hábitos específicos de seus moradores (por exemplo, quando dormem ou utilizam eletrodomésticos, seus dispositivos de entretenimento preferidos e até mesmo o uso de aparelhos de saúde).

Esses dados, caso aplicados a uma residência (tendência para um futuro próximo), permitem uma visão acurada do perfil dos moradores, de suas atividades rotineiras e seus hábitos. Nesse contexto, o acesso aos dados gerados pelos medidores inteligentes não pode ocorrer de forma irrestrita. A regulação sobre disponibilização de dados pessoais no mercado livre de energia deve estabelecer limites e requisitos para o compartilhamento e utilização desses dados, cuja natureza expõe aspectos privados da vida dos consumidores.

Em relação ao uso de dados de medidores inteligentes especificamente, as boas práticas europeias recomendam o enquadramento dos tratamentos desses dados pessoais em uma das hipóteses de tratamento previstas na legislação de proteção de dados pessoais. Por sinal, o tratamento dos dados para atividades que excedam o fornecimento de energia, o faturamento, a detecção de fraude e a preparação de dados agregados necessários para a manutenção eficiente de energia da rede, exige o consentimento do titular16.

A elaboração de relatório de impacto à proteção de dados pessoais também é uma boa prática, sendo obrigatória em alguns dos países da UE17. Esse documento é exigido no Brasil, pela lei 13.709/18 - LGPD, para todos os tratamentos de dados pessoais que possam representar alto risco18.

O cenário brasileiro: A intersecção entre a regulação do Open Energy e a proteção de dados pessoais

No Brasil, atualmente, os consumidores do grupo A (que são os grandes consumidores conectados em alta e média tensão) são pessoas jurídicas (fábricas, estabelecimentos comerciais etc.) e os dados relativos a seu consumo não são considerados dados pessoais pela LGPD.

Mas num futuro próximo, os consumidores de baixa tensão com qualquer volume de consumo, também poderão participar do mercado livre de energia. Nesse cenário, um eventual compartilhamento dos dados de consumo dos consumidores precisaria ser alinhado à LGPD e acompanhado de boas práticas setoriais visando a segurança, a privacidade e a proteção dos dados do consumidor.

Por essa razão, é importante que o modelo de compartilhamento em desenvolvimento pela CCEE e pela ANEEL preveja - by design - a necessidade de respaldar tais compartilhamentos com as restrições e a proteção trazida pela LGPD. Com efeito, é melhor criar regras sólidas e duradouras no momento inicial de desenho do modelo regulatório do Open Energy que permitam acomodar a evolução da abertura do mercado do que reformular todo o modelo num segundo momento, com os custos que tal ação pode gerar. 

Para casos que excedam a prestação regular dos serviços, é provável que seja necessário um consentimento específico e direcionado. Um modelo pouco específico de consentimento poderia sujeitar os consumidores ao uso indevido de seus dados (por exemplo, para fins de marketing e propaganda sem sua autorização) e tornar o modelo do Open Energy um incômodo, ao invés de uma vantagem.

Já que os modelos de compartilhamento de dados dependem da confiança do consumidor para autorizar ou não o compartilhamento de seus dados, impor limites à utilização desses dados influencia diretamente a reputação do modelo de Open Energy do país.

Conclusão

O Open Energy é uma proposta benéfica para o setor elétrico como um todo. A criação de um mercado com igual acesso à informação por diferentes agentes econômicos fomenta a competição e a inovação e beneficia os consumidores finais, que podem escolher o serviço que melhor atende suas necessidades. No entanto, um desenho regulatório adequado e a participação ativa dos consumidores são pré-requisitos para que haja benefícios nessa iniciativa.

Assim como no Open Finance19, o Brasil tem potencial para ser pioneiro na implementação do Open Energy. Com a publicação do resultado da segunda fase da consulta pública 28/23, novos caminhos começam a ser delineados para o futuro da comercialização de energia elétrica no país.

_______________

1 https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/noticias/2024/regras-de-comercializacao-varejista-aneel-promove-consulta-publica-para-ajustes-em-tres-pontos-referentes-a-nova-norma

2 https://www2.aneel.gov.br/cedoc/ren20211000.html

3 https://www.gov.br/mme/pt-br/acesso-a-informacao/legislacao/portarias/2022/portaria-normativa-n-50-gm-mme-2022.pdf

4 Superintendência de Regulação dos Serviços de Geração e do Mercado de Energia Elétrica.

5 Superintendência de Regulação dos Serviços de Transmissão e Distribuição de Energia Elétrica.

6 https://antigo.aneel.gov.br/web/guest/consultas-publicas?p_p_id=participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet&p_p_lifecycle=2&p_p_state=normal&p_p_mode=view&p_p_cacheability=cacheLevelPage&p_p_col_id=column-2&p_p_col_pos=1&p_p_col_count=2&_participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet_ideDocumento=53019&_participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet_tipoFaseReuniao=fase&_participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet_jspPage=%2Fhtml%2Fpp%2Fvisualizar.jsp#:~:text=decis%C3%B5es%20da%20Ag%C3%AAncia.-,NOTA%20T%C3%89CNICA%20N%C2%BA%2052%2F2024%E2%80%93SGM%2DSTD%2FANEEL,Consulta%20P%C3%BAblica%20n%C2%BA%2028%2F2023.&text=1

7 JUNIOR, Fernando Antonio Santiago. A Regulação do Setor Elétrico Brasileiro. 2010. Cap. I.

8 https://abraceel.com.br/wp-content/uploads/post/2024/03/NT-neel-Resultado-da-CP-do-aprimoramento-da-comercializacao-varejista.pdf

9 https://abraceel.com.br/wp-content/uploads/post/2024/03/NT-neel-Resultado-da-CP-do-aprimoramento-da-comercializacao-varejista.pdf

10 https://openfinancebrasil.org.br/atos-normativos/?cookie=true

11 https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/data-act

12 https://gdpr-info.eu/art-20-gdpr/

13 https://iea.blob.core.windows.net/assets/afebed83-db6b-4e38-8fe7-4ed4f506a742/ElectricityGridsandSecureEnergyTransitions.pdf

14 https://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2009:211:0055:0093:en:PDF

15 "Avaliação dos sistemas de medição para transição energética e modernização no segmento de distribuição"; https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/noticias/2022/aneel-apresenta-resultados-em-eventos-internacionais-sobre-digitalizacao-e-transicao-energetica

16 https://www.edps.europa.eu/data-protection/our-work/publications/opinions/smart-metering-systems_en

17 https://op.europa.eu/en/publication-detail/-/publication/a5daa8c6-8f11-4e5e-9634-3f224af571a6/language-en

18 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm

19 https://exame.com/future-of-money/brasil-liderando-mundialmente-open-finance-criadora-ranking/

Brenda Beltramin

Brenda Beltramin

Advogada em Direito Digital e Proteção de Dados Pessoais com mais de três anos de experiência na área; CIPM/IAPP; Formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca