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Securitização de recebíveis no Estado do Rio de Janeiro: Oportunidade fiscal ou desafio futuro?

A Alerj aprovou o PL 3.980/24, que regulamenta a securitização de recebíveis no Rio de Janeiro, buscando melhorar a arrecadação e a liquidez financeira.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Atualizado às 13:20

No último dia 17 de dezembro, a Alerj - Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro aprovou o PL - Projeto de Lei 3.980/24, que estabelece diretrizes para a realização de operações de securitização de recebíveis no Estado. O texto já foi encaminhado para a sanção ou veto do governador.

A proposta materializa a autorização legislativa, no âmbito estadual, para o início dessas operações1, em linha com o disposto na LC 208/242. Esta última regula o tema no âmbito federal, conferindo maior segurança jurídica às unidades federativas que decidem adotar essa prática.

O PL fluminense, ao mencionar expressamente o objetivo de melhorar a arrecadação e proporcionar liquidez financeira ao Estado, autoriza a cessão onerosa de direitos originados de créditos tributários e não tributários, inclusive quando inscritos em dívida ativa, para pessoas jurídicas de Direito Privado ou a fundos de investimento regulamentados pela CVM - Comissão de Valores Mobiliários. Isto, reproduzindo alguns dispositivos da LC 208/24, com observância à simetria no plano estadual, e inovando em outros pontos. 

A proposta especifica que a cessão dos direitos creditórios - que consiste em transferir direitos sobre recebíveis do Estado a investidores, possibilitando a antecipação de recebimentos por meio da emissão e da comercialização de títulos lastreados em seus créditos - deve respeitar uma série de condições. Tudo isto visando assegurar que os direitos creditórios cedidos permaneçam atrativos e confiáveis para os investidores.

Dentre as principais condições elencadas no texto que seguiu para o governador do Estado, estão a manutenção das garantias e dos privilégios associados ao crédito cedido e a preservação dos critérios de atualização ou correção de valores bem como das condições de pagamento pactuadas originalmente entre a Fazenda Pública ou o órgão da Administração Pública e o devedor ou contribuinte. 

O ponto de maior destaque no PL - que não foi previsto no âmbito Federal pela LC 208/24 e, exatamente por isso, pode gerar questionamentos acerca da eventual extrapolação da matéria pelo legislador fluminense - é a permissão para promessa de cessão futura de direitos creditórios referentes a créditos ainda não constituídos na data da operação original. Isto porque a lei Federal, ao delimitar o objeto das operações de securitização é clara no sentido de que os créditos devem estar constituídos e reconhecidos pelo devedor ou contribuinte, o que, inclusive, também foi estranhamente repetido pelo PL encaminhado ao governador do Estado3

Além disso, o projeto, em linha com as diretrizes Federais, preserva a prerrogativa - diga-se, indelegável - da Fazenda Pública ou do órgão da Administração Estadual de continuar a realizar cobranças judiciais e extrajudiciais relativas às dívidas originais, mesmo após a cessão dos direitos creditórios. Além disso, considera as cessões de direitos creditórios realizada nos termos propostos no PL como operações de venda definitiva de patrimônio público. 

O projeto também determina que, no mínimo, 50% da receita de capital oriunda da venda de ativos por meio das operações seja destinada a despesas relacionadas ao regime de previdência social. Essa medida visa atender às crescentes demandas por equilíbrio financeiro nos sistemas previdenciários estaduais, frequentemente pressionados por déficits. O restante do montante arrecadado deverá obrigatoriamente ser alocado para despesas com investimentos, buscando promover o desenvolvimento do Estado. 

Uma das limitações importantes do PL é a proibição de que as operações de securitização sejam realizadas por instituições financeiras controladas pelo ente federado cedente. Nesse contexto, os bancos públicos só poderão atuar como prestadores de serviços na estruturação financeira das operações. Essa restrição busca evitar conflitos de interesse e garantir maior isenção nos processos.

Ainda, estabelece que as operações não poderão ocorrer nos 90 dias que antecedem o término do mandato do chefe do Poder Executivo estadual, salvo nos casos em que o pagamento integral da cessão dos direitos creditórios ocorra após essa data. Essa previsão visa prevenir o uso eleitoreiro da securitização e proteger a sustentabilidade financeira do Estado. 

Também foram elencadas medidas para garantir que o processo ocorra dentro dos padrões de legalidade exigidos, como a necessidade de garantir a transparência em todas as etapas, com a publicação de relatórios mensais destinados ao público e aos órgãos de controle. Também estão previstas auditorias periódicas para verificar a regularidade das operações. 

Embora a proposta traga uma alternativa inovadora para a gestão financeira do Estado, também levanta preocupações e não está isenta de críticas, especialmente acerca do famigerado deságio no valor dos ativos cedidos e a possibilidade de promessa de cessão futura de direitos creditórios referentes a créditos ainda não constituídos na data da operação, o que não foi previsto pelo legislador Federal. 

Também seria possível argumentar - de forma pessimista - que a dependência de receitas futuras poderia comprometer a sustentabilidade orçamentária a longo prazo, caso as previsões de arrecadação não se concretizassem. Além disso, há o risco de que eventuais problemas de execução prejudiquem a confiança dos investidores, impactando negativamente futuras operações.

Em síntese, o PL 3.980/24 está prestes a se tornar um marco na administração financeira do Estado do Rio de Janeiro, uma vez que, se sancionado nos termos atuais, pode ampliar a atratividade dos créditos no mercado, mas, ao mesmo tempo, pode trazer insegurança jurídica relacionada ao tema dos créditos ainda não constituídos. No entanto, sua eficácia dependerá não apenas da implementação técnica, mas, também, de um acompanhamento rigoroso para mitigar riscos e assegurar os benefícios esperados para o Estado e sua população.

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1 Mesmo após a aprovação e publicação da Lei estadual, para que seja efetuada a cessão dos direitos creditórios, será necessária - se for mantido o disposto no inciso VI do § 1º do art. 172-A, a ser incluído na Lei do Estado do Rio de Janeiro nº 287/1979 - a autorização prévia do Governador do Estado ou autoridade administrativa que receba a delegação dessa competência.

2 A LC 208/2024, ao incluir o art. 39-A, caput, na Lei 4.320/1964, exigiu lei específica autorizativa aos entes que optassem pela realização de operações de securitização, nos seguintes termos: "A União, o Estado, o Distrito Federal ou o Município poderá ceder onerosamente, nos termos desta Lei e de lei específica que o autorize, direitos originados de créditos tributários e não tributários, inclusive quando inscritos em dívida ativa, a pessoas jurídicas de direito privado ou a fundos de investimento regulamentados pela Comissão de valores Mobiliários (CVM)". (grifou-se). 

3 De acordo com o inciso V do § 1º do art. 39-A, acrescido à Lei nº 4.320/1964 pela LC nº 208/2024: "§ 1º Para fins do disposto no caput, a cessão dos direitos creditórios deverá: V - abranger apenas o direito autônomo ao recebimento do crédito, assim como recair somente sobre o produto de créditos já constituídos e reconhecidos pelo devedor ou contribuinte, inclusive mediante a formalização de parcelamento;" (grifou-se). Esta mesma redação consta no PL nº 3.980/2024, que pretende acrescentar à Lei nº 287/1979, do Estado do Rio de Janeiro, o art. 172-A, § 1º, V. 

Ana Luiza Moerbeck

Ana Luiza Moerbeck

Mestra em Direito da Regulação na Fundação Getúlio Vargas. Professora. Advogada no Bocater Advogados.

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