Mudança climática e moradia digna: Os desafios frente aos desastres socioambientais
Os desastres climáticos são um dos maiores desafios para a garantia da moradia digna no Brasil e no mundo.
quinta-feira, 19 de dezembro de 2024
Atualizado às 14:31
A intensificação das mudanças climáticas tem gerado um aumento significativo dos desastres socioambientais. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas de 2021, o aumento da temperatura global intensifica o ciclo hidrológico, contribuindo para precipitações mais intensas e prolongadas, que impactam diretamente as áreas urbanas densamente povoadas.
Nas últimas décadas, o aumento da frequência e intensidade desses desastres tornou-se uma realidade preocupante, com impactos sociais e ambientais de grande magnitude. Esses eventos afetam profundamente as populações mais vulneráveis, especialmente aquelas que vivem em condições de moradia precária, frequentemente sem infraestrutura adequada para absorver tais impactos.
Nesse contexto, o direito à dignidade da pessoa humana e à moradia adequada emergem como temas fundamentais, pois, os desastres socioambientais frequentemente resultam em violação ao direito à moradia, colocando em risco a dignidade dos indivíduos.
Pois bem.
O conceito de dignidade da pessoa humana é um dos pilares dos direitos humanos modernos, consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Em seu art. 1º afirma que "todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos". No Brasil, a dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental da CF/88, prevista no art. 1º, inciso III.
Esse princípio orienta a aplicação de diversos direitos e é considerado um fundamento para a promoção do bem-estar social. Além disso, o princípio é reafirmado em tratados internacionais, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), dos quais o Brasil é signatário. Com efeito, a dignidade da pessoa humana demanda uma resposta estatal que garanta proteção, assistência e condições adequadas de sobrevivência, para que as pessoas afetadas possam recuperar-se dos eventos e restaurar suas condições de vida.
O direito à moradia, por sua vez, é igualmente reconhecido como direito humano fundamental e, também, encontra previsão na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em seu art. 25, garante o direito a um padrão de vida adequado. Esse direito também é reforçado no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que destaca a moradia adequada como essencial para a dignidade da pessoa. No Brasil, a CF/88 assegura o direito à moradia como direito social, no art. 6º e a lei 11.124/05 institui o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, que visa a promover políticas de habitação para a população de baixa renda.
Em cenários de desastres socioambientais, no entanto, o direito à moradia é frequentemente violado devido a deslizamentos e enchentes, que destroem moradias e deixam muitas famílias desabrigadas, evidenciando a necessidade de políticas públicas eficazes de habitação e resposta rápida em emergências.
Como exposto, a relação entre o direito à moradia e a dignidade da pessoa humana é evidente, pois uma moradia segura e adequada é um dos elementos essenciais para assegurar uma vida digna. Em situações de desastres, o impacto na moradia afeta diretamente a dignidade dos indivíduos, isso porque, o deslocamento forçado, a perda de bens e a falta de segurança habitacional comprometem não apenas o bem-estar físico, mas também psicológico e social das pessoas.
Existe, portanto, uma forte relação entre o direito à moradia e a dignidade humana diante das consequências dos desastres socioambientais causados pela mudança climática, à luz do ordenamento jurídico e das obrigações do Estado para garantir a proteção dessas pessoas.
Recentemente, vários desastres socioambientais ilustraram a fragilidade das populações afetadas e a necessidade de políticas públicas que garantam a proteção dos direitos à moradia e à dignidade humana.
Um dos casos emblemáticos recentes no Brasil foi o desastre socioambiental em São Sebastião em 2023, causado por chuvas extremamente intensas e concentradas, um reflexo das mudanças climáticas que aumentam a frequência e severidade de eventos extremos no Brasil e no mundo. A geografia da região, com áreas montanhosas e uma ocupação urbana densa e desordenada em encostas e regiões de margens de rios, agravou o risco de deslizamentos e enchentes.
Além disso, o crescimento urbano desordenado, sem infraestrutura adequada, expôs ainda mais as populações vulneráveis que, por falta de alternativas, ocupavam áreas de risco. Falhas na política habitacional e na regulamentação ambiental também contribuíram para a formação de um cenário de grande vulnerabilidade
Mais recentemente, em 2024, o Estado do Rio Grande do Sul enfrentou uma das maiores inundações de sua história, afetando várias cidades dentre elas Muçum e Roca Sales e até a capital Porto Alegre. Atingidas por enchentes e deslizamentos causados por fortes chuvas, essas regiões contabilizaram centenas de casas destruídas e milhares de desabrigados que ainda necessitam de ajudar para sua reestruturação.
A tragédia expôs a precariedade das habitações localizadas em áreas de risco e revelou a insuficiência de políticas preventivas e de infraestrutura capazes de mitigar os efeitos de eventos climáticos extremos. Em meio à perda de moradias, famílias inteiras viram-se deslocadas e dependentes de abrigos temporários, em uma situação que ameaçou diretamente sua dignidade.
Ambos os casos reforçam a urgência de uma política habitacional que contemple o planejamento urbano e a adaptação das áreas de moradia aos desafios impostos pelas mudanças do clima.
Fora do Brasil, as recentes enchentes no leste da Espanha, especialmente na região de Valência, que deixaram mais de 200 mortos, também expuseram a vulnerabilidade das áreas urbanas e destacaram a necessidade de medidas eficazes para proteger o direito à moradia digna em cenários de desastres climáticos. A destruição de moradias e a perda de infraestruturas básicas apontam para a urgência de políticas habitacionais que considerem o aumento da frequência e intensidade desses eventos.
Fica evidente que há uma necessidade premente de intervenção estatal e que nos casos acima expostos, as falhas nas políticas de prevenção e reconstrução de forma geral, foram amplamente expostas. Os casos narrados servem como um alerta para a importância de políticas de resiliência e infraestrutura em áreas de risco, a fim de proteger esses direitos fundamentais.
Assim, o Estado, deve atuar para proteger esses direitos por meio de políticas preventivas efetivas e de resposta a desastres, além de garantir a reconstrução de habitações e a assistência às populações afetadas.
A implementação de políticas de adaptação e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas também se mostra crucial para assegurar esses direitos a longo prazo. Além disso, políticas de regularização fundiária e de planejamento urbano sustentável são cruciais para garantir a segurança jurídica e a proteção do direito à moradia em áreas propensas a desastres naturais.
Preocupados com a situação climática e repercussão dos desastres socioambientais correspondentes, vários organismos internacionais se reuniram em 2024 para debater medidas mais efetivas para a solução da problemática.
O WUF12 - Fórum Urbano Mundial, realizado no Cairo, Egito, e promovido pelo ONU-Habitat, abordou a interconexão entre assentamentos humanos, urbanização sustentável e a necessidade urgente de respostas integradas para as crises habitacionais agravadas pelas mudanças climáticas e pela urbanização desordenada.
O evento celebrou o tema "Tudo Começa em Casa: Ações Locais para Cidades e Comunidades Sustentáveis", que visa melhorar as condições de vida e garantir moradias dignas e resilientes para as comunidades vulneráveis, com ênfase em estratégias locais. Foram discutidas soluções voltadas para iniciativas locais, bem como modelos de urbanização sustentável para soluções imediatas e de longo prazo. Além disso, foram compartilhadas práticas inovadoras, incluindo o uso de tecnologias e soluções baseadas na natureza para mitigar os impactos das mudanças climáticas nas áreas urbanas, apontando caminhos viáveis para a transformação dos assentamentos urbanos em contextos de crise.
Já a COP29 - Conferência Climática, realizada em Baku, Azerbaijão, em novembro de 2024, destacou a necessidade de o fortalecimento de políticas globais voltadas à mitigação e adaptação às mudanças climáticas, com especial atenção para essas questões em países vulneráveis.
Entre as medidas discutidas, está o fortalecimento do fundo para combate à mitigação da crise do clima. Houve muitas críticas em relação ao valor acordado, pois ficou muito aquém do previsto. Ficou acordado também que o Brasil sediará a próxima edição do evento em novembro de 2025, na cidade de Belém do Pará.
Tais iniciativas reforçam o compromisso global de limitar o aquecimento global a 1,5ºC, em conformidade com o Acordo de Paris, ao mesmo tempo em que promovem a segurança habitacional e a prevenção de crises futuras associadas aos impactos climáticos.
Conclui-se, assim, que o aumento dos desastres climáticos representa um desafio significativo para a efetivação do direito à moradia e para a garantia da dignidade da pessoa humana, especialmente entre as populações mais vulneráveis, pois é essa parcela da população que mais sofre com as intempéries do clima.
O reconhecimento da dignidade humana e do direito à moradia como direitos fundamentais demanda que o Estado brasileiro desenvolva e implemente políticas públicas voltadas para a prevenção, preparação e resposta a esses eventos climáticos.
Ao mesmo tempo, é necessário fortalecer mecanismos de proteção social e criar alternativas habitacionais seguras para os afetados. Somente dessa forma, o Estado cumpre seu papel na promoção e proteção dos direitos humanos, assegurando que, mesmo diante de desastres, a dignidade da pessoa humana e o direito à moradia sejam preservados.
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1 Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
2 Brasil. (2005). Lei nº 11.124, de 16 de junho de 2005. Institui o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social.
3 Correio do Povo. (2023). Enchentes no Rio Grande do Sul deixam milhares desabrigados e expõem vulnerabilidades habitacionais. Correio do Povo, edição de setembro.
4 Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC). (2021). Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge University Press. https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg1/
5 IPEA. (2015). Mudanças climáticas e adaptação: políticas públicas para reduzir vulnerabilidades no Brasil. Brasília: IPEA.
6 ONU. (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos.
7 ONU. (1966a). Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
8 ONU. (1966b). Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
9 Sarlet, I. W. (2001). Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado.