Direito do arrependimento: É cabível a aplicação para as compras online de ativos virtuais, softwares e jogos?
Análise do direito de arrependimento no CDC, destacando desafios com bens digitais, NFTs e software, além de implicações legais e práticas atuais.
quarta-feira, 18 de dezembro de 2024
Atualizado às 09:34
O direito de arrependimento foi normatizado pelo art. 49 do CDC, in verbis:
Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.
Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.1
Em linhas gerais, a lei consumerista prevê a possibilidade do consumidor se arrepender de eventual compra realizada fora do estabelecimento comercial.
Vale ressaltar o contexto fático em que o CDC foi criado (em 1990), visto que se trata de legislação criada em momento anterior à popularização da internet, a qual ocorreu somente após 1994 de forma gradual.
Nos primeiros anos, a aplicação do direito de arrependimento se restringiu a compras realizadas por telefone ou a domicílio, à medida que com o crescimento do comércio eletrônico, restou clara a aplicabilidade extensiva para as compras feitas pela internet.
Atualmente, a discussão se pauta na aplicação do direito de arrependimento nos casos de compra e venda de produtos virtuais: NFTs - Tokens Não-Fungíveis, softwares, jogos, produtos expostos em ambientes virtuais, tais como Multiverso e Metaverso.
Em que pese a Fundação Procon/SP tenha se posicionado pela aplicação do direito de arrependimento para os casos de compra de NFTs, sob o argumento de que "qualquer compra fora do estabelecimento pode sim aplicar o art. 49 do CDC"2 , a situação merece maior atenção.
Incumbe ressaltar o objetivo do legislador ao criar o direito de arrependimento, o qual se pauta como uma forma de proteção do consumidor contra as práticas abusivas do comércio que visem confundir a declaração de vontade do consumidor.
Na prática, mira a possibilidade de o consumidor realizar a devolução de produtos que não foram avaliados presencialmente, motivo pelo qual podem ser entregues em condições distintas das expectativas do comprador.
Neste norte, em uma primeira análise, no tocante especificadamente aos NFTs, ressalta-se que as compras são realizadas em estabelecimento essencialmente on-line, ou seja, inexiste a possibilidade de aquisição dos produtos de forma física.
Para melhor ilustrar, os NFTs podem ser tratados como bens digitais, na medida que poderão ser adquiridos junto a lojas virtuais, os quais poderão ser utilizados tão somente na referida plataforma.
Deste modo, todo o processo é realizado virtualmente, à medida que o produto e a loja inexistem fisicamente, motivo pelo qual vale dizer que é inaplicável o direito de arrependimento, já que a aquisição ocorre dentro do estabelecimento comercial virtual3.
Adiante, cabível a análise com relação à compra de software adquirido pelo meio digital.
Na mesma medida, tem-se por necessária a análise de detalhes relativos à negociação.
Em um primeiro plano, caso o software adquirido tão somente venha a ser disponibilizado para o uso após a compra e/ou recebimento de determinado hardware, tem-se por aplicável o direito de arrependimento.
De outro lado, caso o software seja adquirido na integralidade junto à plataforma virtual e o consumidor antes da aquisição já tenha acesso ao referido produto mediante degustação gratuita, tem-se que é inaplicável o direito de arrependimento.
Vale lembrar, mais uma vez, qual é a finalidade do direito de arrependimento, conforme leciona Guilherme Magalhães Martins:
Na medida em que o consumidor, nessas condições, possui menor possibilidade de avaliar o que estava contratando, deve lhe ser assegurado o prazo de arrependimento, não só nos contratos em distância em geral - tais quais a venda porta-aporta, por telefone, reembolso postal, por fax, vídeo-texto, por prospectos etc. - como também nos contratos via internet, até mesmo pela disseminação de tais práticas, à margem de uma regulação, a partir dessas novas técnicas"4
A impossibilidade de avaliar a contratação a que se refere o nobre doutrinador acima, pauta-se no fato do consumidor não possuir acesso imediato ao produto, o que pode gerar uma insatisfação ao consumidor no recebimento de mercadoria diversa à expectativa.
Apenas para ilustrar, vale ressaltar que é possível a aplicação do direito de arrependimento às compras realizadas em loja física nos casos em que não houver entrega do produto imediatamente, conforme decisão proferida pela Primeira turma recursal do Rio Grande do Sul:
RECURSO INOMINADO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO. RELAÇÃO DE CONSUMO. COMPRA REALIZADA EM LOJA FÍSICA. PRODUTO NÃO ENTREGUE. DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL DA LOJISTA. VENDA DA MERCADORIA INEXISTENTE EM ESTOQUE. ARREPENDIMENTO MOTIVADO DO CONSUMIDOR. AUSÊNCIA DE PROVA DA PRÉVIA CIÊNCIA DO CONSUMIDOR QUANTO À INDISPONIBILIDADE DO BEM, OU CIENTIFICAÇÃO SOBRE O PRAZO DE ENTREGA. DIREITO À RESCISÃO. RESTITUIÇÃO DO VALOR PAGO, A FIM DE EVITAR ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA DO LOJISTA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO.5
Assim, a aplicação do direito do arrependimento não está ligada ao local de realização da compra, porém se o consumidor teve acesso ao produto antes da efetivação da transação.
O mesmo entendimento deve ser utilizado para aquisição de jogos on-line, à medida que será aplicável o direito de arrependimento tão somente caso de ausência de concessão de acesso ao jogo antes da compra.
Portanto, a aplicação do direito de arrependimento não está ligada à realização de compras fora do estabelecimento comercial, conforme entendimento do Procon/SP, porém está ligado à concessão de acesso ao produto antes da compra, de modo a viabilizar se o produto anunciado corresponde às expectativas do consumidor.
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1 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 26/2/2.
2 Disponível em: https://livecoins.com.br/procon-diz-que-compras-de-nftspodem-ser-devolvidas-em-ate-7-dias/. Acesso em: 26/2/24.
3 TEIXEIRA, Tarcísio. Blockchain e criptomoedas: aspectos jurídicos - 4 ed. rev. e atual - São Paulo: Editora Juspodivm, 2023, p. 274.
4 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo, 3ª ed., São Paulo: Atlas, 2016, p. 212.
5 Recurso Cível 71009879099, Primeira turma recursal cível, Turmas recursais, relator: José Ricardo de Bem Sanhudo, julgado em: 30/3/21.