O inquérito das bets e o crime de lavagem de dinheiro
A operação Integration expõe os limites entre legalidade e lavagem de dinheiro em apostas online e no jogo do bicho, provocando intensos debates jurídicos.
segunda-feira, 16 de dezembro de 2024
Atualizado em 13 de dezembro de 2024 14:54
Com a deflagração da denominada operação Integration (inquérito policial 0022884-49.2024.8.17.2001, da 12ª Vara Criminal de Pernambuco), que investiga o crime de lavagem de dinheiro proveniente de jogos ilegais - e que resultou na prisão da influenciadora Deolane Bezerra e no indiciamento do cantor Gustavo Lima -, acirraram-se as discussões sobre a legalidade das bets e, sobretudo, das movimentações financeiras que delas decorrem.
Partindo da premissa de que, tal como o jogo do bicho (art. 58 do decreto-lei 3.688/411), as apostas online também tipificariam uma contravenção penal (art. 50 do decreto-lei 3.688/412), a autoridade policial do Estado de Pernambuco considerou, dentre outras linhas de investigação, que as movimentações financeiras decorrentes das bets poderiam configurar o crime de lavagem de dinheiro, previsto no art. 1º da lei 9.613/983, que consiste em "ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal".
Acontece que, recentemente, em 25/11/24, o Ministério Público Pernambucano requereu o arquivamento parcial do inquérito, ao argumento de que as referidas apostas já se encontram legalizadas pela lei 14.790/23 e pelas alterações promovidas nos arts. 29 a 33 da lei 13.756/18, que regulam a modalidade de apostas de quota fixa baseadas em eventos esportivos e on-line. Logo, se as apostas não caracterizam contravenção penal, não haveria que se cogitar de posterior crime de lavagem de dinheiro, por ausência de infração penal antecedente.
Seguindo essa linha de raciocínio - e olhando para o lado oposto da mesma moeda -, o Ministério Público defendeu, ainda, o prosseguimento das investigações no tocante à apuração de movimentações financeiras realizadas para ocultar ou dissimular recursos provenientes do jogo do bicho, mesclando-os com valores oriundos de outras atividades empresariais (as bets, por exemplo), para conferir-lhes aparência de licitude, o que poderia - como realmente pode - vir a caracterizar não apenas o delito de lavagem, mas também o de associação criminosa (art. 288 do CP4).
Pois bem, retornando à legalidade das bets, a lei 14.790/23, em conjunto com as alterações promovidas nos arts. 29 a 33 da lei 13.756/18, instituiu e regulamentou a modalidade de apostas de quota fixa, relacionadas a eventos esportivos e on-line, autorizando os operadores do mercado a explorarem essa atividade no Brasil.
Consoante o art. 2º, inciso I, da lei 14.790/23, entende-se por aposta o ato por meio do qual se coloca determinado valor em risco, na expectativa de obtenção de um prêmio, sendo que o termo quota fixa está descrito como o "fator de multiplicação do valor apostado que define o montante a ser recebido pelo apostador, em caso de premiação, para cada unidade de moeda nacional apostada" (art. 2º, inciso II, da mesma lei5).
O art. 29, § 1º, da lei 13.756/18, por sua vez, conceitua aposta de quota fixa como o sistema de apostas relativas a eventos reais ou virtuais, no qual se define, no momento da efetivação da aposta, quanto o apostador poderá ganhar caso acerte seu prognóstico.
Socorrendo-se dos citados dispositivos, e invocando também o art. 3º da lei 14.790/236, que prevê que "as apostas de quota fixa (...) poderão ter por objeto I - eventos reais de temática esportiva; ou II - eventos virtuais de jogos on-line", o Ministério Público Pernambucano pontuou que o legislador, ao conceituar e regular as apostas, acabou por derrogar o art. 50 do decreto-lei 3.688/41, assim redigido:
"Art. 50. Explorar ou estabelecer jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento ou não de entrada, constitui crime, com pena de prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos móveis e objetos de decoração do local.
(...)
§ 3º Consideram-se jogos de azar:
a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusivamente ou principalmente da sorte;
b) apostas em corridas de cavalos fora de hipódromos ou locais autorizados;
c) apostas em qualquer outra competição esportiva".
Em outros termos, segundo o Ministério Público, a regulamentação das bets teria importado em abolitio criminis em relação às apostas vinculadas a competições esportivas, as quais, até então, permaneciam vedadas por tipificarem a contravenção de jogos de azar.
De tal modo, pugnou o Parquet pelo arquivamento da investigação, especificamente quanto ao crime de lavagem de dinheiro decorrente de apostas esportivas, devido à ausência de justa causa para o oferecimento de denúncia, em virtude da atipicidade da conduta.
Com efeito, independentemente das controvérsias morais, religiosas, psíquicas, econômicas e sociais que possam pairar sobre os jogos de apostas, a realidade é que, hoje, as bets estão permitidas e reguladas pelo legislador pátrio, sendo passíveis, inclusive, de tributação, por meio do imposto de renda (art. 31 da lei 13756/187) e da cobrança de "Taxa de Fiscalização" (art. 32 da mesma lei8). A despeito da existência de questionamentos sobre a legitimidade dessa arrecadação, tendo em vista possível ocorrência de bis in idem tributário sobre os prêmios obtidos, o fato é que o Brasil, enfim, reconheceu a realidade e, mais do que isso, a legalidade desse tipo de aposta, que, por isso, deixou de configurar a contravenção penal do art. 50 do decreto-lei 3.688/41.
Portanto, parece-nos acertada a manifestação ministerial que afastou a hipótese de lavagem de dinheiro envolvendo recursos financeiros oriundos das bets, dada a atipicidade da conduta antecedente.
De outro giro, a conclusão alcançada não impede a ocorrência do delito de lavagem quando valores advindos de condutas ilícitas estiverem mesclados com recursos resultantes das bets, ou quando as apostas forem utilizadas pelos operadores e empresas parceiras justamente para ocultar ou dissimular dinheiro obtido a partir de infrações penais anteriores (como o jogo do bicho), valendo, neste caso, destacar o cuidado que teve o legislador ao dispor, no art. 25 da lei 14.790/23, que "O agente operador de apostas deverá, na forma estabelecida pela regulamentação do Ministério da Fazenda, implementar procedimentos de: I - análise das apostas por meio de mecanismos de monitoramento e de seleção, com o objetivo de caracterizá-las ou não como suspeitas de lavagem de dinheiro e de financiamento do terrorismo; II - comunicação ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) das operações que apresentarem fundada suspeita de lavagem de dinheiro e de financiamento ao terrorismo".
Tecidas essas considerações, resta-nos, agora, aguardar a conclusão e a finalização do inquérito, no curso do qual os conceitos aqui debatidos deverão ser ainda bastante abordados, e que, por sua relevância e ineditismo, já despontou como um importante paradigma para operadores, apostadores e juristas que se debruçam sobre o tema.
__________
1 Art. 58. Explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar qualquer ato relativo à sua realização ou exploração:
Pena - prisão simples, de quatro meses a um ano, e multa, de dois a vinte contos de réis.
Parágrafo único. Incorre na pena de multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis, aquele que participa da loteria, visando a obtenção de prêmio, para si ou para terceiro.
2 Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele:
Pena - prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis e objetos de decoração do local.
§ 1º A pena é aumentada de um terço, se existe entre os empregados ou participa do jogo pessoa menor de dezoito anos.
§ 2o Incorre na pena de multa, de R$ 2.000,00 (dois mil reais) a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), quem é encontrado a participar do jogo, ainda que pela internet ou por qualquer outro meio de comunicação, como ponteiro ou apostador.
§ 3º Consideram-se, jogos de azar:
a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte;
b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas;
c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva.
§ 4º Equiparam-se, para os efeitos penais, a lugar acessível ao público:
a) a casa particular em que se realizam jogos de azar, quando deles habitualmente participam pessoas que não sejam da família de quem a ocupa;
b) o hotel ou casa de habitação coletiva, a cujos hóspedes e moradores se proporciona jogo de azar;
c) a sede ou dependência de sociedade ou associação, em que se realiza jogo de azar;
d) o estabelecimento destinado à exploração de jogo de azar, ainda que se dissimule esse destino.
3 Art. 1º. Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.
4 Art. 288. Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Parágrafo único. A pena aumenta-se até a metade se a associação é armada ou se houver a participação de criança ou adolescente.
5 Art. 2º Para fins do disposto nesta Lei, considera-se:
I - aposta: ato por meio do qual se coloca determinado valor em risco na expectativa de obtenção de um prêmio;
II - quota fixa: fator de multiplicação do valor apostado que define o montante a ser recebido pelo apostador, em caso de premiação, para cada unidade de moeda nacional apostada;
III - apostador: pessoa natural que realiza aposta;
IV - canal eletrônico: plataforma, que pode ser sítio eletrônico, aplicação de internet, ou ambas, de propriedade ou sob administração do agente operador de apostas, que viabiliza a realização de aposta por meio exclusivamente virtual;
V - aposta virtual: aquela realizada diretamente pelo apostador em canal eletrônico, antes ou durante a ocorrência do evento objeto da aposta;
VI - aposta física: aquela realizada presencialmente mediante a aquisição de bilhete em forma impressa, antes ou durante a ocorrência do evento objeto da aposta;
VII - evento real de temática esportiva: evento, competição ou ato que inclui competições desportivas, torneios, jogos ou provas, individuais ou coletivos, excluídos aqueles que envolvem exclusivamente a participação de menores de 18 (dezoito) anos de idade, cujo resultado é desconhecido no momento da aposta e que são promovidos ou organizados:
a) de acordo com as regras estabelecidas pela organização nacional de administração do esporte, na forma prevista na Lei nº 14.597, de 14 de junho de 2023 (Lei Geral do Esporte), ou por suas organizações afiliadas; ou
b) por organizações de administração do esporte sediadas fora do País;
VIII - jogo on-line: canal eletrônico que viabiliza a aposta virtual em jogo no qual o resultado é determinado pelo desfecho de evento futuro aleatório, a partir de um gerador randômico de números, de símbolos, de figuras ou de objetos definido no sistema de regras;
IX - evento virtual de jogo on-line: evento, competição ou ato de jogo on-line cujo resultado é desconhecido no momento da aposta;
X - agente operador de apostas: pessoa jurídica que recebe autorização do Ministério da Fazenda para explorar apostas de quota fixa; e
XI - aplicações de internet: o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet.
6 Art. 3º As apostas de quota fixa de que trata esta Lei poderão ter por objeto:
I - eventos reais de temática esportiva; ou
II - eventos virtuais de jogos on-line.
Parágrafo único. Não poderão ser objeto das apostas de que trata o caput deste artigo os eventos esportivos que envolvam as categorias de base ou eventos que envolvam exclusivamente atletas menores de idade em qualquer modalidade esportiva.
7 Art. 31. Sobre os ganhos obtidos com prêmios decorrentes de apostas na loteria de apostas de quota fixa incidirá imposto de renda na forma prevista no art. 14 da Lei nº 4.506, de 30 de novembro de 1964, observado para cada ganho o disposto no art. 56 da Lei nº 11.941, de 27 de maio de 2009.
8 Art. 32. Fica instituída a Taxa de Fiscalização devida pela exploração comercial da loteria de apostas de quota fixa, que tem como fato gerador o exercício regular do poder de polícia de que trata o § 2º do art. 29 desta Lei, e incide sobre o total destinado à premiação distribuída mensalmente.
Karla Dutra
Sócia - PDK Advogados - PUC-Rio- Mestrado em Direito, Direito Penal e Segurança Pública - LEC - Liderança ESG - PUC-SP - Graduação em Direito