O Rio de Janeiro e a guerra civil: Uma longa conexão
A guerra civil que há no Rio de Janeiro, em que o território não é controlado pelo Estado na sua totalidade, é consequente do descaso da União para com a antiga capital do país.
terça-feira, 17 de dezembro de 2024
Atualizado às 09:13
Ao contrário do que o senso comum acredita, guerras civis não precisam ser declaradas por autoridades internacionais e nem mesmo pelas nacionais para serem vividas, sentidas e sofridas pelas populações. As guerras civis são processos históricos, que envolvem os interesses particulares, grupais, étnicos ou comunitários, e cujas motivações advêm de causas políticas (civis ou militares), religiosas, econômicas ou de todas em conjunto.
Nem toda guerra civil ganha as proporções que a dos Estados Unidos da América, na década de 1860, alcançou. De modo que a guerra civil vivida por cariocas e que tem se espraiado pela região metropolitana do Rio e mesmo o interior do antigo Estado do Rio, gera procedimentos similares àqueles por que passam os sitiados e ilhados nas cidades de países em conflitos armados: toques de recolher, vias interditadas, áreas inabitáveis, supressão de serviços públicos etc.
Na história do Rio de Janeiro e da antiga colônia luso-americana, que existiu entre 1500 e 1808, houve consideráveis rebeliões, motins e mesmo guerras inteiras travadas na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, que, aliás, nasceu numa guerra envolvendo os Maracajá-Temininó e demais grupos Tupi e aqueles que desejavam se impor como novos "donos do poder": portugueses e franceses, em disputa pelo litoral fluminense. Foi na Batalha de Uruçumirim que o sobrinho de Mem de Sá, Estácio de Sá, foi flechado, em 20/1/67, morrendo em consequência disso. A aldeia-fortaleza (paliçada) de Uruçumirim, que é o morro a que chamamos de Outeiro da Glória, e dá nome a este primeiro bairro da Zona Sul carioca, é a origem da cidade na afirmação do poder colonial português.
O Rio português nasceu com guerra, foi com guerras que ele se manteve ao longo dos séculos, tendo a cidade e a baía de Guanabara como símbolos justamente os muitos fortes e fortalezas que nelas se ergueram, a maior delas a Fortaleza de Santa Cruz da Barra, justamente a mais imponente de toda a costa brasileira.
O Rio seiscentista, setecentista e oitocentista foi palco de inúmeras guerras e revoltas, muitas delas referidas nos livros escolares. Mas a guerra civil atualmente vivida no Rio de Janeiro não é consequência imediata desses conflitos históricos, pelo menos não da maioria deles. A guerra civil que há no Rio de Janeiro, em que o território não é controlado pelo Estado na sua totalidade, e sim pelas milícias e pelos narcotraficantes, é uma guerra consequente, em forte medida, do descaso da União para com a antiga capital do Reino Unido, do império e da república, que, num "passe de mágica", deixou de ser o Rio para se tornar Brasília, na década de 1960, sem a menor preocupação com o planejamento urbano do que seria aquela cidade-estado que havia sediado o país desde a transmigração da Corte mariano-joanina, em 1808.
O Rio de Janeiro agoniza em sua desterritorialização estatal porque há décadas o chamado "Estado do Rio de Janeiro", um Frankenstein político, foi criado pela última ditadura civil-militar brasileira, a de 1964-1985, em uma canetada do presidente da ocasião, general Ernesto Geisel, em 12/7/74.
O Estado da Guanabara, que era a cidade-estado anteriormente Distrito Federal, e que nada tinha a ver, salvo pela divisão da Baía de Guanabara, com Niterói e a antiga província fluminense, foi fundido com o Estado do Rio, um ente federado com história própria, cultura administrativa própria, agricultura e economia próprias, problemas próprios, soluções próprias.
Todos os operadores do Direito sabemos que no Rio de Janeiro atual persistem décadas de disputas administrativas e mesmo judiciais sobre a quem pertencem os bens patrimoniais do antigo DF que se tornou GB - Estado da Guanabara e que depois se fundiu com o antigo RJ. Não é somente uma miscelânea, é um pandemônio.
As forças policiais e de segurança da GB ou do antigo DF nada tinham a ver com as do RJ. A cidade do Rio enquanto capital do Estado do Rio, acumulando funções federais, estaduais e municipais próprias, nunca tinha existido, e foi em virtude disso que os governadores do Rio e os prefeitos do Rio foram, o mais das vezes, ou inimigos ou "amigos da onça".
A criminalidade dessa cidade que não é capital do Estado senão no Brasil oficial machadiano - "caricato e burlesco" - e que se conserva enquanto segunda capital Federal, ou segundo DF, não formalizado pela CF e, portanto, sem gozar do fundo constitucional de que se alimenta Brasília (CRFB, art. 21, inciso XIV), já domina a metade do território e a tendência é que domine muito mais.
O Rio que não é Guanabara e nem é DF2 é uma cidade perdida para o tráfico, as milícias, as cracolândias e o abandono absoluto de seu povo a sua própria sorte. Os megaeventos que o prefeito Eduardo Paes consegue trazer para a cidade, com grande êxito até, só são possíveis porque, nessas ocasiões, a União volta a administrar a cidade, por intermédio da "GLO" - Garantia da Lei e da Ordem) e da intervenção incisiva das Forças Armadas.
No dia 27/11/24, poucos dias após o fim da última intervenção Federal via GLO, autorizada pelo decreto presidencial 12.243/24 e que ia de 14 a 21 de novembro, fui assaltado a mão armada em plena rua Pinheiro Machado, a metros do Palácio Guanabara, ou "Paço Isabel" dos tempos do império, e perto da sede do Fluminense Football Club - seu nome oficial. Dois amigos-irmãos e eu tivemos os celulares roubados por bandidos jovens, encapuzados, saindo de um carro escurecido pelos vidros fumê. Em uma ação de 15 a 20 segundos, roubaram os celulares e pediram as senhas, o que só não se perfez pelo medo deles mesmos de o tempo correr e algum outro veículo aparecer. Eram cerca de 23h30min e não havia nenhum policiamento na região, nem com viatura, nem com agentes, à paisana ou fardados.
Nesse Rio de Janeiro em guerra e do "salve-se quem puder", é evidente que os que mais sofrem são os pobres, pois vivem em regiões onde a lei nada tem a ver com a CF ou o ordenamento jurídico, e sim com a duríssima realidade da supressão de qualquer esfera normativa e a consequente instalação e manutenção do medo, do terror e do caos.
A persistir o "estado de coisas inconstitucional" que vive o Rio de Janeiro, e a manter-se a falsa realidade política da cidade-estado que não é Estado e não tem Estado, a antiga capital do Brasil será esvaziada não somente em seu centro, como em todos os bairros de classe média, restando aos desvalidos serem obrigados a morar junto com traficantes, milicianos, ladrões, assassinos, "cracudos" e quejandos. Mais desolador é impossível.
Ou o "problema do Rio" é encarado como um problema nacional, já que o é, ou então vamos normalizar o pânico e continuar a sofrer, diariamente, na guerra civil carioca, a perda de vidas e o destino trágico dos inocentes ceifados pelo ápice da cultura do "jeitinho", em que somente de GLO em GLO o Rio de Janeiro viverá momentos de paz - paz armada, por suposto.