Presunção de inocência: O réu, no processo penal, é culpado ou inocente?
A presunção de inocência é tema que está sempre na ordem do dia. Regimes autoritários gostam de relativizar presunção de inocência. Todos são culpados até provar o contrário.
terça-feira, 17 de dezembro de 2024
Atualizado às 13:50
A presunção de inocência é tema que está sempre na ordem do dia. Está ligada a cidadania, que é fundamento da república.
Regimes autoritários gostam de relativizar presunção de inocência. Todos são culpados até provar o contrário. A propósito, para polícia, Ministério Público e mídia o réu no inquérito e processo penal é sempre culpado...
Mas, afinal, qual a condição jurídica do réu no processo penal? Culpado? Inocente?
Em torno dessa temática que vamos aqui debater. Tenho conversado com pessoas e escutado frases mais ou menos assim: o STF deveria ouvir a "voz das ruas" e o "clamor popular".
Andam também dizendo por aí que: "decisões do Supremo não correspondem à expectativa da sociedade. Que o "padrão mundial" é a execução da pena na segunda instância".
Falam que "sentenças da Laja-Jato foram anuladas atrapalhando o enfrentamento à corrupção". Ah, a última que ouvi é que "o condenado pelo júri saia pela porta da frente".
Mas há que lembrar a reflexão de Sartre:
"o inferno são os outros ".
Pois é. Presunção de inocência só é bom quando é para mim, nossa família e os amigos, não é?
Para os outros: cadeia, neles!
O STF é o porta voz da expectativa da sociedade?
Sempre com todo o respeito aos que pensam diferente. Vamos falar francamente: por acaso, o Supremo é o porta voz da "expectativa da sociedade"? Ora, o STF não existe para corresponder à "expectativa da sociedade", para atender a "voz das ruas" e o "clamor popular".
Não, mesmo!
Como medir à "expectativa da sociedade"?
Como medir o "clamor popular"? Qual o metro?! A "expectativa" Será medida pelo ditador de plantão?
Por sinal, já falaram, na linguagem freudiana, que o Judiciário não é o superego da sociedade. Deve o STF obediência à "expectativa da sociedade"?
Então, para que serve a CF?
Como se sabe, o STF é contramajoritário na defesa dos direitos fundamentais. Além do mais, a CF é um remédio contra a maiorias.
E se à expectativa da sociedade for X e a CF falar Y?
Prisão em segunda instância
Meu vizinho Tavinho diz que a execução da pena depois da condenação na segunda instância é o "padrão mundial". Só faltou ele combinar com a queridona CF!
Não me leve a mal: defendo a CF!
Por quê? Porque a lei maior tem uma pedra no meio do caminho, como no poema de Drummond, que é a presunção de inocência: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (CF, art. 5º, LVII).
Simples assim! Alguma dúvida, vizinho?
Relembrando as decisões do STF em relação à execução da pena antecipada
Vamos, rapidamente, rememorar: em 2009, no HC 84.078/MG, o Supremo acordou que não se admitia à execução antecipada da pena, tendo em vista o princípio constitucional da presunção de inocência.
Em 2016, quando uma onda conservadora varreu o país, no julgamento do HC 126.292/SP, o STF mudou a sua jurisprudência. Produziu uma pérola: é possível a execução da pena depois de decisão condenatória confirmada em segunda instância.
Foi um dia triste...
Por fim, em 2019, foi revertido o entendimento do STF, nas ações declaratórias de constitucionalidade 43, 44 e 54. Foi falado o óbvio do óbvio: a sentença só pode ser executada após o trânsito em julgado da condenação.
Reparem: um dia, o STF fala uma coisa. Já no outro dia, muda de jurisprudência. Difícil. Muito difícil.
Afinal de contas, há o direito fundamental à resposta correta. O Supremo deveria acertar por último. A doutrina brasileira não está atenta. Será o direito aquilo que o Judiciário diz que é?
A resposta só pode ser: não, não e não!
Pois é. Está muito difícil advogar. Será que os causídicos jogaram pedra na cruz? São inúmeras as "maldades jurídicas" que assumem ares de verdade.
Onde está o real ou verdade verdadeira no Direito?
Aliás, todos têm o direito fundamental à verdade. Caso contrário, haverá uma injustiça hermenêutica que é espécie do gênero injustiça epistêmica, na lição de Miranda Fricker.
Um ponto importante: é mentira que não é possível a prisão antes do trânsito em julgado. Jamais foi proibido prender. A prisão cautelar processual é constitucional. É admissível. Desde que, claro, fundamentada com base nos quatro pressupostos previstos no art. 312 do CPP.
A CF é a maneira de ser do Estado. Que bom que a nossa é garantista! Por exemplo: a presunção de inocência não aparece expressamente no texto constitucional americano. É forçar barra com o direito comparado dizer que é "padrão mundial".
Não dá para copiar e colar!
Prisão imediata no júri
O STF decidiu, recentemente, em regime de repercussão geral, o Tema 1.068, que autoriza a automática prisão do réu em face condenação imposta pelo tribunal do júri.
Um filósofo já disse: uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Pois então. Não se pode confundir a soberania dos veredictos do júri em definir o fato e responsabilidade penal com a imediata prisão do réu.
Enfim, onde está escrito isso na CF/88 de que a após soberania dos veredictos a prisão será imediata? Vejamos o que diz a Carta Magna, para que haja qualquer dúvida:
Art. 5º, XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;
Por outras palavras, o réu condenado pelo júri, em que pese ser soberano, o que significa que sua decisão, em regra, não poderá ser alterada pelo juiz togado, a exceção, é claro, da revisão criminal e da apelação, não tem que, automaticamente, iniciar o cumprimento da pena.
Outra vez pergunto: onde está escrito na CF que o réu condenado pelo conselho de sentença vai logo preso?! E a presunção de inocência?
Veja-se: há um limite na interpretação conforme. O julgador não pode fazer uma nova norma, usurpando o papel do legislador.
A reflexão necessária: a CF não vai valer para os condenados pelo Tribunal de Júri, mas vai valer, por exemplo, para quem roubou, furtou e estuprou...
Pode isso, excelências?!
Pois é, não poderia à luz da CF, isto é, da presunção de inocência. Mas, infelizmente, isso acontece: predominou a opinião do julgador. A CF é uma folha de papel.
De certo modo, la loi c'est moi (a lei sou eu).
Coisas do nosso STF!
No Direito querem sempre fazer um vale-tudo distorcendo o sentido semântico de presunção de inocência e trânsito em julgado.
É atropelar a hermenêutica constitucional. É dar um drible na CF dizer que não ofende o princípio constitucional da presunção de inocência, a prisão automática após a condenação pelo júri.
Contem outra, senhores!
Daí a observação, naquele tempo, em 2001, do professor Luís Roberto Barroso:
"não é possível ao intérprete torcer o sentido das palavras nem adulterar a clara intenção do legislador. O STF não pode mais do que os limites semânticos do seu texto".
Exatamente, mestre Barroso! Vamos, então, deixar o texto constitucional dizer:
"ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória "(CF, art. 5º, LVII)
Pode ler de novo. É isso mesmo que você entendeu...
Que coisa: temos que a toda a hora repetir obviedades óbvias. É sinal de que algo vai muito mal no Direito...
Lembrei-me da frase do genial Tom Jobim: o Brasil não é para principiantes, que foi substituída, com o tempo, por "amadores".
Sentenças anuladas por vícios processuais na Laja-Jato
A Laja-Jato amaldiçoou a presunção de inocência sob o pretexto de combate à criminalidade: todo cidadão era culpado até que prove a sua inocência. Era a ditadura da "República de Curitiba"!
A propósito, na Laja-Jato, prendia para delatar. Prendia para investigar. Prisões preventivas infinitas e sem contemporaneidade. Horrível. Era a prisão espetáculo. Violando à dignidade humana. O réu era um troféu de guerra.
Parecia a inquisição medieval com caças às bruxas: o suspeito era sempre culpado. Por falar em inquisição, usaram e abusaram do suplício, da tortura e das prisões subterrâneas.
Por exemplo: o suspeito tinha que segurar um ferro em brasa e se nada lhe acontecesse era considerado inocente.
Voltando. O Supremo, lá atrás, errou. Deveria ter ouvido os juristas que não se cansavam de criticar às violações de direitos pela Lava-Jato.
O MPF - Ministério Público Federal se achava o dono do mundo. Não calçou as sandálias da humildade.
Deveria, o STF, ter escutado, também, o ministro Gilmar Mendes que disse o seguinte, no HC 95518/ PR:
"o juiz é órgão de controle no processo criminal. Tem uma função específica. Ele não é sócio do Ministério Público e, muito menos membro da Polícia Federal, o órgão investigador, no desfecho da investigação".
Que coisa horrível: tudo junto e misturado! Foi uma dobradinha sinistra: juiz com o MPF.
Já pensou se, à época, tivesse prevalecido entendimento do ministro Gilmar, Lenio Streck e de centenas de advogados, como este causídico, que criticavam a onipotência da Laja-Jato?
Entretanto, uma boa parte dos ministros do STF ficou em silêncio. O combate às mentiras, às armações e ilegalidades lavajatistas ficaram blindadas. Inclusive, na grande imprensa.
O despotismo de toga, deu em quê? O STF acabou tendo que anular sentenças.
Mas cuidado! Há perigo na esquina: a praga do lavajatismo não acabou; pois é um conjunto de ideias autoritárias. Estou sendo generoso nas palavras...
Conclusão
Ninguém é a favor da corrupção! Somente o corrupto! Obviamente é preciso combater à corrupção. Porém, não se combate à corrupção rasgando a CF!
Ninguém é a favor da impunidade! Somente o criminoso! Não se pode jamais esquecer de que há também corrupção, quando não se respeitam os direitos fundamentais, notadamente a cláusula pétrea da presunção de inocência.
Vamos falar o óbvio: o réu no processo penal: o réu é inocente!
Ainda falta muito para dizer que a presunção de inocência se tornou incontestável no Brasil. Mas tenho esperança: Deus vai voltar a ser brasileiro.
Nesse dia, todos vão respeitar à CF!
Que assim seja!
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1. BARROSO, Luís Roberto, Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, 2001, pp. 128-129)