Whistleblowing: As melhores práticas internacionais nas esferas pública e privada
Legislações eficazes de whistleblowing combinam proteção ampla ao denunciante, procedimentos claros e mecanismos contra retaliação, baseadas em boas práticas globais.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2024
Atualizado às 07:49
Neste segundo artigo da série sobre whistleblowing, apresentaremos as melhores práticas internacionais na regulamentação do whistleblowing nas esferas pública e privada, tomando por referência as recomendações sobre o tema formuladas pela OCDE - Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a IBA - International Bar Association e a Transparência Internacional.
Políticas sobre whistleblowing costumam ser concebidas de maneira reativa, após a ocorrência de grandes escândalos. Por conta disso, suas disposições podem acabar focando excessivamente em problemas do passado, em vez de endereçar necessidades futuras. Essa abordagem reativa costuma culminar na edição de legislações esparsas, que proporcionam uma proteção menos eficiente ao denunciante em comparação com uma lei abrangente sobre o whistleblowing, que preveja os procedimentos para a realização de uma denúncia e os mecanismos de proteção contra eventuais retaliações1.
As melhores práticas internacionais para whistleblowing passam pela definição (1) dos aspectos objetivo e subjetivo da proteção conferida pela legislação e (2) das medidas concretas de proteção.
Quanto aos (1) aspectos objetivo e subjetivo da proteção conferida pela legislação, uma característica positiva em legislações sobre whistleblowing é o fato de elas conferirem proteção abrangente ao denunciante, cobrindo denúncias sobre diversos tipos de irregularidades (aspecto objetivo), formuladas não só por funcionários, mas também indivíduos que podem sequer possuem relação formal com a instituição (aspecto subjetivo).
A proteção ao denunciante deve abranger denúncias que versem sobre qualquer ilegalidade, desperdício grosseiro, falha de gestão, abuso de autoridade, risco à saúde ou à segurança da comunidade, bem como qualquer outra atividade que possa comprometer o bem-estar público ou as missões institucionais da entidade2. Denúncias relativas a violações a códigos de conduta, leis ou regulamentos setoriais também podem gerar proteção ao denunciante3. Embora seja recomendável que a legislação classifique com clareza as hipóteses de denúncia, deve haver um equilíbrio entre uma lei excessivamente descritiva, a ponto de dificultar a realização da denúncia ou de exigir do denunciante um conhecimento detalhado da legislação, e uma lei de conteúdo aberto, que pode incentivar a realização de denúncias descabidas4.
A Irlanda, por exemplo estabeleceu categorias bastante abertas de condutas denunciáveis, como por exemplo condutas relativas "a atos ilícitos que foram, estão sendo, ou possivelmente serão cometidos", ou atos que "tenham gerado, estejam gerando, ou possivelmente irão gerar risco à saúde ou segurança de algum indivíduo"5. O Reino Unido, por sua vez, adotou um caminho intermediário, combinando definições detalhadas e exceções de sentido aberto6. A França também adotou uma abordagem mista, adotando uma lista de condutas denunciáveis que inclui "ameaça ou dano sérios ao interesse público"7, dando maior margem de manobra ao intérprete.
A adoção de um conceito abrangente de "denunciante" também é recomendável, sendo essa a experiência internacional. O objetivo é conferir proteção não apenas aos funcionários da instituição, mas também aos consultores, terceirizados, estagiários, funcionários temporários, ex-funcionários ou mesmo trabalhadores voluntários8. A Transparência Internacional vai além, recomendando que a proteção incida também sobre indivíduos que estejam disputando um emprego, um contrato ou outros tipos de receitas perante a instituição9. Nesse cenário, é possível, por exemplo, que a denúncia parta de um fornecedor que se deparou com uma prática ilícita durante a disputa por um contrato. No caso de entidades públicas, a proteção em outras jurisdições costuma abranger funcionários da Administração Pública direta e também de empresas públicas, sociedades de economia mista e agências reguladoras10.
Quanto às (2) medidas concretas de proteção, a maioria das legislações sobre whistleblowing contém dispositivos prevendo a manutenção da confidencialidade da identidade dos denunciantes. A identidade é mantida sob sigilo a não ser que o próprio denunciante consinta com a divulgação11. É possível adotar-se medidas de proteção da identidade mesmo quando a denúncia foi efetuada anonimamente12. Dada a importância dessa questão, alguns países também impõem multas e até pena de prisão a quem divulgue informação que permita identificar o denunciante13.
Há situações em que essa obrigação de preservação da confidencialidade pode ser relativizada. Nos Estados Unidos, por exemplo, é proibida na seara Federal a divulgação de informações que permitam a identificação do denunciante, exceto se o OSC - Office of the Special Counsel, principal autoridade na efetivação de políticas de whistleblowing na esfera Federal, concluir que a divulgação é necessária por conta de um risco iminente à saúde e segurança públicas, ou de violação à lei penal. Em qualquer cenário, é praxe notificar o denunciante antes que sua identidade seja divulgada ao público14.
O estabelecimento de mecanismos de proteção contra represálias é uma característica fundamental de políticas de whistleblowing. Os regimes jurídicos existentes nos Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e Japão são considerados exemplos no grau de proteção atribuído aos denunciantes, possuindo legislações com previsões expressas a respeito de proteções contra retaliações, incentivos a denúncias internas e externas, e incentivos regulatórios para a formalização da denúncia15.
A represália pode tomar várias formas, desde uma demissão súbita ou a instauração de um processo disciplinar contra o denunciante até a criação de obstáculos para futuras promoções, passando também por bullying, blacklisting, cancelamento de licenças ou permissões, revogação de contratos, dentre outros16. É possível que as represálias atinjam até mesmo os familiares do denunciante17.
Em um cenário tão desafiador, o indivíduo que efetua uma denúncia deseja estar seguro de que seu emprego não será colocado em risco por isso. Mas essa é apenas a medida mais básica de proteção. Nos países da OCDE, a regra geral é que o denunciante demitido injustamente seja readmitido na entidade. Também há normas que permitem a troca para outros cargos ou a fixação de indenizações, caso seja inviável ao denunciante encontrar um novo emprego. Nesse último caso, além dos salários perdidos, as indenizações podem abarcar os punitive damages e danos morais pelo sofrimento suportado pelo denunciante18.
Em contextos não laborais, as medidas podem incluir a mudança do denunciante para uma nova residência segura e proteção contra ações judiciais de represália19. Além disso, a legislação pode trazer mecanismos de proteção e/ou compensação para as demais categorias de denunciantes, indo além dos funcionários da entidade20. Por fim, seria recomendável, segundo a IBA, a responsabilização pessoal daqueles que efetuam as represálias, sob pena de que gestores mal-intencionados sintam-se com passe livre para assediar o denunciante21.
Uma política pública eficiente sobre whistleblowing deve trazer incentivos para que as entidades públicas e privadas tenham seus próprios canais internos de denúncia, estruturados de maneira que o denunciante sinta-se confiante em recorrer primeiro às instâncias de controle interno para endereçar sua denúncia antes de levar os fatos ao conhecimento das autoridades, da imprensa, ou do público em geral. Os canais de denúncia devem trazer instruções claras e fáceis de uso22. Adicionalmente, a IBA sugere que o denunciante tenha acesso às movimentações da apuração, eventualmente contribuindo com informações adicionais ou sendo informado do seu resultado, para que ele possa avaliar por si próprio se todo o processo foi conduzido de boa-fé pela entidade23. Por fim, para que o temor do erro não coíba denúncias, a Transparência Internacional sinaliza que os denunciantes que fazem uma denúncia movidos pela crença razoável ("reasonable belief") de que determinada conduta pode configurar uma irregularidade costumam gozar de proteção, ainda que ao final da apuração a informação se comprove equivocada24.
A última recomendação da OCDE diz respeito à definição clara sobre quem será a autoridade responsável por receber e processar as denúncias quando os canais de denúncia internos se mostrarem insuficientes, possivelmente estabelecendo-se uma autoridade que centralize essa função25. As atribuições desse órgão englobariam: (i) prover suporte jurídico ao denunciante; (ii) receber, investigar e endereçar denúncias de retaliações; (iii) lidar com casos de má condução de investigações iniciadas por denúncias de denunciantes, em instituições públicas e privadas; (iv) emitir guias para empregadores e autoridades sobre como implementar políticas de whistleblowing efetivas, e supervisionar a aplicação dessas políticas; (v) monitorar e revisar a legislação em vigor sobre whistleblowing, recolhendo dados regularmente a respeito do tema; e (vi) fomentar o engajamento público sobre whistleblowing e a importância da proteção de denunciantes26.
Em suma, para que se tenha um sistema de whistleblowing solidamente estruturado, é necessário que as instituições lidem zelosamente com situações de denúncia, reconhecendo que as relações de poder entre denunciado e denunciante geralmente são assimétricas, o que demanda a concessão de garantias de proteção ao denunciante27. Esse sistema deve ter como objetivos permitir o recebimento de denúncias de maneira discreta, preservando a identidade do denunciante, e depois encaminhando as informações às autoridades internas ou externas com competência para a realização da investigação28.
Nos próximos artigos dessa série, discutiremos a proteção aos denunciantes de boa-fé e a concessão de incentivos financeiros para a realização de denúncias, bem como a análise do caso brasileiro.
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1 OCDE, "Committing to Effective Whistleblower Protection", OECD Publishing, Paris, 2016. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1787/9789264252639-en. Acesso em 17.11.2024. P. 11.
2 International Bar Association - IBA. "Are whistleblowing laws working? - A global study of whistleblower protection litigation". IBA Legal Policy and Research Unit (LPRU), Londres, 2021. Disponível em: www.ibanet.org/MediaHandler?id=49c9b08d-4328-4797-a2f7-1e0a71d0da55. Acesso em 17.11.2024. P. 14.
3 OCDE, idem, ibidem. P. 44.
4 OCDE, P. 44. Citando BANISAR, David. "Whistleblowing: International Standards and Developments". Sandoval, I. (ed.), Corruption and Transparency: Debating the Frontiers between State, Market and Society, World Bank Institute for Social Research, UNAM, Washington, DC, 2011. Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1753180.
5 Nos referimos aqui ao Protected Disclosures Act 2014. Transparência Internacional, "A Best Practice Guide for Whistleblowing Legislation". 2018. Disponível em: https://www.transparency.org/en/publications/best-practice-guide-for-whistleblowing-legislation. Acesso em 17.11.2024. P. 13.
6 Nos referimos aqui ao United Kingdom Public Interest Disclosure Act of 1998. OCDE. Pp 46-47.
7 Nos referimos aqui à Lei Sapin II. Transparência Internacional, "A Best Practice Guide for Whistleblowing Legislation". P. 13.
8 OCDE, P. 43.
9 Transparência Internacional. "A Best Practice Guide for Whistleblowing Legislation". 2018. Disponível em: https://www.transparency.org/en/publications/best-practice-guide-for-whistleblowing-legislation. P. 11.
10 Idem, ibidem.
11 OCDE, P. 64.
12 International Bar Association - IBA. P. 18.
13 Na Austrália, a pena de prisão pode ser de até seis meses, enquanto na Coréia do Sul chega a três anos. OCDE, P. 65.
14 OCDE, P. 64.
15 CARVALHO, André Castro; ALVIM, Tiago Cripa. "Whistleblowing no ambiente corporativo: standards internacionais para sua aplicação no Brasil". In: PAULA, Marco Aurélio Borges de; CASTRO, Rodrigo Pironti Aguirre de (coord.). Compliance, gestão de riscos e combate à corrupção: integridade para o desenvolvimento. 1ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 133. Citando DLA PIPER. Whistleblowing: an employer's guide to global compliance. 2. ed. Londres: DLA Piper, 2015. Disponível em:
16 OCDE, Pp. 79/80.
17 International Bar Association - IBA. P. 17.
18 OCDE, P. 86.
19 International Bar Association - IBA. P. 28.
20 OCDE, P. 44.
21 International Bar Association - IBA. P. 31.
22 OCDE, P. 52.
23 International Bar Association - IBA. P. 33.
24 Transparência Internacional. "A Best Practice Guide for Whistleblowing Legislation". P. 16.
25 OCDE, P. 85.
26 Transparência Internacional. "Institutional arrangements for whistleblowing: Challenges and best practices". 2021. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/resrep32877. Acesso em 17.11.2024. Pp. 4/5.
27 GANTOIS, Simone Menezes; SANT'ANNA, Leonardo da Silva. Whistleblowing: um desafio para o direito brasileiro. Scientia Iuris, Londrina, v. 27, n. 1, p. 129-148, mar. 2023. DOI: 10.5433/2178-8189.2023v27n1p129. ISSN: 2178- 8189. P. 136.
28 CÔRTES, Pâmela de Rezende. A quem você é leal?: motivações para o whistleblowing = Who are you loyal to? motivations for whistleblowing. Revista da CGU, Brasília, v. 13, n. 23, p. 142-157, jan./jun. 2021. P. 146. Disponível em: https://revista.cgu.gov.br/Revista_da_CGU/ article/view/350/260. Acesso em: 17.11.2024.
Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I - Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.
Lucas Santos de Sousa
Advogado. Atua nas áreas de Contencioso Cível, Compliance e Anticorrupção. Associado em Pinheiro Neto Advogados. Master of Laws (LL.M) pela University of Pennsylvania (UPenn). Pós-Graduação em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). As opiniões dos autores são pessoais e não necessariamente representam a percepção das instituições às quais estejam vinculados.