A competência para o julgamento de incidentes de desconsideração da personalidade jurídica durante processos de falência não é exclusiva do juízo falimentar
O juízo falimentar não tem competência exclusiva para desconsideração da personalidade jurídica envolvendo processos de falência. Em decisão recente, o STJ adotou interpretação sobre o parágrafo único do art. 82-A da LREF que afasta a competência exclusiva do juízo falimentar para a desconsideração da personalidade jurídica e confirmou a possibilidade de julgamento do incidente por "juízos comuns".
quarta-feira, 11 de dezembro de 2024
Atualizado em 10 de dezembro de 2024 15:07
A Segunda Seção do STJ enfrentou um complexo conflito de competência envolvendo a desconsideração da personalidade jurídica de uma empresa falida. O caso, que opôs o juízo da 1ª vara do Trabalho de São José do Rio Preto e o juízo da 2ª vara Cível de Catanduva, ambos no Estado de São Paulo, trouxe à tona questões fundamentais sobre a competência para decidir sobre a desconsideração da personalidade jurídica em processos de falência.
O conflito de competência foi suscitado por Luciano Nechar, Neder José Rocha Abdo, Renato Segura Ramires Júnior e Thomaz Simões de Lima, sócios da empresa Maralog Distribuição S/A, que teve sua recuperação judicial convolada em falência. A controvérsia central girava em torno de qual juízo seria competente para processar e julgar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica instaurado nos autos de uma reclamação trabalhista movida por Charles Alves Dias.
Os suscitantes argumentaram que, após a decretação da falência, a competência para decidir sobre a desconsideração da personalidade jurídica seria exclusivamente do juízo falimentar, conforme o parágrafo único do art. 82-A da LREF, inserido pela lei 14.112/20. O pleito dos suscitantes era pela suspensão do incidente instaurado na Justiça do Trabalho e a prática de atos constritivos sobre seus patrimônios, requerendo a declaração da competência do juízo da falência.
A ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, votou no sentido de conhecer do conflito e declarar o juízo da 2ª vara Cível de Catanduva como competente para deliberar sobre o pedido de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade Maralog Distribuição S/A. Em seu voto, a ministra argumentou que o parágrafo único do art. 82-A da lei 11.101/05 confere ao juízo falimentar a competência exclusiva para decidir sobre a desconsideração da personalidade jurídica de sociedade falida.
A ministra destacou que a norma visa evitar a violação do princípio da par conditio creditorum, que assegura a igualdade entre os credores. Segundo seu voto, permitir que outros juízos decidam sobre a desconsideração da personalidade jurídica poderia levar a pagamentos de credores em diferentes momentos e condições, comprometendo a isonomia entre eles. A ministra também ressaltou que a desconsideração da personalidade jurídica é um instituto distinto da extensão da falência a terceiros, e que a competência exclusiva do juízo falimentar para decidir sobre a desconsideração é necessária para garantir a observância dos requisitos do art. 50 do CC e do 133 e seguintes do CPC.
O ministro Antonio Carlos Ferreira, que inaugurou a divergência, não conheceu do conflito de competência. Em seu voto, o ministro argumentou que o parágrafo único do art. 82-A da LREF não estabelece uma regra de competência exclusiva para o juízo falimentar decidir sobre a desconsideração da personalidade jurídica. Em vez disso, o dispositivo visa padronizar o procedimento e os requisitos materiais para a desconsideração da personalidade jurídica nos autos do processo falimentar. O voto proferido declara que a desconsideração da personalidade jurídica pode ser decretada por juízos diversos, incluindo a Justiça do Trabalho, sem que isso caracterize um conflito de competência. Isto porque o art. 82-A da LREF não impede que outros juízos, em outras demandas que envolvam a falida, decretem a desconsideração.
Segundo o ministro, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica se limita a decidir sobre a inclusão de terceiros na demanda como devedores e não interfere no princípio da igualdade entre os credores (par conditio creditorum). Questões sobre como pagar, a quem pagar e quando a execução deverá ser extinta devem ser decididas no processo executivo propriamente dito, não no incidente de desconsideração. Além disso, a LREF determina a suspensão das execuções em curso contra o devedor, mas isso não se aplica, automaticamente, aos sócios ou terceiros não submetidos à falência.
Desta forma, a Segunda Seção do STJ, por maioria, não conheceu do conflito de competência, nos termos do voto do ministro Antonio Carlos Ferreira. A decisão do STJ tem importante implicação para o tratamento da desconsideração da personalidade jurídica em processos de falência. Ao não reconhecer a competência exclusiva do juízo falimentar para decidir sobre o incidente ou pedido, o tribunal reconheceu que outros juízos possam decretar a desconsideração da personalidade jurídica em demandas que envolvam a falida.
A interpretação dada pelo STJ dá maior flexibilidade e celeridade na resolução de litígios envolvendo empresas falidas, já que permite que credores busquem a responsabilização de sócios e administradores em diferentes esferas judiciais. No entanto, possui como efeito colateral a inevitável fragmentação da garantia do princípio da par conditio creditorum. Ao não conhecer do conflito, o STJ reafirma a competência de que diferentes juízos possam decidir sobre a desconsideração, desde que observados os requisitos legais para este fim.
Daniel Fioreze
Sócio do escritório Silva e Silva Advogados Associados e diretor do núcleo de recuperação judicial de empresas e falências. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria - RS (UFSM). Possui pós-graduação em Direito Tributário e Aduaneiro pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e em Direito Processual Civil pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus (CEDJ). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria - RS (FADISMA). Contato: [email protected]