O novo contencioso administrativo do IBS: Quando uma decisão será "não fundamentada"?
Falhas na definição de "decisões não fundamentadas" podem gerar insegurança e aumentar litígios administrativos.
terça-feira, 10 de dezembro de 2024
Atualizado às 08:36
A CF/88 trouxe o rol dos direitos e garantias fundamentais e, entre eles, o dever de fundamentação das decisões proferidas pelo Poder Judiciário, sob pena de nulidade (art. 93, IX). Todavia, em um Estado Democrático de Direito, outros dispositivos constitucionais permitem a extensão de tal determinação às decisões exaradas no contencioso administrativo, tais como, o devido processo legal (art. 5º, LV) e o princípio da moralidade dos atos administrativos (art. 37).
Tais conquistas democráticas consagradas pelo Texto de 1988 decorrem, no plano internacional, da queda do ancien régime francês, em que as decisões das Cortes eram secretas, superado em 1789, com a Revolução Francesa, e, no Brasil, com o fim de um período ditatorial seguido do processo de (re)democratização, chancelado pela edição de uma Carta democrática. Essa breve referência histórica serve para demonstrar que tais princípios constitucionais não são entidades abstratas pairando em um documento normativo, mas se agregam à realidade concreta de nosso País e de nosso tempo.
Por sua vez, o CPC de 2015, com o objetivo de maximizar as garantias constitucionais, prescreveu no art.o 11 que "Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade", reforçando tal diretriz no art. 489, § 1º e incisos quando elegeu (ainda que não taxativamente) as situações em que a decisão judicial carece de fundamentação.
Traduzidas tais garantias para o ambiente dos precedentes, o CPC determina, no art. 927, § 1º que os juízes e tribunais observarão as decisões vinculantes aplicando-se as disposições do § 1º do art. 489, entre as quais está a necessidade de fundamentação da distinção ou superação do precedente, nos termos do inciso VI, que prevê que não se considera motivada a decisão que "deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento".
Com o avanço da tramitação do PLP 108/24 no Congresso Nacional, surge a dúvida sobre como funcionará esse novo contencioso administrativo tributário relativo ao IBS, especialmente quanto às hipóteses em que as futuras decisões serão tidas como "não fundamentadas".
Isso, porque, a despeito de diversos pontos positivos já trazidos naquele projeto de lei, como a previsão expressa do princípio da motivação regente do contencioso administrativo tributário (art. 67, VIII), há apenas a menção de que serão nulas as "decisões não fundamentadas" (art. 78, III), sem detalhamento a respeito das situações para sua configuração.
Diante disso, um ponto de dúvida remanesce sobre o art. 92, que traz o rol de provimentos vinculantes exarados pelo Poder Judiciário a serem observados no processo administrativo do IBS, os quais poderão ser afastados quando houver fundamentos relevantes para distinção ou superação diante do caso concreto.
Ocorre que para o julgador administrativo do IBS deixar de aplicar um provimento vinculante porque entendeu que o caso concreto é distinto daquele paradigma ou porque a realidade social se alterou de tal maneira que a decisão paradigma não traduz mais os valores albergados pelo precedente, não há regra expressa de que teria que o fazer fundamentadamente sob pena de nulidade.
É certo que antes de decidir pela distinção ou superação do precedente, o § 4º do art. 92 do PLP 108/24 impõe à autoridade julgadora que ouça "a representação fazendária competente sobre a identidade entre a matéria tratada no processo administrativo tributário e os atos vinculantes", o que induz ao entendimento de que ao menos o julgador deverá acolher ou rejeitar os argumentos do Fisco, os quais poderão consistir em "razões fundamentadas", muito embora tal disposição revele violação a outro princípio, o do contraditório, uma vez que não há previsão para que o órgão julgador ouça o contribuinte a respeito da mesma questão.
Ainda que haja falhas na redação do texto legal projetado no que concerne à especificidade dos atos que podem gerar nulidade em razão de ausência de fundamentação, o CPC determina, em seu art. 15, que seus dispositivos são aplicados de forma supletiva e subsidiária aos processos administrativos quando não houver regulamentação e, no art. 489, §1º, sobre as hipóteses em que uma decisão não será considerada como fundamentada, o que já seria suficiente para se argumentar que esses mesmos parâmetros deverão ser aplicados para o futuro contencioso administrativo tributário do IBS, visando à uniformidade e à segurança jurídica.
Por outro lado, a ausência de uma definição clara e detalhada a respeito das hipóteses em que as futuras decisões administrativas tributárias serão consideradas como "não fundamentadas" (seja para afastar provimentos vinculantes, seja diante de outras situações concretas) poderá gerar um contencioso específico sobre a sua caracterização, na contramão de todos os avanços trazidos pelo PLP 108/24.
Portanto, como o referido projeto de lei ainda está em pleno debate no Congresso Nacional, é recomendável que o texto preveja as hipóteses em que as futuras decisões administrativas tributárias serão "não fundamentadas", de modo a se evitar que haja aumento do contencioso tributário sobre uma questão que, se expressamente trazida no PLP 108/2024, poderia trazer maior clareza aos contribuintes, autoridades fazendárias e julgadores.
Guilherme Villas Boas e Silva
Associado de Tributário de Pinheiro Neto Advogados.
Fernanda Donnabella Camano
Pós-doutorado em Direito pela USP, advogada e gestora do conhecimento tributário em Pinheiro Neto Advogados.