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A face oculta do imposto do pecado

A nova tributação busca alterar hábitos, mas herda rigidez fiscal do IPI, limitando função educativa e ambiental.

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Atualizado às 08:05

A reforma tributária aprovada no Brasil cria um IS - Imposto Seletivo sobre bens prejudiciais à saúde e ao meio-ambiente. O novo imposto precisa de lei complementar para ser instituído, o que já está em fase de discussão no Congresso Nacional. Como se encontra hoje, o imposto incidirá sobre veículos, embarcações e aeronaves, produtos fumígenos, bebidas alcoólicas, bebidas açucaradas, bens minerais (ferro, gás natural e petróleo) e apostas. 

A despeito de sua relação com as discussões internacionais e econômicas sobre tributação seletiva para combater prejuízos sociais decorrentes de hábitos de consumo (externalidades negativas), as regras do imposto seletivo acabaram cometendo o pecado capital de adotar as regras fiscais do antigo IPI, o que altera profundamente o seu papel, a sua eficácia e até a sua função indutora. 

Por se tratar de imposto, a constituição brasileira proíbe a destinação prévia dos valores arrecadados a políticas de saúde e de meio-ambiente. Ademais, ao herdar toda a estrutura fiscal do IPI (uma espécie de retrofit fiscal), o produto da arrecadação do IS será compartilhado, na proporção de 60%, com Estados, Distrito Federal e municípios.

 Ainda pior, em movimentação inédita no sistema atual, a União Federal assumiu a garantia de compensar os demais entes da federação em eventuais perdas de repasse mensal, o que a obriga a manter com o IS (e com o que sobrar do IPI redivivo da Zona Franca de Manaus) o atual nível de arrecadação do IPI, tornando a carga ótima e necessária do IS aquela que mantenha a arrecadação atual, desnaturando a função tradicional de um imposto corretivo, a de alterar comportamentos e não buscar arrecadação máxima. Adicionalmente, no caso de perda de arrecadação, o valor a ser repassado pela União Federal, se não previsto no processo orçamentário realizado no ano anterior, frustrará a meta fiscal esperada para o ano corrente ou forçará expansão da dívida pública. Trata-se de um preço fiscal demasiadamente caro e de inspiração colonizada de modelos internacionais.

Quando se passa a analisar o imposto recém-criado para além de sua superfície semântica, sua estrutura fiscal revela a sua face de imposto simples e rígido, com função predominantemente arrecadatória, em que os produtos selecionados até agora lá estão apenas por seu potencial gerador de receita governamental, repetindo os itens de maior arrecadação atual do IPI na maior parte dos casos.

Como avaliar objetivamente o papel do Estado em um imposto cujo sucesso seria, justamente, o de arrecadar sempre menos?

Com a sua regra de arrecadação fixa obrigatória, sempre que a população adotar o que o legislador entende ser um hábito mais saudável, o Estado terá que pagar com recursos orçamentários tal redução do consumo, em uma espécie de mesada por bom comportamento, mas direcionada aos Estados e municípios.

O verdadeiro imposto seletivo seria aquele que surgiria como tributo totalmente novo, sem tais amarras fiscais, sem recursos compartilhados e, sobretudo, com destinação de suas receitas às finalidades de saúde e ambientais. O debate continua preso ao fascínio do teatro de sombras que apenas se assemelham a um instrumento eficaz de pautas que são, essas, sim, genuinamente relevantes. 

O caráter extrafiscal e educativo do imposto seletivo brasileiro revela-se mero eco idealista do debate cosmopolita, uma espécie de aríete a forçar a sua aprovação a partir de tons chamativos, a camuflar ganhadores oportunistas, sejam eles do fisco ou de concorrentes atingidos de forma desigual, em um processo de poucas evidências empíricas e opacidade democrática.

José Maria Arruda de Andrade

José Maria Arruda de Andrade

Professor da Faculdade de Direito da USP.

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