Racismo e aporofobia no meio acadêmico: A necessidade de respostas estruturais
Atos racistas e aporofóbicos em universidades destacam a superficialidade das respostas institucionais, sem abordar as raízes estruturais e culturais do preconceito.
quinta-feira, 12 de dezembro de 2024
Atualizado às 10:55
A recente repercussão de atos racistas e aporofóbicos - ou seja, a discriminação e o desprezo por pessoas em situação de vulnerabilidade social - envolvendo estudantes da PUC/SP e USP trouxe à tona discussões fundamentais sobre as respostas institucionais a comportamentos discriminatórios. Embora medidas como demissões e expulsões sejam frequentemente adotadas de forma quase automática, funcionando como respostas simbólicas de expiação do mal, elas carecem de profundidade para enfrentar a real complexidade do problema. Essas ações pontuais, ainda que relevantes, não alcançam as raízes do preconceito, que estão ancoradas em estruturas sistêmicas e culturais que perpetuam discriminações dentro do ambiente acadêmico.
As ofensas proferidas pelos alunos da PUC/SP revelam um complexo mecanismo de ressentimento social. Movidos pela frustração de não terem acessado à universidade pública de maior prestígio do país - a USP - , esses estudantes utilizam o privilégio econômico, materializado no alto custo de sua mensalidade, como instrumento de desqualificação e violência simbólica contra outros estudantes.
Além disso, os ataques direcionados a estudantes beneficiários de políticas de ação afirmativa - os "cotistas" - revelam uma percepção distorcida sobre mérito, que ignora as condições históricas de desigualdade e privilégio.
Essa hostilidade emerge como reação às mudanças nas dinâmicas de acesso historicamente estabelecidas. Os estudantes que se opõem às cotas demonstram não compreender que tais políticas não representam um "facilitismo", mas sim um mecanismo de reparação histórica, destinado a corrigir décadas de exclusão sistemática de negros, indígenas e população de baixa renda do ambiente universitário.
Nesse contexto de discriminação estrutural, é fundamental compreender o arcabouço legal que define e criminaliza práticas racistas. O Estatuto da Igualdade Racial (lei 12.288/10) define discriminação racial como "toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que vise anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais". É sempre bom lembrar que o art. 5º da CF/88 reforça essa definição ao garantir igualdade perante a lei e proibir discriminações de qualquer natureza.
Já, a lei 7.716/89 define os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor, estabelecendo sanções para práticas discriminatórias que impeçam ou restrinjam direitos fundamentais. Vale relembrar que, com a recente atualização trazida pela lei 14.532/23, foi inserido o art. 2º-A, que criminaliza a injúria racial, com penas de reclusão de 2 a 5 anos e multa, além de agravamento em casos de ação conjunta de duas ou mais pessoas.
Ainda, a multiplicidade de sujeitos envolvidos nos atos discriminatórios evidencia que a punição individual, embora necessária, configura uma resposta superficial. Tais manifestações são reflexo de um ambiente de socialização que naturaliza a exclusão, não apenas nos espaços acadêmicos, mas também nos ambientes corporativos e profissionais. Instituições de ensino e de trabalho reproduzem, muitas vezes sem crítica, hierarquias sociais que invisibilizam estudantes e profissionais negros e/ou de baixa renda, relegando-os a posições marginais. Sua presença configura-se mais como uma concessão do que como uma verdadeira integração, ocupando espaços periféricos nas discussões, representações e decisões institucionais.
Para além da punição individual, é imperativo que instituições acadêmicas e corporativas realizem um diagnóstico crítico sobre sua própria estrutura e se perguntem: Qual é a real representatividade de pessoas negras nos diferentes níveis hierárquicos? Nos ambientes universitários, quantos professores, pesquisadores e gestores são negros? Nos espaços empresariais, qual a proporção de negros em cargos de liderança e decisão?
Sem respostas concretas e compromissos efetivos, as medidas pontuais funcionam apenas como paliativos, reforçando a ilusão de que a simples visibilização momentânea e/ou a remoção de indivíduos específicos são capazes de resolver estruturas de opressão.
Um exemplo de resposta mais aprofundada à questão do racismo institucional é o da Escola Vera Cruz, que, apesar das críticas, optou por uma abordagem sistêmica. A escola implementou ações como formações antirracistas para educadores, revisão curricular e discussões sobre branquitude, reconhecendo que o combate ao racismo exige esforços estruturais e contínuos, e não respostas pontuais.
Foi compreendido que a verdadeira reparação não está na exclusão, mas na formação crítica e na construção coletiva de uma cultura de respeito e reconhecimento da dignidade humana.
A transformação necessária ultrapassa medidas superficiais de punição. Requer um compromisso radical com a desconstrução das estruturas de poder que silenciam e marginalizam grupos historicamente vulneráveis. É preciso construir ambientes - acadêmicos, corporativos e sociais - verdadeiramente plurais, onde a diversidade seja realmente buscada e incentivada.
A mudança demanda uma reconstrução ética permanente: manutenção e ampliação de ações afirmativas, implementação de estratégias efetivas para garantir a permanência e o sucesso acadêmico dos estudantes beneficiados por essas políticas, elaboração de currículos que incluam autoras e autores que refletem sobre o racismo, os processos de exclusão social e as contribuições de grupos historicamente marginalizados. Além disso, é fundamental criar mecanismos de representatividade nos espaços de decisão, promover a diversidade em cargos de liderança e desenvolver processos formativos que eduquem para a alteridade, incentivando a empatia e o respeito às diferenças.
Essas ações devem ser acompanhadas de investimentos em suporte psicossocial, bolsas de estudos e programas de mentoria para estudantes de grupos sub-representados, garantindo que sua integração no ambiente acadêmico e profissional não seja apenas simbólica, mas efetiva. Espaços de voz e participação ativa para essas pessoas também precisam ser assegurados, permitindo que expressem suas demandas, experiências e visões sobre as mudanças necessárias.
Por fim, o fortalecimento de fóruns e debates sobre diversidade, revisões contínuas das práticas institucionais e a criação de políticas públicas que dialoguem com as realidades locais podem consolidar ambientes mais inclusivos. O desafio é complexo e exige compromisso coletivo: desconstruir privilégios, reconhecer assimetrias históricas e construir novos horizontes de convivência baseados no respeito irrestrito à dignidade humana.
Paulo Roberto Oliveira da Silva
Especialista em Direito Público e advogado no escritório Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados (SBSA Advogados)