Efeitos do voto de qualidade na CARF
Mudanças recentes no CARF extinguiram o voto de qualidade favorável ao contribuinte em caso de empate, restaurando o poder de decisão ao fisco.
terça-feira, 10 de dezembro de 2024
Atualizado em 9 de dezembro de 2024 10:44
Originalmente cabia ao presidente do órgão julgador - Turma, Câmara ou CARF - proferir o voto de qualidade na hipótese de empate, conforme dispunha o §9º, do art. 25 do decreto 70.235/72, que rege o processo administrativo tributário da União.
Esse critério não teria maiores problemas se os julgadores do CARF, originários dos quadros da Receita Federal ou da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, se posicionassem como julgadores independentes.
De fato, o CARF e a Secretaria da Receita Federal situam-se no mesmo patamar hierárquico. Não há subordinação dos julgadores do CARF às instruções normativas da SRF, como há em relação aos julgadores das Delegacias Regionais de Julgamento diretamente subordinados à estrutura da Secretaria da Receita Federal.
Mas, a incapacidade dos representantes do fisco de separar as suas atribuições enquanto agentes do fisco, do agente público investido na função de julgar levou à quebra de paridade no CARF.
Dessa forma, o representante do fisco passou a deter o poder de provocar o empate para, em seguida, proferir ele próprio o voto de desempate, conhecido como voto de qualidade, invariavelmente a favor do fisco, com raríssimas exceções.
Isso provocou a reação dos contribuintes que conseguiram inserir o art. 19-E na lei 10.522/02 dispondo no sentido de que em caso de empate "não se aplica o §9º, do art. 25 do decreto 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte".
Deu-se mais do que uma guinada de 180º, pois sequer era preciso o voto de qualidade a ser proferido pelo representante do contribuinte.
Logo veio a reação legislativa que aprovou a lei 14.689, de 20/9/23, celeremente sancionada pelo Chefe do Executivo, dispondo em seus arts. 1º e 2º:
Art. 1º Os resultados dos julgamentos no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), na hipótese de empate na votação, serão proclamados na forma do disposto no § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, nos termos desta Lei.
Art. 2º O Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, passa a vigorar com as seguintes alterações:
"Art. 14-B. (VETADO)"
"Art. 25 ....
§ 9º-A. Ficam excluídas as multas e cancelada a representação fiscal para os fins penais de que trata o art. 83 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, na hipótese de julgamento de processo administrativo fiscal resolvido favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade previsto no § 9º deste artigo.
O novo texto situou-se na esfera quase que intermediária entre os interesses do fisco e os do contribuinte, deixando de lado o radicalismo de um e de outro.
O voto de qualidade a ser proferido pelo representante do fisco sofreu uma flexibilização pela inserção do §9º-A do art. 25 do decreto 70.235/72.
O propósito deste texto é o de dar exata interpretação a esse §9º-A.
Para mim resta claro que na hipótese de o processo administrativo tributário for resolvido favoravelmente ao fisco pelo voto de qualidade previsto no §9º do art. 25 do decreto 70.235/72, o contribuinte vencido fica livre das multas aplicadas, bem como cancelada a representação fiscal para fins penais.
O texto é claro como água, não cabendo qualquer tipo de tergiversação.
Realmente, em um primeiro momento a SRF baixou o IN 2.167/23 dando fiel cumprimento ao disposto no §9º-A, do art. 25 do decreto 70.235/72.
Todavia, essa escorreita IN foi revogada pela IN 2.205/24, que restringiu o benefício da exclusão de multas às hipóteses em que o voto de qualidade tenha sido proferido no exame do mérito, o que exclui as hipóteses de extinção do processo pelo reconhecimento da decadência ou da prescrição.
Essa IN de 2.205/24, que extrapola do âmbito de regulamentação de dispositivo legal, foi secundada pela PGFN - Procuradoria Geral da Fazenda Nacional que exarou parecer no mesmo sentido da viciada IN 2.205/24.
Onde a lei não distingue, não é dado ao interprete distinguir, diz o velho brocardo.
O §9º-A, do art. 25 do decreto 70.235/72 refere-se a "julgamento do processo administrativo fiscal resolvido favoravelmente à Fazenda Pública" pelo voto de qualidade, sem distinguir a decisão de mérito da decisão pelo exame da preliminar, decadência ou prescrição, conforme o caso.
Já há pronunciamento da Justiça Federal no sentido da tese por nós aqui esposada.
Trata-se de um caso levado ao CARF por uma produtora de petróleo e gás arguindo como preliminar a decadência do direito de constituir o crédito tributário.
Essa arguição de decadência foi acolhida pelo CARF por meio do voto de minerva.
Entretanto, o fisco não deu cumprimento ao julgado administrativo, escudado na IN 2.205/24 e no parecer da PGFN que prescrevem em sentido contrário ao disposto no §9º-A, do art. 25 do decreto 20.235/72.
Foi, então, o caso levado ao Judiciário.
O juiz Federal da causa acolheu a argumentação da autora e consignou em sua decisão, que a IN 2.205/24 que revogou a IN 2.167/23 "extrapolou ao querer inovar a ordem jurídica criando restrições não previstas em lei." Essa decisão foi fundamentada, também, na decisão do desembargador Marcos Abrahão, do TRF2, que negou um agravo da União interposto contra liminar concedida a favor de uma empresa (processo 507560-89.2024.02.5101).
In claris cessat interpretatio, diz o velho provérbio latino.
A SRF e a PGFN distorcem a favor do fisco o dispositivo legal redigido com clareza lapidar.
Em um órgão paritário é impossível evitar situações de empate.
Por isso, para manter a neutralidade que deve existir nas relações jurídico-tributárias no campo material e no campo processual, proponho que o voto de qualidade a ser proferido seja anualmente alternado entre o presidente (representante do fisco) e o vice-presidente (representante dos contribuintes). Outra alternativa seria a de fazer o revezamento anual da presidência do órgão julgador entre o representante do fisco e o representante dos contribuintes.
Com essa sistemática, penso que será possível ao CARF, no longo prazo, firmar uma jurisprudência equilibrada sobre temas controversos.
Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.