A ingestão de álcool, por si só, caracteriza o dolo eventual?
A diferenciação entre o dolo eventual e a culpa consciente é uma das questões mais desafiadoras e debatidas na dogmática penal, mas as implicações jurídico-penais e axiologias são distintas.
sexta-feira, 6 de dezembro de 2024
Atualizado às 10:20
A principal crítica é que tanto o dolo eventual quanto a culpa consciente dependem de uma análise da subjetividade do agente no momento da conduta. Essa análise é muitas das vezes, influenciada por elementos externos e pela reconstrução narrativa do evento, gerando insegurança jurídica.
Outro ponto alvo de críticas é o critério volitivo (assunção do risco). Este critério é incontroverso porque a aceitação do resultado pode ser difícil de provar. Há autores, como Roxin, que argumentam que o dolo eventual deveria ser identificado não apenas pela aceitação subjetiva, mas também pela objetiva alta probabilidade do resultado.
Por outro lado, no critério da confiança (culpa consciente), a ideia de que o agente confia na sua capacidade de evitar o resultado também é criticada por sua subjetividade. Além disso, questiona-se se essa confiança é realmente genuína ou se está atrelada a uma atitude de indiferença, típica do dolo eventual.
A análise da aplicação da figura do dolo eventual é comum nos casos de homicídio cometido no trânsito. Esse panorama sofreu influência da lei 13.546/17, que trouxe alterações no CTB - Código de Trânsito Brasileiro. Em seu art. 302 - que tipifica o crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor -, foi acrescentada uma previsão de pena mais alta para quem dirige sob a influência de álcool ou qualquer substância psicoativa que cause dependência, mas ainda menor que a do homicídio doloso.
Em um determinado caso no qual um réu, após ingerir bebidas alcoólicas, saiu dirigindo em velocidade acima do permitido e, sem respeitar a sinalização, atingiu outro veículo, ocasião em que o motorista veio a óbito, esse debate foi levantado no ARESp 1.166.037. Na ocasião, se discutiu a capitulação penal desse fato. A defesa, em razão das alterações promovidas pela lei 13.546/17, pleiteou a retirada do dolo eventual e a desclassificação do crime para homicídio culposo.
Nesse sentido, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca explicou que o parágrafo 3º do art. 302 do CTB - introduzido pela lei 13.546/17 - apenas previu que, se o agente, por ocasião do acidente, estiver sob influência de álcool ou outra substância assemelhada, sofrerá pena mais grave (de cinco a oito anos de reclusão). "Não significa, por isso, dizer que aqueles que dirigiam embriagados ou sob efeitos de substâncias psicoativas e se envolverem em homicídio de trânsito (dolo eventual) tenham que, de pronto, ser beneficiados com a desclassificação do delito para a modalidade culposa", afirmou o relator.
Por outro lado, em 2018, no REsp 1.689.173, a 6° turma concluiu que embriaguez do motorista, por si só, não é suficiente para a determinação do dolo eventual em acidente de trânsito com resultado morte.
Em caso parecido ao ARESp 1.166.037, a situação fática delineou-se em uma ré que, ao sair de uma festa em que ingeriu bebidas alcoólicas e, após assumir a direção de veículo, colidiu com outro carro, causando a morte do motorista. Neste caso, a ré foi pronunciada por homicídio simples.
O ministro Rogério Schietti Cruz, relator do pedido de habeas corpus, explicou que, com base na doutrina majoritária, somente haverá assunção do risco - apto a caracterizar o dolo eventual - quando o agente tenha tomado como séria a possibilidade de lesar ou colocar em perigo o bem jurídico e não se importando com isso, demonstrando assim, que o resultado era indiferente.
Entretanto, observa-se na esfera do Direito, a dificuldade de se identificar o elemento psíquico que configura o dolo eventual do agente, ou seja, a conclusão judicial sobre a previsão e o consentimento do réu em relação ao resultado morte na direção de veículo. Em muitos tribunais, a embriaguez, isoladamente, já justifica a existência do dolo eventual. Todavia, essa posição equivaleria a admitir que qualquer indivíduo que venha a conduzir veículo em via pública com capacidade psicomotora alterada em razão da ingestão de álcool responderá por homicídio doloso.
De fato, a embriaguez ao volante é circunstância negativa que deve contribuir para a análise do elemento anímico que move o agente. Contudo, não seria a melhor solução presumir o dolo eventual como elemento inerente ao comportamento do motorista que, sob efeito de álcool - qualquer que seja a quantidade ingerida -, causa o acidente com resultado morte, ainda que não haja outro elemento que indique a conduta dolosa.
No julgamento do REsp 1.689.173/SC, novamente o ministro Rogério Schietti afirmou que: A embriaguez do agente condutor do automóvel, sem o acréscimo de outras peculiaridades que ultrapassem a violação do dever de cuidado objetivo, inerente ao tipo culposo, não pode servir de premissa bastante para a afirmação do dolo eventual. Conquanto tal circunstância contribua para a análise do elemento anímico que move o agente, não se ajusta ao melhor direito presumir o consentimento do agente com o resultado danoso apenas porque, sem outra peculiaridade excedente ao seu agir ilícito, estaria sob efeito de bebida alcoólica ao colidir seu veículo contra o automóvel conduzido pela vítima.
Ademais, ressaltou o ministro que a jurisdição criminal não pode, ante a deficiência legislativa na tipificação das condutas humanas, impor responsabilidade penal além da que esteja em conformidade com os dados constantes dos autos e com a teoria do crime, sob pena de render-se ao punitivismo inconsequente, de cariz meramente simbólico, contrário à racionalidade pós-iluminista que inaugurou o Direito Penal moderno.
Claus Roxin sugere que o dolo eventual deve ser presumido quando o agente atua em uma situação de alto risco objetivo, ou seja, quando a probabilidade do resultado é tão elevada que não seria razoável afirmar que o agente confiava genuinamente em evitá-lo. Entretanto, deve-se também avaliar a relação de risco criada pelo agente, isso reduziria a dependência de elementos subjetivos priorizando critérios de política criminal. Há de se salientar também uma necessidade urgente de adotar posições mais claras e uniformes entre os tribunais, para assim garantir a segurança jurídica da aplicação correta da legislação penal.