Whistleblowing: Breves notas sobre a evolução histórica do instituto
Whistleblowing remonta à Antiguidade e, hoje, integra legislações modernas, sendo essencial no combate à corrupção e fraudes globais.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2024
Atualizado às 09:18
Este é o primeiro de uma série de artigos destes autores sobre whistleblowing. Neste primeiro artigo, apresentaremos uma síntese da evolução histórica do instituto, explicando como ele progressivamente evoluiu de um experimento americano para se tornar um mecanismo presente nas legislações de ao menos 62 países.
Como ponto de partida, entenderemos o whistleblower sob uma perspectiva pragmática, como alguém que reporta desperdício, fraude, abusos, ato de corrupção, ou riscos à saúde e segurança públicas, dentre outros, para alguém em posição de sanar o ocorrido1. A denúncia pode ser efetuada por um canal interno ou para terceiros alheios à estrutura da organização, pública ou privada, podendo ser endereçada à alta gestão da organização ou também a órgãos regulatórios, auditores, autoridades atuantes no combate à corrupção, gestores públicos ou à imprensa2. Os whistleblowers - ou denunciantes, como passaremos a denominá-los daqui em diante - não se confundem com os colaboradores/delatores que celebram acordos de colaboração premiada, na medida em que, diferentemente destes, não participaram da prática ilícita reportada3.
Em termos históricos, a prática do whistleblowing remonta à Antiguidade. Os gregos tinham um termo próprio para defini-la: parrhesia, que pode ser traduzido para algo similar a "discurso franco" ou "corajoso". A ideia era a de que, ao praticar a parrhesia, o indivíduo mostrava o seu comprometimento pessoal com a verdade, a despeito dos riscos gerados à sua vida, por entender que possuía um dever de ajudar outras pessoas4.
Avançando para a contemporaneidade, o primeiro caso histórico de concessão de proteção jurídica a denunciantes ocorreu no ano de 1777, nos Estados Unidos. No contexto da Guerra de Independência dos Estados Unidos, 10 marinheiros americanos tomaram a decisão de denunciar o comandante de seu navio, o Comodoro Esek Hopkins, pela prática de tortura de prisioneiros britânicos, conduta contrária às políticas determinadas pelo Congresso Continental. Após receber a denúncia, o Congresso Continental decidiu remover Esek Hopkins de seu posto, mas a controvérsia não se encerrou aí5. Esek Hopkins decidiu processar os marinheiros pelo crime de calúnia, o que levou à prisão de dois deles enquanto estavam no estado de Rhode Island6, onde a família Hopkins exercia bastante influência política (o irmão de Esek chegara a ser governador do estado)7.8
Os marinheiros presos decidiram então buscar apoio do Congresso Continental, afirmando que haviam sido presos por cumprir o seu dever. Na sequência, em 1778, o Congresso aprovou uma resolução que pode ser considerada a primeira lei moderna de proteção a denunciantes, intitulada Whistleblower Protection Act, dispondo que era dever de todos os cidadãos informarem ao Congresso ou às autoridades competentes sobre eventuais condutas ilícitas ou fraudes praticadas por agentes públicos ou pessoas a serviço do Estado9.
Décadas depois, sobreveio a segunda iniciativa legislativa norte-americana nesta área: o False Claims Act de 1863, que segue em vigor até hoje, após uma série de reformas. A lei foi editada no contexto da Guerra Civil Americana, quando ficara claro que muitos fornecedores vinham oferecendo produtos e serviços de qualidade duvidosa às tropas da União. A solução foi conceber uma lei para coibir fraudes praticadas em contratações públicas ou contra o governo10.
O False Claims Act prevê que os denunciantes podem ser recompensados por denunciar fraudes que gerem danos ao erário federal americano. Os denunciantes mover ações judiciais contra os responsáveis por atos ilícitos que gerem danos econômicos ao governo federal, atuando em nome do governo nesses processos (as chamadas "qui tam actions")11. Caso a denúncia resulte em um processo bem-sucedido, a recompensa pode oscilar entre 15% e 30% do que vier a ser recuperado pelo erário. Os acordos e as condenações baseados na lei costumam envolver valores substanciais, já que o envolvido na conduta ilícita deve pagar indenização de três vezes o valor do dano (treble damages), mais uma multa que serve para corrigir monetariamente a condenação12.
A lei e suas reformas foram redigidas para serem abrangentes: (i) elas são aplicáveis mesmo a condutas praticadas fora dos Estados Unidos - a única exigência é a de que exista um gasto, uma licitação, ou uma contratação federal norte-americana envolvida; (ii) são invocáveis em ações de natureza civil ou penal; e (iii) qualquer pessoa pode atuar como denunciante, mesmo um estrangeiro ou organizações não-governamentais13.
A conduta de um denunciante pode gerar impactos também nas esferas política e jurídica. Por exemplo, o famoso caso Enron14, em 2001, foi iniciado por uma denúncia da executiva Sherron Watkins. Este caso deu início a um movimento nos Estados Unidos que desembocou na edição do Sarbanes-Oxley Act de 2002, legislação que coibe fraudes contábeis e que gerou o fortalecimento dos mecanismos de controle interno de empresas, servindo de referência para diversas legislações similares ao redor do mundo.
Mais recentemente, no ano fiscal de 2023, o Department of Justice dos Estados Unidos (DOJ) anunciou ter alcançado 543 acordos e vereditos favoráveis embasados no False Claims Act, o maior índice já alcançado pela instituição em um único ano, totalizando US$2,68 bilhões em dinheiro recuperado apenas naquele ano15. Desse montante, aproximadamente US$2,3 bilhões derivavam de ações movidas com base em informações prestadas por denunciantes16. No mesmo período, o governo americano pagou em torno de US$349 milhões em recompensas a denunciantes. Em média, as informações compartilhadas por denunciantes deram ensejo ao ajuizamento de 13 novos casos por semana17.
Vale frisar que o False Claims Act é apenas uma de uma série de leis americanas que conferem proteção a denunciantes. Outros exemplos são: (i) o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), voltado ao combate à corrupção transnacional; (ii) o Dodd-Frank Act, lei editada após a crise financeira de 2008, ensejando a criação de programas de proteção a denunciantes pela Securities and Exchange Commission (SEC) e pela Commodity Futures Trading Commission (CFTC); (iii) a IRS Whistleblower Law, voltada ao combate de fraudes fiscais18.
O que se iniciou como uma empreitada legislativa norte-americana acabou se espalhando pelo mundo. A proteção a denunciantes é considerada albergada pelo direito internacional desde 2003, quando foi firmada a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção19, aprovada pelo Congresso Nacional brasileiro por meio do Decreto Legislativo nº 348/2005 e promulgada pelo Decreto Presidencial nº 5.687/200620. No entanto, a proteção conferida por essa Convenção é reduzida, pois muitos dos países signatários não têm qualquer legislação sobre whistleblowing, enquanto outros possuem legislações consideradas fracas21.
Em 2019, a União Europeia editou a European Union Whistleblower Directive (2019/1937) (EU Directive), determinando que seus estados-membros implementassem em seus ordenamentos locais direitos e obrigações regulando a atuação de denunciantes, organizações privadas, e dos próprios estados-membros22. Embora vários países europeus já conferissem algum nível de proteção aos denunciantes, a ideia por trás da EU Directive era fornecer padrões mínimos de proteção aplicáveis em todos os estados-membros, uniformizando a legislação sobre o tema23. No início de 2024, dos 27 países que compõem o bloco, apenas Estônia e Polônia ainda não haviam se adaptado à EU Directive24.
Em 2021, a International Bar Association (IBA) emitiu um relatório estimando que um total de 48 países possuíam algum tipo de legislação sobre whistleblowing, número que poderia chegar a 62 quando todos os membros da União Europeia aderissem à EU Directive25. O estudo identificou legislações sólidas sobre whistleblowing em países como Austrália, Bósnia, Croácia, Quênia, Kosovo, África do Sul, Moldávia, Sérvia e Tanzânia. Ou seja, há exemplos de arcabouços regulatórios bem estruturados em diversas partes do mundo, em países que se encontram em diferentes estágios de desenvolvimento econômico.
O Brasil não se encontra - ainda - nessa lista. Na verdade, sob a ótica dos observadores internacionais, o Brasil era até pouco tempo atrás considerado um país que não possuía legislação específica regendo o whistleblowing26. Nos últimos anos, no entanto, iniciativas regulatórias esparsas vêm sendo implementadas para tentar preencher esse vácuo. Em 10 de janeiro de 2018, foi publicada a Lei nº. 13.608/2018, que a nosso ver instituiu uma figura próxima ao whistleblower no ordenamento jurídico brasileira.27
Feita essa breve apresentação histórica do instituto do whistleblowing, apresentaremos, nos próximos artigos da série, as melhores práticas internacionais nas esferas pública e privada, a forma de proteção aos denunciantes e a concessão de incentivos financeiros, bem como a análise do caso brasileiro.
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1 Definição adotada pelo National Whistleblower Center. Informação obtida em: https://www.whistleblowers.org/what-is-a-whistleblower/, acesso em 17.11.2024.
2 BANISAR, David. "Whistleblowing: international standards and developments". Fevereiro/2011. P. 4. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=1753180, acesso em 17.11.2024.
3 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. CAVALI, Marcelo Costenaro. "Proteger (e recompensar?) os denunciantes de boa-fé? (parte 1)". Fevereiro/2024, Portal Consultor Jurídico.
4 MANSBACH, Abraham. "Whistleblowing as Fearless Speech: The Radical Democratic Effects of Late". In "Whistyleblowing and Dermocratic Values", ed. LEWIS, David. VANDEKERCHKOVE. International Whistleblowing Research Networ, 2011. Pp. 13-14.
5 KOHN, Stephen M. "The Whistle-Blowers of 1777". New York Times, publicado em 13.6.2011, disponível em: https://www.nytimes.com/2011/06/13/opinion/13kohn.html?_r=, acesso em 17.11.2024.
6 Idem, ibidem.
7 GEORGE, Betsy. "America's First Whistleblowers". Disponível em: https://www.sc.edu/about/offices_and_divisions/audit_and_advisory_services/about/news/2021/americas_first_whistleblowers.php, acesso em 17.11.2024.
8 GEORGE, Betsy. "America's First Whistleblowers". Disponível em: https://www.sc.edu/about/offices_and_divisions/audit_and_advisory_services/about/news/2021/americas_first_whistleblowers.php, acesso em 17.11.2024.
9 KOHN, Stephen M. "The Whistle-Blowers of 1777".
10 National Whistleblower Center. "The False Claims Act". Disponível em: https://www.whistleblowers.org/protect-the-false-claims-act/, acesso em 17.11.2024.
11 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. CAVALI, Marcelo Costenaro. "Proteger (e recompensar?) os denunciantes de boa-fé? (parte 1)".
12 Informação obtida em: https://www.justice.gov/civil/false-claims-act, acesso em 17.11.2024.
13 Idem, ibidem.
14 O caso Enron foi um escândalo financeiro que envolveu uma das maiores empresas de energia e telecomunicações do mundo, e que levou à falência da empresa em dezembro de 2001.
15 Informação obtida em: https://www.justice.gov/opa/pr/false-claims-act-settlements-and-judgments-exceed-268-billion-fiscal-year-2023, acesso em 17.11.2024.
16 Idem, ibidem.
17 Idem, ibidem.
18 National Whistleblower Center. "U.S. Whistleblower Laws". Disponível em: https://www.whistleblowers.org/major-u-s-whistleblower-laws/, acesso em 17.11.2024.
19 National Whistleblower Center. "Guidance for Whistleblowers Outside the U.S.". Disponível em: https://www.whistleblowers.org/know-your-rights/international-whistleblower/.
20 Informação obtida em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/articulacao-internacional-1/convencao-da-onu/a-convencao/a-convencao, acesso em 17.11.2024.
21 National Whistleblower Center. "Guidance for Whistleblowers Outside the U.S.".
22 Informação obtida em: https://www.whistleblowers.org/what-is-the-european-whistleblower-directive/, acesso em 17.11.2024.
23 KLAPWIJK, Laura. HARTMAN, Michiel. "The EU Whistleblower Directive; what does it mean for you?". Disponível em: https://www2.deloitte.com/nl/nl/pages/finance/articles/the-eu-whistleblower-directive-what-does-it-mean-for-you.html, acesso em 17.11.2024.
24 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. CAVALI, Marcelo Costenaro. "Proteger (e recompensar?) os denunciantes de boa-fé? (parte 2)". Fevereiro/2024, Portal Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-fev-12/proteger-e-recompensar-os-denunciantes-de-boa-fe-parte-2/, acesso em 17.11.2024.
25 International Bar Association. "Are Whistleblowing Laws Working? A Global Study of Whistleblower Protection Litigation". Março/2021. Disponível em: www.ibanet.org/MediaHandler?id=49c9b08d-4328-4797-a2f7-1e0a71d0da55, p. 8. Acesso em 17.11.2024.
26 Por exemplo, em relatório emitido em 2019, o escritório europeu Freshfields Bruckhaus Deringer descrevia que o Brasil não possuía uma legislação específica sobre whistleblowing, embora dispositivos da Lei nº 12.846/2013 incentivassem a implementação de canais corporativos de denúncias, enquanto a legislação trabalhista conferia algum nível de proteção contra retaliações aos funcionários denunciantes. Informação disponível em: https://www.freshfields.com/globalassets/services-page/people-and-reward/whistleblower-protection-global-guide-may-20192.pdf, acesso em 17.11.2024.
27 A Lei nº. 13.608/2018 dispõe sobre o serviço telefônico de recebimento de denúncias e sobre recompensa por informações que auxiliem nas investigações policiais; e altera o art. 4o da Lei nº 10.201, de 14 de fevereiro de 2001, para prover recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública para esses fins. ATHAYDE, Amanda. MATOS, Mylena. Denunciante Premiado? Portal Jota, 28.3.2018. Disponível em: https://www.amandaathayde.com.br/_files/ugd/62c611_dd6e33c498814660839415775dc9e0db.pdf, acesso em 17.11.2024.
Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I - Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.