Responsabilidade de agentes públicos por atos lesivos ao erário - Parte 2
Este artigo dá seguimento às considerações sobre a responsabilidade de agentes públicos por atos lesivos ao erário, focando na apuração pelos Tribunais de Contas.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2024
Atualizado às 10:26
Em artigo anterior publicado no Migalhas, foi abordada a responsabilidade de agentes públicos por atos lesivos ao erário, informada no Brasil pelo princípio da independência de instâncias, o que permite a responsabilidade civil, administrativa e criminal diante da malversação, desvio ou dilapidação do erário, em especial a praticada com dolo.
O modelo brasileiro de independência de instâncias é criticável na medida em que sugere a legitimação do bis in idem na punição por atos lesivos ao erário, em especial quando se permite a comunicação entre as sanções, o que é particularmente importante na responsabilidade criminal, haja vista os efeitos da sentença penal condenatória que podem repercutir na vida funcional do funcionário público nos termos do art. 92, I do CP brasileiro (decreto-lei Federal 2.848/40)1.
Todavia, a par da responsabilidade civil (CF/88, art. 37, §§4º e 5º), criminal (dentre outros, pelos tipos penais dos arts. 359-A a 359-H do CP/40 - crimes contra as finanças públicas), administrativa por infração disciplinar (PAD) e administrativa por ato ímprobo (lei ordinária Federal 8.429/92), exsurge a responsabilidade administrativo-financeira por meio de tomada de contas especial autuada junto aos Tribunais de Contas (da União, dos Estados e dos municípios).
A atuação dos Tribunais de Contas é evidente desde o período monárquico, nas origens do Brasil enquanto Estado-nação, na figura dos antigos Tribunais do Tesouro, que tinham como principal atribuição exercer a fiscalização jurídico-financeira do erário régio. Convertidos em Tribunais de Contas após o estabelecimento da República em 1889, e incorporando em seu ofício o modelo federativo adotado pelo Estado brasileiro, os Tribunais de Contas atualmente organizam-se em circunscrições federais (TCU) e estaduais (TCEs e TCMs), ressalvados os únicos Tribunais de Contas de município no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Considerados órgãos judicantes (administrativos com atribuição decisória para solução de conflitos de interesses)2, ressentem-se pela adoção do sistema de jurisdição una (unidade ou unicidade de jurisdição) que imputa ao Poder Judiciário o protagonismo na solução de controvérsias, provendo com definitividade suas decisões. Nada obstante ampliando esse escopo às decisões de Cortes de Arbitragem por força da lei ordinária Federal 9.307/96 com chancela do CPC/15, ainda assim subsiste no Brasil o dogma da unidade de jurisdição, não se acolhendo o sistema de contencioso administrativo, maduro na Europa continental, e cuja aplicação vindica-se tanto aqui quanto noutros estudos sobre o tema3.
Dessa forma, a atividade exercida pelas Cortes de Contas pode ser sujeita à revisão pelo Poder Judiciário, o que demonstra grave desequilíbrio na divisão funcional do poder, haja vista que os Tribunais de Contas possuem a expertise necessária para fiscalizar no campo jurídico-financeiro a atividade administrativa exercida por funcionários públicos, avaliando nuances e vicissitudes muitas vezes olvidadas pelo Poder Judiciário. Seu julgamento baseado na técnica e sua formação cuja atividade-fim é exercida por auditores de controle externo e membros do Ministério Público Especial de Contas estrutura tecnocracia que detém legitimidade para exercer de forma autônoma seu mister. Ainda assim, permanece o dogma da unidade de jurisdição no Brasil.
Independente das vindicações aqui produzidas, fato é que os Tribunais de Contas podem ser caracterizados como mais um órgão persecutor da responsabilidade de agentes públicos por atos lesivos ao erário, e o fazem por meio de procedimentos como o de tomada de contas especial. Esse é o mecanismo usual para ressarcimento ao erário no campo da fiscalização jurídico-financeira, e é aplicável a todos os funcionários públicos lato sensu - desde agentes políticos até servidores públicos administrativos.
A tomada de contas especial executada no TCU, por exemplo, é regida pelos arts. 8º e 9º da lei ordinária Federal 8.443/1992 (lei orgânica do Tribunal de Contas da União), bem como por atos administrativos normativos como a IN - Instrução Normativa TCU 71/12. Por sua vez, cada uma das Cortes de Contas existentes no Brasil possui suas próprias normas para tomada de contas especial, normalmente semelhantes por reprodução às normas aplicáveis ao TCU. Essa uniformidade é fruto do modelo brasileiro, na medida em que se reduzem as distorções no campo da jurisprudência administrativa por meio da prática de reprodução parcial ou total das normas da União, tomando-as como referência para as legislações estaduais sobre a matéria.
O sistema de independência de instâncias brasileiro, nesse sentido, uma vez mais se manifesta na medida em que a apuração por meio de tomada de contas especial ocorre independente da responsabilidade criminal do agente público, por exemplo. Logo, além da comunicação entre os foros cível e criminal e entre o foro criminal e o ente público correspondente, em especial no que concerne à perda de cargo público como efeito da sentença penal condenatória, há a possibilidade de ressarcimento ao erário por meio de tomada de contas especial realizada no âmbito dos Tribunais de Contas.
Mesmo após séculos de existência, a representação de interesses no bojo das Cortes de Contas continua uma tabula rasa para muitos advogados, haja vista o diminuto referencial teórico existente no Brasil sobre o tema, em especial na relação entre a responsabilidade criminal e administrativa de tal jaez, o que na prática muitas vezes ocorre quando se perquire, via tomada de contas especial, o ressarcimento ao erário decorrente da prática, em tese, de determinado crime. A relação entre delitos e infrações funcionais sem que se racionalize de forma devida o caso concreto induz, certamente, à defesa de odioso bis in idem punitivo, o que destoa dos postulados normativos da razoabilidade e da proporcionalidade.
Portanto, a responsabilidade por atos lesivos ao erário tem na figura dos Tribunais de Contas importante instituição persecutória, sendo necessário aos advogados conhecer não apenas os aspectos puramente normativos que envolvem as Cortes de Contas, mas também seu contexto no campo do regime de historicidade de tal instituição, a fim de melhor compreenderem a dinâmica de suas atividades e o imaginário que cerca suas decisões que, a despeito de serem desprovidas da definitividade inerente às decisões judiciais, influenciam sobremaneira a conduta da Administração Pública no trato com os condenados nos procedimentos de tomada de contas especial. De grande relevo, pois, a capacitação dos advogados em tal matéria, que demanda profissionais cada vez mais comprometidos com o exercício do direito fundamental de ampla defesa (CF/88, art. 5º, LV) sem se descurar da proteção do erário, dever de todos os cidadãos.
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1 Cf. PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal. v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
2 Cf. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
3 Cf. CAVADAS, Divo Augusto Pereira Alexandre. Crimes contra as Finanças Públicas: responsabilidade administrativa e proposta de descriminalização nos limites do Direito Contraordenacional. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. São Paulo: FADISP, 2024.