Responsabilidade civil do poder concedente perante usuários de serviços públicos
A responsabilidade civil do Estado prevê reparação de danos a terceiros, com regras claras para concessionárias e excludentes como força maior.
sábado, 30 de novembro de 2024
Atualizado em 29 de novembro de 2024 09:30
A responsabilidade civil do Estado está devidamente prevista na Legislação, traduzindo-se na obrigação de indenizar eventuais danos a terceiros.
A CF/88 estabelece, no parágrafo 6º do art. 37, a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público e de direito privado prestadoras de serviços públicos diante dos danos causados a terceiros.
"Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
........
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".
O STF sedimentou o entendimento, através de inúmeros julgados, que a responsabilização do ente estatal é inafastável, tal como exemplo a seguir:
Trata-se de agravo contra decisão que negou seguimento ao recurso extraordinário interposto em face de acórdão assim ementado:
.....
1.A responsabilidade civil objetiva do Estado, na forma do art. 37, § 6º, da Constituição Federal, configura-se, com base na teoria do risco administrativo, quando haja fato imputável à administração, concretizado por agente público, danoso a terceiro. O Estado demandado apenas se desonera do dever de indenizar caso comprove a ausência de nexo causal, ou seja, prove a culpa exclusiva da vítima, caso fortuito, força maior, ou fato exclusivo de terceiro
STF - ARE: 1156990 ES - ESPÍRITO SANTO, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 25/10/2018, Data de Publicação: DJe-231 30/10/2018
O próprio STJ já enfrentou a questão de quem é competente para o julgamento das demandas relacionadas à delegação de serviços e em 2002 a Corte Especial definiu entendimento que é seguido pelo tribunal até hoje. Prevaleceu entre os ministros a tese de que tais questões devem ser decididas pela Segunda Seção, especializada em direito privado. O argumento que prevaleceu foi o de que a concessão dos serviços pelo Estado para uma empresa significa que esta assume integral responsabilidade pelas ações.
"Ainda que exerça atividade concedida pelo Estado, responde em nome próprio pelos seus atos, devendo reparar os danos ou lesões causadas a terceiros. De efeito, a existência da concessão feita pelo Estado, por si, não o aprisiona diretamente nas obrigações de direito privado, uma vez que a atividade cedida é desempenhada livremente e sob a responsabilidade da empresa concessionária", resume a ementa do julgamento do Resp 287.599.
Em determinados casos, mesmo a concessão integral dos serviços não é suficiente para afastar a responsabilidade solidária do Estado para responder pelos possíveis danos. Ao analisar um caso de danos ambientais decorrentes da poluição de rios no estado de São Paulo, a Segunda Turma do STJ decidiu que o município que firma convênio para serviços de água e esgoto com uma empresa é fiador deste convênio, não podendo excluir sua responsabilidade por eventuais danos causados.
"O município é responsável, solidariamente, com o concessionário de serviço público municipal, com quem firmou convênio para realização do serviço de coleta de esgoto urbano, pela poluição causada no Ribeirão Carrito, ou Ribeirão Taboãozinho (Resp 28.222, relatora para o acórdão ministra Nancy Andrighi).
Esse julgamento é citado como paradigma para estabelecer a possibilidade de responsabilização solidária do Estado, mesmo nos casos em que o serviço foi concedido integralmente.
A responsabilização do Estado também pode ser subsidiária, e pode surgir quando é comprovado que a concessionária não tem como arcar com a reparação devida. Nesses casos, o poder público assume a obrigação principal de indenizar ou reparar o dano.
As empresas que firmam contratos para a execução de serviços como fornecimento de água ou energia, ou construção e conservação de rodovias, são responsabilizadas pelos possíveis danos na mesma proporção do poder público executando os mesmos serviços. Para o STJ, é aplicada a teoria de risco administrativo do negócio.
O ministro Villas Bôas Cueva resumiu o entendimento do tribunal no julgamento do Resp 1.330.027:
"Quanto à ré, concessionária de serviço público, é de se aplicar, em um primeiro momento, as regras da responsabilidade objetiva da pessoa prestadora de serviços públicos, independentemente da demonstração da ocorrência de culpa. Isso porque a recorrida está inserta na Teoria do Risco, pela qual se reconhece a obrigação daquele que causar danos a outrem, em razão dos perigos inerentes a sua atividade ou profissão, de reparar o prejuízo".
Ao julgar o RESP 1.095.575, a ministra Nancy Andrighi esclareceu que a responsabilidade objetiva da concessionária de serviços públicos, tendo em vista o risco inerente à atividade exercida já existia inclusive antes da introdução do Código Civil de 2002.,
Surge então a questão nodal a ser enfrentada: "Quando" e "de que forma" é transferida a responsabilidade civil para as concessionárias de serviços públicos e, ainda, "em que medida' é transferida ou "permanece" de responsabilidade do Poder Concedente?
Através dos respectivos contratos de concessão, foi introduzida, no ordenamento jurídico, a figura da concessionária de serviço público, pessoas jurídicas que passam a exercer as atividades originalmente afetas ao Estado. Como consequência disso. a responsabilidade estatal por tais serviços são transferidos às pessoas de direito privado, conforme os exatos termos contratuais, na forma da Legislação vigente.
A Lei 8.987 de 1995 expressamente disciplina que tais empresas concessionárias prestam os respectivos serviços por sua conta e risco, e em caso de danos assumem a responsabilidade objetiva de repará-los, tal como se o próprio Estado fosse, tanto que com base na lei, o Estado responde por eventuais danos causados pelas concessionárias de forma subsidiária.
A União Federal, na qualidade de Poder Concedente, no uso da competência que lhe confere o art. 21, inciso XII, letra "b", da Constituição Federal, firmou com as concessionárias os respectivos Contrato de Concessão de Serviços Públicos, que se regerá pela Legislação vigente específica e ainda pelas normas e regulamentos expedidos pelo Poder Concedente e pelas condições estabelecidas nas suas cláusulas contratuais.
A própria Legislação disciplina que são três as possibilidades de exclusão de responsabilidade civil: a culpa exclusiva da vítima, o fato de terceiro e o caso fortuito ou força maior. As excludentes da responsabilidade civil são causas que atacam os pressupostos da responsabilidade e por atingirem um de seus elementos (ação ou omissão, dolo ou culpa e relação de causalidade) rompem o nexo causal e podem tirar a possibilidade de indenizar.
Causadores de polêmicas na responsabilidade civil, importante ressaltar a dificuldade em distinguir o caso fortuito e a força maior.
O parágrafo único do artigo 393 do Código não fez distinção entre os dois, mas a doutrina os distingue, mesmo sendo uma tarefa um tanto quanto desafiadora.
A principal característica desses dois elementos é a inevitabilidade. O caso fortuito decorre de fato alheio à vontade das partes, já a força maior está relacionada a acontecimentos naturais. Ambos afetam a relação de causalidade, rompendo o nexo causal entre o ato praticado e o dano sofrido excluindo, assim, a responsabilidade.
O fato deve ser inevitável, superveniente e fora do alcance do poder humano. Se decorrer de um ato culposo não haverá caso fortuito, pois será evitável.
Não há diferença entre ausência de culpa e caso fortuito porque a primeira é gênero, no qual o segundo está compreendido, inclusive nem o Código Civil no artigo 393 se preocupou em fazer essa distinção.
A doutrina contemporânea tem distinguido o "fortuito interno" e o "fortuito externo". O primeiro estaria ligado à coisa, pessoa ou à empresa do agente causador do dano. O segundo estaria ligado à força maior, também conhecida como Act of God dos ingleses.
O Código Civil de 2002, que poderia ter dirimido tal questão se omitiu em disciplinar a matéria, deixando largo espaço para controvérsias.
Silvio Rodrigues explicou com maestria as opiniões adotadas:
"Um argumento muito utilizado pelos adversários da cláusula é o de fomentar e a desídia, a negligência e a imprudência do contratante, pois, não tendo de responder pelos efeitos desastrosos do seu comportamento, não zela por esmerá-lo. O ponto de vista antagônico, admitindo amplamente a cláusula, firma-se no princípio da autonomia da vontade, segundo a qual, sendo as partes capazes e não sendo ilícito seu objeto, podem ajustar-se sobre tudo aquilo que lhes aprouver. Ademais, além de lícita, a cláusula seria conveniente ao interesse social, pois, como ela diminui os riscos do empreendimento, representa um barateamento de custos e assim constitui um elemento de desenvolvimento dos negócios". (RODRIGUES, 2008, p. 180)
Ora, se a Legislação expressamente prevê eventos que se excluem a responsabilidade objetiva do Estado é forçoso concluir que tais exceções NÃO foram transferidas via obrigação contratual como "risco do negócio" para as concessionárias.
Logo, não tendo sido transferida e portanto, devidamente contemplada no contrato de concessão submeter as concessionarias a arcar com tais riscos subverte a mens legis e a doutrina que a afastaram.
Na eventual hipótese de ser atribuída a responsabilidade civil por eventos classificados como típicos de exclusão de responsabilidade caberia ao Poder Concedente suportá-los vez que não se teria sido transferido para o concessionário sob pena de faze-lo suportar risco desconhecido e inevitável.
Pelo exposto, para forçoso concluir que caberia direito regresso por parte das concessionárias na eventualidade ser compelida a arcar com ônus oriundos de riscos que não foram previstos e transferidos pelo Contrato de Concessão firmado.
Luís Fernando Priolli
Sócio na área de Energia, Petróleo e Gás no Urbano Vitalino Advogados.