STJ acorda associações e fundações no meio do sonho da recuperação judicial
Decisão recente do STJ restringe direito de acesso a instrumento que vinha se mostrando adequado como meio de reestruturação deste agentes.
sexta-feira, 29 de novembro de 2024
Atualizado às 14:36
1. A decisão do STJ e a crise em comum enfrentada por empresas e por entidades
Recentemente, circulou no meio jurídico o resultado do tão aguardado entendimento a ser firmado pelo STJ acerca da legitimidade ativa dos agentes econômicos não empresários para ingressarem no regime de recuperação judicial.
A conclusão não foi nada benéfica para as associações e fundações privadas que se encontram em situação econômica frágil e se utilizaram, ou ao menos pretendiam se utilizar, do instituto da recuperação judicial como meio de superação da crise financeira.
Ao destrinchar-se brevemente o voto do relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva nos REsps 2.036.410, 2.038.048, 2.026.250, 2.155.2841, extrai-se que os principais argumentos que levaram a conclusão adotada dizem respeito à (i) rejeição expressa do legislador ao afirmar no art. 1° da lei 11.101/05 de que a recuperação judicial e a falência são do empresário e da sociedade empresária; (ii) insegurança jurídica em razão de aqueles que contratam com o ente não considerarem a possibilidade de estes, em algum momento, pedirem recuperação judicial; (iii) além de outros suscintamente levantados na decisão como eventual consequente sujeição dos agentes ao regime da falência e de todos os seus efeitos.
A decisão do Tribunal Superior, em que pese tenha observado a sempre desejável objetividade nos pronunciamentos judiciais, acabou por carecer de maior aprofundamento, precipuamente por se tratar de tema de grande impacto no cenário jurídico atual.
Não são poucos os casos de associações e fundações que solicitaram recuperação judicial nos últimos anos, onde entes como clubes de futebol, hospitais e universidades tiveram de se socorrer do mecanismo em razão do iminente risco de encerramento das atividades ocasionado pela crise financeira.
Estes agentes não possuem natureza jurídica empresarial, sistema compostos por normas societárias, registrarias e tributárias que compõem o denominado estatuto da empresa, e este ponto, de fato, dispensa maiores considerações.
O legislador, ao definir os legitimados para ingressar no regime concursal brasileiro, adotou a teoria da empresa e não da atividade econômica.
O que parece não ter sido considerado lá atrás, e segue sendo preterido, ainda que atualmente se tenham evidências concretas em tal sentido, é de que a crise financeira - e aqui é permitido levar em conta execuções, penhoras e todas as espécies de atos expropriatórios que ameaçam a manutenção da atividade - atinge também agentes que, mesmo não se enquadrando formalmente no regime empresarial, detém uma relevância econômica muito superior e circulam mais bens e serviços do que diversos empresários e sociedades empresárias autorizadas em seu lugar.
Não é necessário acessar as partes mais distantes da memória para que surjam na lembrança instituições como Santas Casas de Araçatuba/SP e de Rio Grande/RS, Fundação Comunitária Tricordiana de Educação, Fundação Universitária de Cardiologia, Rede de Ensino Metodista, diversos clubes de futebol e por aí se vai.
Em momentos de crise, é inevitável que outros atores econômicos batam à porta do Judiciário para pleitear medidas coletivas de negociação com escopo de viabilizar a continuidade de suas atividades, como é feito na Recuperação Judicial.
Para que se proporcione uma tutela jurisdicional adequada a agentes que pretendem reorganizar seus compromissos financeiros, manter a sua atividade, a prestação dos seus serviços e os empregos gerados, não é necessário estender o conceito de empresa ou de empresário, mas sim de não vedar a submissão ao meio mais adequado possível no ordenamento jurídico brasileiro para tanto, que, nos dias de hoje, é o instituto da recuperação judicial.
Se no Direito empresarial a lei 11.101/05 estruturou um processo coletivo, com intervenção judicial diante de valores que podem ser menos relevantes do que os abrangidos pelas entidades, não se pode deixar de demonstrar a necessidade de sua aplicação a estes contextos de crise na atividade destes entes.
É claro que seria louvável a percepção automática do legislador sobre o tema e que houvesse atuação expressa de ofício. Mas, de fato, não é o que ocorre no Brasil. Aqui, a intervenção judicial tem sido além da necessária devido à ausência de legislação para a estruturação de um sistema que atenda às necessidades legais, constitucionais e sociais, que protejam atividades e empreendimentos que não se destinam ao lucro2.
Em uma leitura delicada do art. 47 da LREF3, é notório que os objetivos ali consignados, quais sejam, "viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica" não fogem em nada do que vem sendo enfrentado por diversas instituições associativas e fundacionais sem medidas concretas que as permitam atravessar momentos de turbulência.
2. A insuficiência do regime da insolvência civil para o tratamento da crise de agentes não empresários
Ao negar que estas entidades se socorram do regime da recuperação judicial como meio de estabilização da crise e da reestruturação da atividade, o julgado delicadamente os lança para a esfera do regime concursal da pessoa natural: o combalido instituto da insolvência civil, regido por alguns poucos artigos do revogado CPC de 1973.
A insolvência civil, no entanto, assim como a falência, é regime liquidatório dos ativos para saldar o passivo e não objetiva, salvas raríssimas exceções, a manutenção da atividade e dos benefícios que dela decorrem. Em alguns casos, como os dos hospitais, mais do que benéfica, a atividade é essencial, pois são agentes imediatos na prestação do serviço de saúde para a população.
A obsolescência do instituto se evidencia também por frequentemente nos depararmos com a aplicação subsidiária da lei 11.101/05 nos processos de insolvência civil, diante da insuficiência dos dispositivos do CPC/73 para reger um procedimento que envolve direitos multifacetados, plurais e que não à atoa exigem um sofisticado sistema de execução concursal, organizado e equânime.
Há também nítida preocupação do Tribunal Superior externada no voto do relator acerca da incompatibilidade da sujeição das associações e fundações à falência, como consequência de um processo de reestruturação inexitoso, sendo que na prática a aplicação supletiva já é uma realidade.
No caso das fundações, a afetação do patrimônio destinada para uma finalidade específica é facilmente superável, pois, de todo modo, este é destinado para saldar o passivo da instituição, para tão somente ao final ter sua parte residual redirecionada para outra fundação com finalidade semelhante por meio do Ministério Público ou e outros interessados (art. 69 do CC4).
Dispensa-se maiores considerações para concluir que inexiste anacronia entre os procedimentos da falência e da insolvência civil, pois, ao fim e ao cabo, se coadunam e levam ao mesmo caminho.
Não há, portanto, obstáculo jurídico-procedimental que não seja superado por um processo concursal bem-organizado e com todos os envolvidos caminhando para uma mesma finalidade, mediante até mesmo atuação dos agentes públicos, para que as fundações e associações de relevante prestação de serviços não sejam consumidas pelas dificuldades financeiras que lhes são inerentes.
3. Da alegada rejeição pelo legislador
O STJ, na cadeia argumentativa utilizada na decisão em apreço, mencionou que há expressa rejeição do legislador em não incluir associações e fundações sem fins lucrativos, ao rememorar que o Senado Federal, em parecer de plenário do relator senador Rodrigo Pacheco sobre o PL 4.458/20, foi apontado que a sexagésima quarta emenda, de autoria da senadora Mara Gabrilli, propunha a revogação da insolvência civil e a atração para o regime de recuperação judicial e falência todos os tipos de agentes privados.
A sexagésima quarta emenda parlamentar foi rejeitada sob o seguinte fundamento:
A sexagésima quarta emenda prejudica os mesmos devedores que visa beneficiar, vez que os devedores de natureza civil não podem sofrer falência mesmo quando estão inadimplentes com seus credores, por não estarem submetidos à lei 11.101, de 2005. Eventual inclusão deles no sistema empresarial, como prevê a emenda, irá levar muitos deles à falência, com danos irreversíveis para seu patrimônio e imagem profissional. Por essa razão, deve a emenda ser rejeitada.
Aqui, sabe-se lá por qual genuína razão se entendeu desta forma, mas por certo não se levou em conta (i) que os devedores de natureza civil não possuem regime concursal que vislumbre sua reestruturação, (ii) tampouco que a insolvência civil possui praticamente os mesmos efeitos da falência sobre o patrimônio do devedor, com o agravante de ser regida por instituto carente de diversos detalhes essenciais para um bom andamento e organização da alienação dos ativos e pagamento das dívidas.
O mesmo racional, por outro lado, não foi aplicado quando da exclusão das cooperativas médicas do rol dos "sonegados" do inciso II do art. 2° da lei 11.101/055, por meio da emenda "espírita" que resultou na redação do §13º do art. 6° do referido diploma legal6. As cooperativas, tal como as associações e fundações privadas, são submetidas a regime jurídico considerado de natureza civil.
No caso das cooperativas, há ainda um agravante: a vedação expressa do art. 4° da lei 5.764/71 (lei do cooperativismo)7 acerca da sujeição das cooperativas à falência.
Mas este, ao que aparenta, não foi um empecilho para amoldar a reforma legislativa com a proteção destinada a alguns agentes específicos, embora com a mesma qualificação jurídica de outros que acabaram ficando desamparados pela anacrônica tramitação do processo legislativo.
4. Da segurança jurídica nas relações contratuais
O julgado não deixa de externar, ainda, preocupação com a segurança jurídica relacionada àqueles que contrataram com entes que, em tese, não teriam direito de ingressar no regime recuperacional.
Aqui, em que pese não tenha sido mencionado expressamente, a preocupação faz mais sentido às instituições financeiras, pois são os agentes que pretensamente consideram o risco do crédito no seu custo.
Ocorre que não é razoável conceber que instituições financeiras, assessoradas pelas bancas jurídicas mais qualificadas do país e com robustos mecanismos de análise das decisões judiciais proferidas no território nacional, além de competentes comitês de análise de crédito, já não tenham embutido no custo do crédito o risco de este, em algum momento, se sujeitar ao concurso de credores.
E para tanto, é suficiente uma decisão judicial autorizando algum ente fundacional ou associativo a processar sua recuperação judicial para que as instituições financeiras tenham sua atenção atraída e passem a integrar aos juros quantia que os resguarde em caso de eventual concursalidade do valor dispendido.
Desta forma, ainda que a lei não permita expressamente, a ausência de uniformização jurisprudencial sobre o tema não permite o emplacamento de total previsibilidade nas relações jurídicas envolvendo estes entes, de modo que é inimaginável que agentes financeiros e comerciais de grande porte, devidamente acautelados, recebam com surpresa o ingresso destes agentes não econômicos no regime concursal.
Por fim, esclarece-se que não há opinião no sentido de permitir que todos os agentes econômicos que não visam lucro possam lançar mão da recuperação judicial, o que, sem sombra de dúvidas, afetaria o ordenamento jurídico como um todo, mas que seja permitido para aqueles que evidenciarem relevante importância econômica para uma determinada região e que efetivamente circulem bens e serviços essenciais se socorram do instrumento como meio de reestruturação.
5. Impacto da decisão nos casos em tramitação
Os Recursos Especiais que originaram o entendimento que ora se analisa não foram afetados sob o rito dos recursos repetitivos, a teor do que dispõe o 1.036 do CPC, já que, embora a matéria seja de ultra relevância, ainda não se chegou a uma quantidade significativa de recursos especiais aptos a ensejar a fixação de tese vinculante por parte do Tribunal Superior.
As decisões prolatadas pelo STJ, de qualquer modo, possuem notório caráter influenciador das posições a serem adotadas pelos tribunais estaduais e pelos juízes de primeiro grau. Não se olvida que no âmbito do ordenamento brasileiro, a jurisprudência ocupa poderosa posição na hierarquia das fontes do direito.
Nessa linha, recentemente, em decisão prolatada em 13/11/24, o Tribunal de Justiça de São Paulo proveu o agravo de instrumento 2242151-26.2024.8.26.00008 para indeferir o processamento da recuperação judicial da Santa Casa de Araçatuba/SP, ocasião em que citou expressamente o recente acórdão emanado pelo Tribunal Superior acerca do tema.
Há diversos recursos em andamento que versam sobre a matéria e que certamente serão impactados pela posição adotada.
Não bastasse isso, constantemente se comenta sobre a dúvida acerca do impacto nos processos recuperacionais cujo a decisão de deferimento do processamento da recuperação de associações ou fundações não tenham sido objeto de recurso.
Legitimidade ativa, como se sabe, é matéria de ordem pública, e por esta qualificação, não é atingida pela força da preclusão temporal, podendo ser objeto de insurgência a qualquer tempo, exceto se já tiver sido analisada por decisão judicial transitada em julgado (preclusão pro judicato).
Ocorre que, em sua maioria, as decisões que analisam o pedido de recuperação judicial destes agentes econômicos acabam por enfrentar, até mesmo por provação da petição inicial, o tópico da legitimidade ativa, motivo pelo qual, nestes casos, não poderão ser objeto de tardio recurso sobre o indeferimento do processamento da recuperação judicial.
O comportamento dos tribunais de justiça diante da influência da decisão do STJ será medido com maior precisão ao longo do tempo, mas a análise inicial, que não é empírica e é fundada em impressões gerais, é de que a corrente jurisprudencial rumará para a interrupção do sonho da recuperação judicial para os agentes não empresários, que esteve bem perto da realidade.
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1 STJ. Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 01/10/2024, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 04/10/2024.
2 Neste sentido foi a decisão do magistrado Gilberto Schafer no EVENTO 33 do processo de recuperação judicial n.° 5245072-73.2023.8.21.0001, em 26/11/2023, em trâmite na Vara Regional Empresarial de Porto Alegre/RS, ajuizado pela Fundação Universitária de Cardiologia.
3 Art. 47 da LREF. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
4 Art. 69 do Código Civil. Tornando-se ilícita, impossível ou inútil a finalidade a que visa a fundação, ou vencido o prazo de sua existência, o órgão do Ministério Público, ou qualquer interessado, lhe promoverá a extinção, incorporando-se o seu patrimônio, salvo disposição em contrário no ato constitutivo, ou no estatuto, em outra fundação, designada pelo juiz, que se proponha a fim igual ou semelhante.
5 Art. 2º Esta Lei não se aplica a: ...] II - instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.
6 §13º do art. 6 da LREF. Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei nº 5.764/71, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica.
7 Art. 4º da Lei do Cooperativismo. As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:
8 TJ-SP - Agravo Interno Cível: 22421512620248260000 São José do Rio Preto, Relator: Maurício Pessoa, Data de Julgamento: 18/11/2024, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 18/11/2024.