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Punitivismo e garantismo: A defesa da legalidade no Direito Penal brasileiro

Uma reflexão sobre a defesa do princípio da legalidade como limite ao poder punitivo do Estado e a importância de evitar retrocessos no Direito Penal brasileiro.

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Atualizado às 14:26

O direito como fruto da vida coletiva

Imagine-se vivendo em uma ilha deserta, sem jamais ter tido contato com outro ser humano antes. É muito provável que essas circunstâncias impediriam o desenvolvimento das suas relações intersubjetivas, anulando sua compreensão sobre posição, seja ela individual ou coletiva, em sociedade. Diferente dos fenômenos naturais que pudessem vir a atingir essa ilha, como chuva ou calor intenso, o Direito é um produto da percepção humana, baseado em aspectos morais e éticos da convivência coletiva. Ante tal fato, não haveria o que se falar em Direito, enquanto conjunto de normas e princípios que regulam as relações humanas e as instituições sociais, uma vez que não haveria vida em sociedade a ser regulamentada.

Tendo em vista a plena compreensão do Direito como fruto da vida em sociedade, é de suma importância ainda neste tópico introdutório mencionar as especificidades do desenvolvimento das civilizações, cada uma aos seus costumes, atribuindo ao Direito complexidade diante das necessidades existenciais dos indivíduos. Destas necessidades, surgem os conflitos, que com o desenvolvimento das civilizações, tornam-se cada vez mais profundos. E são desses conflitos que surgem os delitos, cujo pensar filosófico do Direito nos leva ao tema do presente artigo.

O princípio da legalidade diante do poder punitivo do Estado

Um dos primeiros conceitos que todo acadêmico de Direito precisa compreender é o caráter extraordinário do Direito Penal, como "ultima ratio", ou seja, como última ferramenta do instrumentário do legislador capaz de evitar atos ilícitos ou dar a estes uma resposta à altura da lesão.

Historicamente, o Direito Penal tem a sua origem na vingança, que deveria ser exercida exclusivamente pelo Estado através do seu poder de punir. Dos primórdios das civilizações à contemporaneidade, a figura do ente estatal veio sendo moldada, alcançando-se, hoje, o que compreendemos como Estado Democrático de Direito. Entretanto, para além do êxito de alcançar, é preciso a vigilância para manter. À luz disso, afirma o jurista Cezar Roberto Bitencourt (2019):

"O princípio da legalidade ou da reserva legal constitui uma efetiva limitação ao poder punitivo estatal. Embora seja hoje um princípio fundamental do Direito Penal, seu reconhecimento envolve um longo processo, com avanços e recuos, não passando, muitas vezes, de simples "fachada formal" de determinados estados. [...] O princípio da reserva legal é um imperativo que não admite desvios nem exceções e representa uma conquista da consciência jurídica que obedece a exigências de justiça, o que somente os regimes totalitários têm negado".

O punitivismo, o garantismo e a legalidade

A expressão em latim "nullum crimen, nulla poena sine lege" é, ainda hoje, a melhor consagração do princípio da legalidade. Feuerbach expressava, assim, o que entendemos na atualidade como preceito básico para a legalidade do exercício punitivo do Estado: não há crime ou pena sem prévia lei que os definam! - Existe uma forte influência da razão iluminista nessa concepção do filósofo alemão do século XIX, que serviu de base para o garantismo penal. Todavia, para compreendermos melhor a relação entre os dois modelos que, ao lado do princípio da legalidade, dão nome ao título deste tópico, precisamos introduzir pelo punitivismo.

Já compreendemos até aqui a ausência ou recuo ao princípio da legalidade como uma característica previsível em regimes autoritários; muitas vezes autocráticos. E se houve uma figura na História que sintetizou a autocracia, esse alguém foi o Rei Luís XIV, da França, ao supostamente proferir uma das frases que melhor expressa a ideia do poder absolutista de um monarca: "Je suis la Loi, Je suis l'Etat; l'Etat c'est moi" (em português: Eu sou a Lei, eu sou o Estado; o Estado sou eu!). A citação ao soberano francês não é uma explicação direta nem tão pouco justa sobre o punitivismo penal, mas, sim, sobre a ausência de limites ao ente estatal, que neste caso se revela pela concentração de poder.

O modelo punitivista dialoga diretamente com a ideia de que por trás da punição há uma legitimidade, seja sob uma percepção maximizante ou minimizante disto. E a crítica que este artigo se propõe a fazer, tendo em vista o princípio da legalidade, é especificamente ao movimento maximizante dessa concepção, que não pode ser afastada da relação de poder entre os indivíduos. Em regra, o poder é exercido por uma classe dominante sob uma classe subalternizada, fazendo-se uso dos aparatos do Estado. O maior exemplo disso, no Brasil, é a importação de teorias eugenistas europeias, que criou no imaginário popular um modelo racista e burguês que deu cor e status social ao perfil daqueles aos quais se atribui a autoria de delitos, intensificando-se a marginalização e, consequentemente, a recusa ao desenvolvimento de políticas públicas emancipatórias. Não é à toa que 70% da população carcerária brasileira é negra, o que representa cerca de 470 mil pessoas, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023.

Toda essa reflexão nos impede de deixar de citar a teoria de Gunther Jakobs, que na década de 1980 desenvolveu o que se compreende como Direito Penal do inimigo. A proposta de separação da sociedade em "mocinhos" e "vilões", sob a supressão de garantias constitucionais para aqueles que fossem considerados inimigos do Estado, ou seja, com a perda dos direitos de cidadão. Ainda que toda essa narrativa pareça (e seja!) inconstitucional no Brasil pós-1988, não podemos negar que o poder punitivo do Estado brasileiro ainda possui sólidas estruturas inquisitoriais.

Como contraponto à caça às bruxas, em seus mais diversos contextos e "inimigos", é idealizada a concepção garantista, cujo verdadeiro idealizador, apesar das raízes na Europa de mil e oitocentos que influenciaram Feuerbach, é Luigi Ferrajoli. Em 1989, é publicado pelo jurista italiano a obra Diritto e Ragione: teoria del garantismo penale (no Brasil: Direito e Razão: teoria do garantismo penal). A concepção do garantismo penal nos leva à imposição e manutenção de limites ao poder punitivo do Estado, na busca da concretização, de fato, de um Direito Penal mínimo e atento às garantias do réu.

A teoria garantista de Ferrajoli tem sua base em dez axiomas, possuindo cada um deles princípios correlatos. O princípio da legalidade, objeto de estudo deste artigo, é um deles e está relacionado exatamente à impossibilidade de se falar em crime sem que haja lei anterior que o preveja.

Contudo, caro leitor, é preciso se fazer um adendo: estamos tratando, aqui, de uma utopia. - Não que o garantismo penal deva ser superado como uma ilusão. Longe disso! O que quero dizer é que essa concepção, como dito pelo próprio Ferrajoli, é um modelo alicerçado no dever ser.

Entre o fiel cumprimento das garantias e a violação de todas elas, há uma série de concepções em posição intermediária, ou seja, entre elas. Dessa forma, estaremos sempre falando em uma busca incessante pelo garantismo penal, que segue em aberto, afinal, diante das constantes mudanças sociais e adaptações do ente estatal diante delas, sem deixar de levar em consideração constantes violações de direitos, como é no caso do Brasil, torna-se difícil falar em excesso de garantias. Sendo assim, o punitivismo penal em sentido lato senso não deve ser encarado como essa concepção de violação total das garantias, bem como, vale destacar, o garantismo de forma alguma representa um abolicionismo penal.

A vigilância permanente para evitar retrocessos ao princípio da legalidade

O embate entre punitivismo e garantismo não é apenas uma questão teórica ou de preferência acadêmica, mas uma batalha pela busca do equilíbrio entre a punição e o respeito aos direitos fundamentais. Como demonstrado, o princípio da legalidade se apresenta como a base estruturante de um Direito Penal democrático, restringindo os excessos do poder estatal e garantindo que nenhum cidadão seja submetido a arbitrariedades.

No contexto brasileiro, onde historicamente convivemos com resquícios de um sistema penal seletivo, racista e fortemente influenciado por estruturas de poder excludentes, a discussão e prática com foco no garantismo se torna mais que necessária. A elevada população carcerária negra e a manutenção de práticas inquisitoriais evidenciam a permanência de um punitivismo que não apenas fere os princípios constitucionais, mas também aprofunda desigualdades sociais.

Por outro lado, o garantismo, enquanto modelo ideal, aponta para um horizonte ético e jurídico que busca não abolir o Direito Penal, mas limitá-lo estritamente ao necessário, sempre respeitando os direitos humanos e o devido processo legal. Este não é um caminho de fácil realização, mas sim um dever contínuo de todos os operadores do Direito e da sociedade, que devem resistir aos constantes retrocessos, sobretudo em momentos de crise política ou social, nos quais o autoritarismo tende a se intensificar.

Portanto, mais do que compreender as teorias de punitivismo e garantismo, é imprescindível fomentar uma cultura jurídica que rejeite soluções imediatistas e priorize o fortalecimento das garantias individuais. Afinal, retroceder na defesa do princípio da legalidade significa colocar em risco não apenas o Estado Democrático de Direito, mas a própria essência da convivência coletiva que dá sentido ao Direito. Assim, a vigilância é a única ferramenta eficaz para evitar que a história, tantas vezes marcada por avanços e recuos, resvale por completo para tempos de arbítrio e injustiça.

João Vitor Senna Alves

VIP João Vitor Senna Alves

Advogado, graduado em Direito pela Universidade Salvador (UNIFACS), pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pela PUCRS e Sócio Fundador da João Senna Advocacia e Consultoria.

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