Jogo patológico, o mal por trás do game
O artigo analisa o vício em apostas de quota fixa, destacando a crescente preocupação do Estado em enfrentar esse problema de saúde pública, devido ao expressivo aumento de apostadores no Brasil.
quinta-feira, 28 de novembro de 2024
Atualizado às 14:00
O setor de apostas de quota fixa no Brasil, regulamentado em 2024, com base na lei 14.790,/23, que alterou partes da anterior lei 13.756/18, passa por um crescimento exponencial, impulsionado pela popularização das plataformas on-line e pela ampla visibilidade em eventos esportivos, por meio de publicidade e parcerias com grandes influenciadores, patrocínios a times de futebol, o que implica o aumento no número de consumidores/apostadores.
Se por um lado representa um incremento econômico relevante, gerando novos postos de trabalho e potencial arrecadatório fiscal, por outro carrega diferentes riscos significativos, dentre os quais o risco para saúde pública ante o potencial desenvolvimento do jogo patológico.
Ludopatia ou jogo patológico é o transtorno mental caracterizado quando o apostador age de maneira crônica e progressiva não conseguindo controlar os impulsos de apostar, mesmo havendo consequências negativas, que podem ser financeiras, sociais, físicas e emocionais. Esta condição médica é classificada pelos CID-10-Z72.6 (mania de jogo e apostas) e CID-10-F63.0 (jogo patológico).
O jogo patológico ocorre após êxitos do apostador; o sucesso inicial desencadeia dopamina criando a sensação de confiança no jogador que, consequentemente, passa a agir de maneira gananciosa, a fim de buscar obter lucros (se não os teve ainda) cada vez mais elevados, quando já experimentou a sensação advinda dos ganhos.
O jogador que possui o vício em apostas acredita que a probabilidade de vencer aumenta, mesmo após cada fracasso; esse jogador possui uma expectativa de ganho sustentada no maior valor que confere às "vitórias" ocasionais do que aos fracassos e, em um ciclo vicioso, os poucos êxitos nas apostas aumentam ainda mais as expectativas, sem que os fracassos, ainda que em maior quantidade, as diminuam.
De acordo com doutrina médica, o jogo patológico se subdivide em quatro fases, sendo:1
- Fase de ganhos: Fase inicial que é caracterizada pelos lucros obtidos com as apostas, sendo os frutos suficientes para que o apostador se considere um grande jogador, reforçando os sentimentos de vitória, grandeza, confiança e ganância. Após este estágio, o apostador aumenta sua frequência de apostas e, consequentemente, o valor apostado;
- Fase das perdas: Durante a segunda fase o apostador utiliza o próprio jogo para reverter uma prévia situação de perda. Nesse momento não possui mais os lucros inicialmente obtidos nem mesmo o valor originalmente apostado para tentar reverter a situação; o jogo deixa de ter intuito de lazer, se tornando uma absoluta necessidade;
- Fase do desânimo: Esta fase é consequência da fase anterior, estando o emocional do apostador abalado por conta da acumulação de perdas e dívidas obtidas em razão das apostas;
- Fase do profundo desespero: Caracterizada pelo profundo abalo de sentimentos do apostador, que geralmente antecede as possíveis tentativas de suicídio, esta fase se caracteriza por não mais haver o controle do jogo e o apostador passa a maior parte do seu dia apostando e, em consequência, se endividando mais.
O conjunto destas fases pode se estender por anos, motivo que leva à comparação do jogo patológico a uma doença física progressiva. O jogo patológico foi reconhecido como um distúrbio mental incluído nos distúrbios do controle dos impulsos pela Associação Americana de Psiquiatria, na 3° terceira edição do DSM-III - Diagnostic and Statistical Manual2.
Conclui-se, portanto, que o jogo patológico é um vício que se autoalimenta, pois, quando há um reforço positivo (ganho na aposta), o apostador volta a sentir a euforia do período inicial. contudo, após diversas perdas de apostas (reforço negativo), o apostador começa a jogar (apostar) não por lazer, mas sim por acreditar que, após várias perdas consecutivas, irá triunfar nas apostas que estão sendo feitas3.
Com a promulgação da lei 14.790/23, o regulador estabeleceu uma série de diretrizes aos operadores que irão atuar neste mercado, visando a proteger o apostador. Tais diretrizes se reforçam com as portarias SPA/MF 1.330/23 e, em mais detalhes, na 1.231, expedida no dia 31/7/24, a qual estabelece regras e diretrizes para o jogo responsável, para as ações de comunicação, e regulamenta os direitos e deveres de apostadores e dos agentes operadores.
Destaca-se que o artigo terceiro da referida portaria 1.231/24 dispôs quais as linhas mestras que os operadores de apostas de quota fixa deverão seguir para que implementem, na prática, o jogo responsável, a saber, diligência, prevenção da dependência, proteção de menores e conscientização pública do jogo responsável. Esses elementos servem como diretrizes para que os operadores garantam que as práticas de jogo sejam seguras e socialmente responsáveis.
Já o art. 4° da referida portaria delineia obrigações concretas, listando práticas e mecanismos que promovam um ambiente de jogo seguro, de forma a buscar a mitigação dos riscos advindos da dependência ao jogo.
Adicionalmente, o art. 5º da mesma portaria dispõe que a política do jogo responsável dos operadores deve prever, obrigatoriamente:
- educativas;
- frequente e transparente com os apostadores;
- de análise de dados para monitoramento de perfis de risco;
- de prevenção de dependência;
- de atendimento para assistência a apostadores em situação de vulnerabilidade.
Na linha do que o regulador dispõe quanto à necessidade de uma boa governança nas operadoras, uma importante faceta é a da educação e capacitação quanto ao jogo responsável, que mais do que ser direcionada ao apostador, o deve ser, antes de tudo, às pessoas colaboradoras dos operadores que interagem diretamente com os apostadores, a fim de garantir que consigam compreender os problemas que estão associados à dependência e aos transtornos do jogo patológico, para que saibam bem orientar os jogadores cujos comportamentos indiquem a mínima possibilidade de transtorno.
Ademais, dentro da esfera educacional sobre o tema, sócios, dirigentes, fornecedores e prestadores de serviços de cada operador devem ser treinados para que conheçam os preceitos do jogo responsável e as externalidades negativas individuais e coletivas da atividade, zelando por uma exploração econômica socialmente responsável e ética.
Para atestar essa aderência ao jogo responsável, o regulador exige que os operadores obtenham certificação sobre o jogo responsável, demonstrando que estão em conformidade com as diretrizes legais e regulatórias, o que irá distinguir, em mais um nível de segurança, os operadores sérios e éticos dos que estão atuando na zona da ilegalidade.
Estas e demais medidas a respeito da ludopatia demonstram a preocupação, por parte do Estado, em garantir a saúde do apostador, por conta da alta velocidade que este mercado vem crescendo e o número de clientes que os operadores recebem diariamente.
Em dados fornecidos pela ANBIMA - Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais, por meio do relatório "Sétima edição do Raio X do Investidor Brasileiro", em 2023, no Brasil, o número de apostadores em apostas esportivas foi sete vezes maior do que o número de pessoas que investiram na Bolsa de Valores, sendo vinte e dois milhões de brasileiros, com dezesseis anos ou mais que apostaram, correspondente ao percentual de 14% da população brasileira, que utilizam aplicativos de apostas esportiva de quota fixa no último ano4.
A ANBIMA informou que 2 em cada 10 apostadores, o que corresponde a 4.8 milhões de brasileiros, acreditam que estão fazendo algum tipo de investimento financeiro ao apostar. De acordo com o relatório, pessoas acima de 63 anos jogam menos, mas acreditam que ao apostar por meio das plataformas de jogos on-line estão realizando um tipo de investimento.
Entre os jogadores, 5.7 milhões de pessoas fazem jogos on-line por diversão, em contrapartida, 8.8 milhões encaram as apostas como uma chance de ganhar dinheiro rápido. A geração Z, pessoas que estão na faixa etária de 16 a 27 anos, compõem o maior contingente de jogadores, o que corresponde ao percentual de 29% dos apostadores on-line.
Assim, o que podemos vislumbrar é que existe uma certa correlação entre a falta de educação financeira e a tendência em realização de apostas, o que pode comprometer um certo percentual de pessoas que poderão ter um perfil propenso a se tornarem viciados. Importante destacar que, na população brasileira ainda não se sabe qual é esse percentual, pois depende de pesquisas mais dedicadas e específicas, em razão dos perfis do público jogador no Brasil, o que ainda não existe, mas que se irá compor ao longo dos próximos anos, ante a atuação dos operadores em um mercado regulado e acompanhado de perto, com métricas destacadas.
Fato é que o expressivo número de apostadores nesta modalidade se dá em razão da massividade propagandística que existe em todo território nacional, por meio de patrocínios em clubes de futebol, competições esportivas e contratação de influenciadores digitais para disseminarem a prática de apostas. Conforme a "Macro Visão", documento elaborado pelo Banco Itaú, em 13/9/24, o setor de apostas de quota fixa gasta com marketing, anualmente, entre 5,8 e 8,8 bilhões de reais5.
Em levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo, em maio de 2023, estima-se que os gastos das empresas de apostas em patrocínios no futebol (clubes, competições e transmissões de televisão) foram equivalentes ao montante de R$3,5 bilhões. No mesmo documento emitido pelo Itaú, adota-se a hipótese de que estes gastos representem de 40% a 60% do gasto total com marketing, já que as empresas também gastam com anúncios on-line, na TV, no rádio, em publicidade com influenciadores, entre outros meios. Ademais, o estudo adotou a hipótese de que as empresas de apostas que já operam no Brasil gastem entre 45% e 75% de suas receitas em marketing6.
O anexo X elaborado pelo CONAR - Conselho Nacional Autorregulamentação Publicitária ao seu Código de Autorregulação dispõe diretrizes específicas para a publicidade de apostas, delineando normas de (i) proteção ao consumidor (apostador), especialmente para impedir que menores de idade sejam alvo de atividades de marketing, (ii) promoção do jogo responsável, (iii) proibição de promoção do jogo como alternativa de ganho financeiro e alternativa de emprego e sucesso pessoal, as quais inspiraram o regulador na elaboração da portaria SPA/MF 1.231/24.
Assim, as campanhas publicitárias devem incluir avisos claros sobre os riscos de dependência e evitar qualquer associação entre o jogo e a promessa de sucesso ou solução financeira, assegurando que o conteúdo seja voltado exclusivamente ao público adulto. Tais avisos devem ocupar ao menos 10% do espaço publicitário, conforme estipulado no art. 13, §1º, da citada portaria, e ser apresentados tanto em formato escrito quanto falado, quando possível.
As ações publicitárias devem incluir avisos explícitos de desestímulo ao jogo, advertindo para os malefícios potenciais do uso descontrolado das plataformas de apostas, bem como a proibição de acesso a menores de 18 anos (art. 16, I e II), e devem ser claramente identificadas como de caráter comercial, sendo estritamente voltada ao público adulto, vedando a exposição de crianças e adolescentes (arts. 15 e 16, III, da portaria 1.231/24), e não podem ser veiculadas em locais e programas onde a audiência principal é composta por menores de 18 anos, inclusive valendo para as divulgações por influenciadores digitais que possuem como público menores de idade.
Todas as atividades de publicidade promovidas pelas operadoras e por ela contratadas para serem realizadas por quaisquer terceiros devem ser monitoradas e controladas, de modo a garantir o cumprimento das normas regulamentares, prevenindo a divulgação de conteúdos publicitários irregulares ou prejudiciais.
Em suma, todas as disposições legais, regulatórias e autorregulatórias impostas ao setor de apostas de quota fixa, demonstram quer o compromisso estatal com uma abordagem ética e responsável na comunicação e divulgação de tais apostas, quer o compromisso com a conscientização pública sobre os riscos do jogo e a proteção dos consumidores.
E, para atestar esse compromisso, apesar de tais dispositivos já estarem em pleno vigor, exigindo atitudes proativas e constantes dos operadores em prol de um mercado focado no jogo responsável, e estarem sendo monitoradas, como apenas passariam a repercutir sanções, se as práticas estivessem em desconformidade, a partir de 1/1/25, após as autorizações emitidas para as operadores que atuarão no mercado brasileiro, em decisão cautelar tomada pelo ministro Luiz Fux, do STF, em 13 de novembro, nos autos das ADIns 7721 e 7723, a SPA já deve aplicar todas as medidas dispostas na portaria 1231/24 contra as publicidades que estejam violando direitos de crianças e adolescentes7.
O mercado de apostas de quota fixa deve ser saudável, para os operadores, para o Estado mas, acima de tudo, para os consumidores, pois, mais do que exigência regulatória e legal, vai ao encontro do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
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1 CLÍMACO, Maria Isabel. O jogo patológico - a adição menos visível. Revista Portuguesa de Clínica Geral, v. 20, n. 1, p. 123-124, 2004
2 CLÍMACO, Maria Isabel. O jogo patológico - a adição menos visível. Revista Portuguesa de Clínica Geral, v. 20, n. 1, p. 121-134, 2004.
3 Ibid. p. 121-134,
4 Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais - ANBIMA. Raio X do investidor brasileiro:7ª edição. São Paulo, 2023. Disponível em:: https ://www.anbima .com .br /data /files /C9 /92 /8D /26 /1F92F8109B9671F8EA2BA2A8 /Raio -X -do -investidor -brasileiro -7 -edicao .pdf. pág. 63.
5 ITAÚ UNIBANCO. Macrovisão: apostas on-line. São Paulo, 2024. Disponível em: https://macroattachment.cloud.itau.com.br/attachments/a77e92d9-319f-45ca-b657-6c721241804b/13082024_MACRO_VISAO_Apostas_on-line.pdf . pág. 3
6 https ://www .estadao .com .br /esportes /futebol /como -os -sites -de -apostas -se -tornaram -o -maior -financiador -dofutebolbrasileiro /#:~:text =Empresas %20do %20setor %20injetam %20cerca ,transmiss %C3 %B5es %20e %20at %C3 %A9 %20torcidas %20organizadas &text =As %20casas %20de %20apostas %20t %C3 %AAm ,fonte %20de %20receita %20da %20modalidade
7 https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15372052123&ext=.pdf