Coisa julgada e IDPJ
A coisa julgada, limitada às partes, enfrenta questionamentos sobre sua extensão. Debate-se se a decisão de desconsideração da personalidade jurídica pode beneficiar terceiros.
terça-feira, 26 de novembro de 2024
Atualizado em 25 de novembro de 2024 14:33
1. Introdução
A jornada do estudante tem uma característica curiosa e universal: as diversas certezas adquiridas como base de sua formação, em determinado momento, já não satisfazem as complexas questões que se revelam nas minúcias da disciplina.
Por exemplo, aprendemos que o Direito, enquanto sistema, deve ter no processo um instrumento de realização da justiça, tendente à pacificação dos conflitos sociais.
Uma fórmula de elegante clareza que, quando testada, impõe ao pesquisador indagações incrementalmente mais desafiadoras, a se iniciar pelo como. Como o processo conduz à pretendida pacificação?
O professor Araken de Assis aponta para o instituto da coisa julgada material, que se destina "primordialmente, a tornar inalteráveis e indiscutíveis as soluções de situações de incerteza e conflito de interesses juridicamente relevantes".
Reputamos, portanto, pacificado o conflito pela impossibilidade de se empreender nova discussão a seu respeito: o que foi decidido, decidido está.
O objeto deste breve estudo nasce da dúvida que segue tal constatação: até onde se estende esta imutabilidade? Aquilo que é confirmado por um juiz pode ser negado por outro?
Se é incontroverso que a regra do art. 505 do CPC de 2015 incide no processo em que proferida a decisão, há profunda divergência doutrinária quanto à sua aplicação em ações distintas.
Particularmente, este é o problema desafiado pela tese ora sustentada: quão imutável é o pronunciamento judicial que julga procedente o pedido de desconsideração da personalidade jurídica?
Propomos, como solução, que as alterações promovidas pela nova sistemática processual incorporaram ao regime jurídico pátrio uma figura assemelhada ao offensive nonmutual collateral estoppel oriunda do Common Law.
Trata-se da compreensão de que a coisa julgada pode ser invocada por terceiro que não participou da lide originária em face da parte contra a qual a decisão foi proferida.
É oportuno registrar, desde logo, que a interpretação que se propõe é rechaçada pela mais abalizada doutrina, servindo de importante contraponto ao que sustentamos a lição da insubstituível professora Teresa Arruda Alvim:
"A regra continua sendo a de que a coisa julgada, no processo civil individual, opera-se entre as partes, não alcançando terceiros. A extensão dos efeitos para beneficiar terceiros, deve-se limitar a situações em que estes se situem na mesma posição jurídica das partes ou sejam sujeitos de relação jurídica conexa àquele discutida em discutida em juízo (decisão favorável a um credor ou devedor, que beneficiará demais credores ou devedores solidários, ou decisão favorável a um litisconsorte que beneficiará os demais litisconsortes necessários, que não foram citados no processo.
Por essa razão, entendemos que a decisão favorável a um determinado credor, que tem seu pedido de desconsideração da personalidade jurídica do réu julgado procedente, em razão de confusão patrimonial entre a empresa devedora e seu sócio, não poderá ser invocada por outro credor do mesmo devedor, com base no art. 506. Poderá, aí, ser o caso de o outro credor requerer ao juiz que defira, por exemplo, a produção de prova emprestada, como a perícia produzida na primeira ação, por meio da qual a confusão patrimonial restou evidenciada. Entretanto, não há que se falar em extensão da coisa julgada, para beneficiar terceiro, nos termos do art. 506, isso porque os devedores mantêm com o credor relações jurídicas distintas, absolutamente independentes entre si."
Nossa respeitosa divergência propõe que o pedido de desconsideração não está atrelado à relação jurídica estabelecida entre credor e devedor, mas sim àquela mantida entre o sócio e sua empresa.
Evitaremos, neste limitado espaço, o exame do aspecto econômico do debate. Nosso foco é a natureza prejudicial da decisão que reconhece preenchidos os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica.
Para tanto, buscaremos responder a três perguntas que reputamos essenciais: a) o que é a coisa julgada e o que significa sua extensão para incluir questões prejudiciais de mérito?; b) qual a natureza da decisão proferida no âmbito do incidente de desconsideração de personalidade jurídica e sua capacidade de formar coisa julgada?; c) pode um credor se beneficiar da desconsideração operada em processo ajuizado por terceiro?
2. A Coisa Julgada e as questões prejudiciais de mérito
Postos de lado os debates e nuances acerca do instituto da coisa julgada, sua definição quintessencial vem estampada no art. 502 do CPC/15: "Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso".
Abordemos, inicialmente, o objeto da coisa julgada: a decisão de mérito.
Medina ensina que "[p]or mérito considera-se o objeto litigioso, que diz respeito ao pedido (questão principal)". Em outras palavras, há uma decisão meritória quando o judiciário declara quem tem razão acerca do quanto discutido no processo.
Imaginemos um acidente de trânsito em que Tício atinge o veículo guiado por Caio e que tinha Mévio como passageiro. Na ação indenizatória ajuizada por Caio, a responsabilidade pelo ocorrido e pela reparação dos danos são questões de mérito.
O art. 503, §1º do CPC/15 amplia a anterior concepção de coisa julgada restrita à sentença, para atribuir força de lei à decisão que julgar total ou parcialmente o mérito, nos limites da questão principal expressamente decidida, o que se aplica à resolução de questão prejudicial.
Chamamos de prejudiciais aquelas questões, ou pontos controvertidos, cuja apreciação é requisito antecedente e indispensável ao julgamento do pedido.
Retomemos o exemplo acima: para que se julgue procedente a pretensão de Caio, será necessário declarar Tício culpado pela colisão. O juízo de valor acerca da culpa de um dos motoristas é elemento prejudicial à condenação ao pagamento de indenização.
Marinoni , examinando a mesma hipótese, observa:
"Como é óbvio, não há como confundir declaração de responsabilidade civil ou mesmo declaração de culpa com declaração de fato. De modo que não se pode negar coisa julgada sobre questão da responsabilidade civil sob o infantil argumento de que não há coisa julgada sobre fato. Note-se que, uma vez decidida a questão da responsabilidade civil com autoridade d coisa julgada na ação em que se pediu ressarcimento por danos emergentes, não será possível voltar a discutir e decidir a mesma questão em outra ação em que o mesmo autor peça indenização por lucros cessantes ou danos morais em face do mesmo réu em virtude do mesmo fato. O juiz da primeira ação já decidiu sobre a existência da responsabilidade, de modo que o juiz da segunda ação, em que se pede indenização por outro dano em virtude do mesmo fato, não pode permitir que se volte a discutir a questão da responsabilidade, assim como não pode voltar a decidi-la. Está impedido a tanto pela coisa julgada formada sobre a questão."
Cabe aqui divergir da constatação feita por Antonio Gidi, José Teshneier e Marília Zanella Prates, citada por Anissara Toscan:
"Os casos em que uma mesma questão entre as mesmas partes possa voltar ou efetivamente voltará a ser discutida em um segundo processo são raríssimos. Ainda nesses casos, a probabilidade de que a questão seja decidida da mesma forma que no processo anterior é grande. Não vale a pena adotar a complexidade da issue preclusion para preservar a consistência de decisões em um número tão insignificante de casos. Deixar que a questão seja rediscutida em um segundo processo, ainda que possa parecer contraditório, é mais simples e representa dispêndio de menos tempo e energia."
Esta posição nos parece imprópria tanto pela premissa adotada, quanto pelo resultado admitido: além de subestimar a capacidade dos operadores do direito pátrio, considera como mais ágil e menos desgastante que se submetam as partes à repetição do processo anterior.
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Guilherme Barros
Advogado da área de Special Situations e Recuperação Avançada de NPLs.