A imprescritibilidade de atos homofóbicos na justiça desportiva
O futebol, paixão nacional, une o Brasil, mas exige responsabilidade. Leis como a Pelé e geral do esporte combatem discriminações em campo e fora dele.
segunda-feira, 25 de novembro de 2024
Atualizado às 14:31
O futebol é "a paixão nacional que pulveriza diferenças sociais, econômicas e ideológicas, ao tempo em que une torcidas em torno de um só propósito: reverenciar o espetáculo da bola." Trata-se de um patrimônio público cultural brasileiro, de reconhecida relevância e manifesto interesse social. 1
No Brasil, o futebol é uma modalidade desportiva regulamentada por uma série de leis, a exemplo das assim chamadas lei Pelé e lei geral do esporte, respectivamente as leis Federais 9.615/98 e 14.597/23. Ambas as leis se posicionam expressamente contra manifestações antiesportivas, dentre elas o racismo, a xenofobia, a homofobia, o sexismo e qualquer outra forma de discriminação2. A mesma lógica é reproduzida no regulamento geral das competições da CBF - Confederação Brasileira de Futebol3. Isso não poderia ser diferente, sobretudo porque um dos objetivos fundamentais do nosso país é, na forma do art. 3º, IV, da CF/88, "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação."
Eventuais manifestações antiesportivas que possam configurar racismo, homofobia, entre outros, conquanto evidentemente inadmissíveis e intoleráveis por natureza, podem ser punidas na forma do CBJD - Código Brasileiro de Justiça Desportiva, criado pela resolução 01/03 do Conselho Nacional do Esporte, com alterações já implementadas desde então.
Nesse contexto, o art. 243-G do CBJD prevê, como infração disciplinar desportiva, "[p]raticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência". A pena para tal infração não é trivial: (i) suspensão (de 5 a 10 partidas, se praticada por atleta, treinador, médico ou membro da comissão técnica, ou de 120 a 360 dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida ao CBJD); e (ii) multa de R$ 100,00 a R$ 100.000,00.
A gravidade da pena por infração ao referido art. 243-G pode ser ainda pior. Muito pior, na verdade.
De acordo com o seu § 1º, se a infração prevista no dito artigo for "praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva, esta [e.g., o clube de futebol] também será punida com a perda do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente, e, na reincidência, com a perda do dobro do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente; caso não haja atribuição de pontos pelo regulamento da competição, a entidade de prática desportiva será excluída da competição, torneio ou equivalente." Aqui, portanto, a pena mais grave poderia ser a exclusão de um clube de futebol de determinada competição.
Já o § 2º do art. 243-G estabelece que o clube de futebol poderá ter contra si aplicada também a pena de multa, caso a sua torcida pratique "os atos discriminatórios nele tipificados," sendo certo que "os torcedores identificados ficarão proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de setecentos e vinte dias." Isso aconteceu, por exemplo, em um recente episódio levado a julgamento perante o STJD - Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol, no qual determinado clube brasileiro da Série A do campeonato masculino foi condenado ao pagamento de multa de R$ 50.000,00 e dois de seus torcedores, que praticaram atos discriminatórios, foram afastados da respectiva praça esportiva por 900 dias. 4
Por fim, o § 3º do art. 243-G do CBJD é o mais perigoso, no sentido de que, se a infração for considerada de "extrema gravidade," o STJD "poderá aplicar as penas dos incisos V, VII e XI do art. 170" que são, respectivamente, perda de pontos, perda de mando de campo e, nos casos mais sensíveis, eliminação. Com efeito, a depender da gravidade do ato discriminatório praticado no âmbito do futebol, um clube pode ser até eliminado de uma competição.
Os cânticos homofóbicos entoados por uma torcida com a finalidade de, sabe-se lá por qual motivo, atacar a outra torcida, provocando-a, infelizmente são um tanto quanto frequentes no futebol. Eles encaixam-se, em regra, no tipo infracional descrito no art. 243-G do CBJD, sendo um inequívoco ato discriminatório (desdenhoso ou ultrajante) relacionado a preconceito em razão de sexo, por exemplo.
Uma questão interessante que decorre desse debate é a seguinte: será que as infrações antiesportivas consubstanciadas em atos homofóbicos são alcançadas pelo fenômeno da prescrição, que, também no direito desportivo, é um meio de extinção da punibilidade (CBJD, art. 164, IV)? Parece-nos que não.
A resposta negativa à indagação acima tem amparo na técnica da interpretação conforme à CF5, "utilizável quando a norma impugnada admite, dentre as várias interpretações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna6" e plenamente aplicável nos julgamentos do STJD7. Valendo-se de tal técnica para compreender o real alcance do art. 165-A do CBJD, que cuida da prescrição, é lícito concluir que a única interpretação desse dispositivo normativo que se mostra compatível com o texto constitucional é aquela que estabelece ser imprescritível, no âmbito da Justiça Desportiva, as infrações disciplinares previstas no indigitado art. 243-G que se revestem de teor racista, a exemplo dos atos homofóbicos, que não se limitam no futebol, por óbvio, a certos cânticos entoados por torcidas.
De fato, essa é a única interpretação possível do instituto da prescrição em relação aos repudiantes atos discriminatórios listados, de modo exemplificativo, no art. 243-G do CBJD. O STF já deixou muito claro, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26, de relatoria do ministro Celso de Mello, que "as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na lei 7.716, de 08/01/89." 8
Ficou consignado, naquela ocasião, que ainda que "a homofobia e a transfobia possam não se enquadrar no sentido usualmente atribuído ao termo racismo na linguagem popular, é certo que esta Corte, encarregada de interpretar o sentido e o alcance do texto constitucional, manifestou-se de forma inequívoca a respeito do alcance a ser dado a esse conceito, adotando definição abrangente."
Citando o paradigmático Caso Ellwanger, o STF registrou também que foi fixado "o entendimento de que 'o racismo é antes de tudo uma realidade social e política, sem nenhuma referência à raça enquanto caracterização física ou biológica, refletindo, na verdade, reprovável comportamento que decorre da convicção de que há hierarquia entre os grupos humanos, suficiente para justificar atos de segregação, inferiorização e até de eliminação de pessoas'" e, diante desse conceito, "encampado por esta Corte, a vedação constitucional ao racismo é abrangente o suficiente para abarcar a proibição de toda e qualquer forma de ideologia que pregue a inferiorização e a estigmatização de grupos, a exemplo do que acontece com a comunidade LGBTI+."
Na medida em que o Supremo enquadrou a homofobia - hipótese do caso concreto de que falamos acima - como crime de racismo, é evidente que a mesma regra do art. 5º, XLII, da CF/88, segundo o qual "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei," se estende aos atos homofóbicos. Quer-se com isso dizer que a prática de atos homofóbicos - e de todos aqueles atos que podem ser classificados como racistas, na linha do que já decidiu o STF - é imprescritível 9 e essa lógica aplica-se com tranquilidade à Justiça Desportiva, tornando impositiva a rejeição de alegações de denunciados que buscam se valer da prescrição como meio de driblar a sua responsabilidade pela prática de infração disciplinar desportiva tão grave quanto a prática de conduta discriminatória - em razão do sexo, da raça, entre outras.
A imprescritibilidade que aqui se defende é uma inequívoca forma de combater a discriminação no esporte à luz do que dispõe a CF/88, lei maior do ordenamento jurídico brasileiro. Atos discriminatórios não são compatíveis com o desporto e não podem, em hipótese nenhuma, passarem ilesos. É certo que cada caso é um caso, afinal "cada processo hospeda uma vida,"10 mas não se pode deixar de examinar denúncias por atos homofóbicos, por exemplo, com base em prescrição, quando a ordem constitucional brasileira evidencia que tais atos são imprescritíveis e, portanto, devem ser analisados no mérito, para verificar se houve, de fato, a infração disciplinar desportiva que se reputa ter havido.
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Paulo Dantas e Gustavo Lisboa, Erro de direito da arbitragem de futebol, Consultor Jurídico, 2/11/2024, disponível em https://www.conjur.com.br/2024-nov-02/erro-de-direito-da-arbitragem/.
Assim já decidiu o STF, aplicando o art. 216 da CF (cf. ADI 5450, rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 18/12/2019).
Art. 11, XVII, da Lei Geral do Esporte. Por sua vez, o art. 2º, III, da Lei Pelé prevê o princípio da democratização como base do desporto, "garantido em condições de acesso às atividades desportivas sem quaisquer distinções ou formas de discriminação."
Art. 1º, § 1º, do Regulamento Geral das Competições CBF de 2021.
Cf. https://www.stjd.org.br/noticias/corinthians-e-multado-em-r-50-mil-por-acoes-de-torcedores.
"A interpretação conforme a Constituição é uma técnica interpretativa que ajusta, harmoniza e corrige a lei com a Constituição, elegendo diante de uma multiplicidade de modalidades interpretativas, aquela que deveria ser considerada constitucional." (Georges Abboud, Processo constitucional brasileiro, 5ª ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 745).
STF, ADI 6096 ED, rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 14/06/2021.
Sobre o tema, ver Gustavo Favero Vaughn, O controle difuso de constitucionalidade no âmbito do STJD do futebol: "pode isso, Arnaldo"? Coluna Jus Desportiva, disponível em https://ibdd.com.br/o-controle-difuso-de-constitucionalidade-no-ambito-do-stjd-do-futebol-pode-isso-arnaldo/?v=19d3326f3137.
STF, ADO 26, rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 13/06/2019.
O STF já reconheceu também que a homotransfobia pode configurar crime de injúria racial e, tendo em vista que a injúria racial "constitui uma espécie do crime de racismo", tal crime é imprescritível (cf. MI 4733 ED, rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 22/08/2023).
Cesar Asfor Rocha, Cartas a um jovem juiz: cada processo hospeda uma vida, Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.
Gustavo Favero Vaughn
Sócio de Cesar Asfor Rocha Advogados, em São Paulo e Brasília, Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, com LL.M. pela Columbia Law School. Auditor da 4ª Comissão Disciplinar do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) do Futebol. Professor do IDP Online. Foi International Lawyer no escritório Cleary Gottlieb Steen & Hamilton LLP, em Nova Iorque.
Salvio Dino Júnior
Advogado. Presidente da 4ª Comissão Disciplinar do STJD do Futebol. Mestre em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa e Doutorando pela PUC-RS.
Caio Carvalho Barros
Advogado. Vice-Presidente da 4ª Comissão Disciplinar do STJD do Futebol. Membro Consultor da Comissão Especial de Direito Desportivo do Conselho Federal da OAB. Auditor da 1ª Comissão Disciplinar do STJD do Futebol (agosto/2023 a julho/2024). Procurador do STJD do Futebol (abril/2021 a agosto/2023).
Juliana Camões
Advogada, Professora, Coordenadora do Núcleo Mais Mulheres no Esporte da Superintendência dos Desportos do Estado da Bahia, coordenadora da coluna do IBDD, Diretora Caixa de Assistência dos Advogados da Bahia, Secretária da Comissão de Direito Desportivo da OAB/BA, Membro da Comissão Jovem da Academia Nacional de Direito Desportivo, procuradora do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem, Auditora da 4ª Comissão Disciplinar no STJD do Futebol, Auditora da 2ª Comissão Disciplinar do STJD do Futsal, Auditora no Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol Americano, Presidente do Tribunal de Justiça Desportiva do Karatê, Auditora no Tribunal de Justiça Desportiva do Vôlei, Componente do Comitê de Ética da União Brasileira de Cheerleaders, membro do Conselho de Ética da Confederação Brasileira de Hóquei sobre a Grama e Indoor.
Gabriel Fonseca
Advogado. Auditor da 4ª Comissão do STJD do Futebol. Doutor em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo (USP). Visiting Researcher no Weizenbaum-Institut für die vernetzte gesellschaft e no WZB - Wissenschaftszentrum Berlin für Sozialforschung (2024). Pesquisador associado ao Centro de Políticas, Direito, Economia e Tecnologias das Comunicações da Universidade de Brasília (CCOM/UnB). Coordenador de Pesquisa no Centro de Direito, Internet e Sociedade do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)