Ofensa reflexa à Constituição: O paradoxo do recurso extraordinário
Uma análise crítica da controversa construção jurisprudencial do STF sobre "ofensa reflexa à Constituição".
quinta-feira, 21 de novembro de 2024
Atualizado às 14:04
A jurisdição constitucional brasileira, desde a proclamação da república, tem no recurso extraordinário seu principal instrumento de controle difuso de constitucionalidade1. Isto porque este recurso excepcional, previsto no art. 102, III, alínea "a" da CF/882, tem como uma de suas hipóteses de cabimento a contrariedade a dispositivo da constituição, e, de início, já se pontua que o referido dispositivo constitucional não contempla qualquer exigência quanto à natureza "frontal e direta" da violação constitucional.
Contudo, a partir de uma construção jurisprudencial iniciada na década de 1954, o STF passou a exigir que a ofensa à constituição fosse "direta e frontal", não admitindo o conhecimento do recurso extraordinário quando a violação dependesse da análise prévia de legislação infraconstitucional - o que se convencionou chamar de "ofensa reflexa".
Situação que chama a atenção. Isso pois antes da promulgação da CF/88, ao STF competia processar e julgar via recurso extraordinário tanto a violação à lei federal, quanto as violações ao texto constitucional3. Tal circunstância histórica evidencia a contradição da exigência de ofensa direta, pois à época cabia à suprema corte a palavra final sobre a questão controvertida, independentemente de sua natureza constitucional ou infraconstitucional.
Outro aspecto relevante emerge da análise jurisprudencial. Em pesquisa realizada no site do STF, constata-se que a exigência de violação direta e frontal ao texto constitucional foi inicialmente utilizada para fundamentar o não conhecimento de recursos que versavam sobre ausência de violação à lei federal4, e não à CF/88, como ocorre na jurisprudência atual.
No entanto, posteriormente, em 1983, a suprema corte expandiu o alcance desse entendimento, passando a negar seguimento a recursos extraordinários que alegavam violação constitucional, sob o fundamento de que: "A vulneração não vence o óbice regimental porque se radica em violação de legislação ordinária. A ofensa à constituição, para ensejar recurso extraordinário, deve ser direta e frontal5".
Ressalte-se uma vez mais que o requisito de "ofensa direta e frontal" jamais encontrou respaldo nos textos constitucionais brasileiros. Nem a CF/46 (art. 101, III), nem a de 1967 (art. 114, III), tampouco a atual carta de 1988 (art. 102, III) estabeleceram tal exigência para o conhecimento do recurso extraordinário.
Não obstante isso, a criação do STJ pela CF/88 agravou ainda mais este cenário, introduzindo um verdadeiro paradoxo recursal. Enquanto o STF manteve sua orientação de não conhecer recursos extraordinários sob o fundamento da ofensa reflexa, o STJ, por sua vez, passou a inadmitir recursos especiais quando a matéria apresenta também fundamento constitucional e a parte não interpõe, também recurso extraordinário6, ou ainda, nos casos em que a corte de justiça entenda que a questão possui envergadura constitucional e não infraconstitucional.
Esse cenário resulta em um verdadeiro "limbo recursal". Isto porque, quando o acórdão do Tribunal local se fundamenta tanto em matéria constitucional quanto infraconstitucional, a parte sucumbente vê-se obrigada a interpor simultaneamente recurso especial e extraordinário, sob pena de incidir nas súmulas 283 do STF e 126 do STJ. Contudo, mesmo cumprindo tal exigência, frequentemente o recurso extraordinário tem seu seguimento obstado sob o argumento de que a ofensa constitucional não seria "direta ou frontal", mas sim reflexa à CF/88.
A irrazoabilidade dessa construção jurisprudencial é evidenciada por Teresa Arruda Alvim Wambier7, ao apontar que "há casos em que o excesso de regras em torno da admissibilidade desses recursos (excepcionais) leva a contra-sensos. Exemplo disso é a regra no sentido de que ao STF só cabe conhecer de 'ofensa direta' à CF/88. Isto significa dizer que, se para demonstrar que houve a ofensa à CF/88, a argumentação da recorrente tem necessariamente de passar pela lei ordinária (que, v.g., repete o princípio constante na CF/88) e porque se estaria diante de ofensa 'indireta' à CF/88, que, por isso, não deveria ser examinada pela via do recurso extraordinário.".
A problemática se agrava diante da divergência entre STF e STJ quanto à delimitação de suas próprias competências. Não raro, o STJ afasta sua competência por entender que a matéria tem natureza constitucional, enquanto o STF, por sua vez, considera tratar-se de questão infraconstitucional, sob o argumento de que eventual ofensa à Constituição seria meramente reflexa. Exemplo recente dessa divergência foi observado na discussão sobre a exclusão do ICMS-DIFAL das bases de cálculo do PIS e da COFINS, questão que só foi enfrentada pelo STJ em 2024, superando, enfim, o "limbo recursal" que persistia sobre o tema8.
Neste cenário, o maior prejudicado é o jurisdicionado, que se vê privado da adequada prestação jurisdicional pelo órgão competente para dar a palavra final sobre a matéria. O CPC de 2015, atento a esta problemática histórica do conflito negativo de competência entre STF e STJ, buscou uma solução através do art. 1.033 do CPC9. Contudo, na prática, a inovação legislativa não alcançou a efetividade esperada. Em vez de determinar a remessa dos autos ao STJ, como prevê o dispositivo, o STF tem mantido sua praxe de simplesmente não conhecer do recurso extraordinário sob o fundamento da ausência de violação direta e frontal à Constituição, sem determinação de remssa dos autos ao STJ para que este julgue em última instância o caso.
Na realidade, a grande maioria dos casos que chegam ao STF pela via do RE versa sobre dispositivos constitucionais que necessariamente se desdobram na legislação infraconstitucional, seja pela própria natureza principiológica do texto constitucional, seja por se tratarem de normas de reprodução obrigatória. Ainda assim, paradoxalmente, tais recursos são sistematicamente não conhecidos sob o fundamento da ausência de violação direta e frontal à Constituição.
A crítica a este posicionamento restritivo encontra respaldo na doutrina de Cassio Scarpinella Bueno10, ao observar que: "A jurisprudência do STF, contudo, sempre foi e continua a ser bastante restritiva a este respeito, exigindo que a inconstitucionalidade que desafia o recurso extraordinário com fundamento na 'letra a' seja direta, e não indireta, reflexa ou oblíqua. O entendimento poderia até querer justificar a necessidade de redução do número de recursos extraordinários em trâmite perante aquela Corte. No sistema atual, em que há um legítimo filtro de contenção daqueles recursos ..., não há razão para distinguir aquelas situações.".
O autor do presente artigo não desconhece que tal posicionamento jurisprudencial configura, essencialmente, um filtro destinado a reduzir o volume de recursos que chegam à suprema corte. Contudo, como bem observa Osmar Mendes Paixão Côrtes11, "a afronta indireta à Constituição constitui violação da mesma forma que a direta..". Assim, considerando que o texto constitucional não estabelece a exigência de ofensa direta e frontal como requisito de admissibilidade, a manutenção desse entendimento pelo STF só se justificaria mediante expressa alteração do próprio texto constitucional, para que este passasse a prever, como requisito formal do Recurso Extraordinário, a necessidade de violação direta e frontal à Carta Magna, afinal a referida previsão recursal decorre de Proforça normativa imposta pelo próprio legislador constituinte.
Já caminhando para o fim, vale destacar que a reflexão sobre este cenário encontra especial ressonância nas palavras do Ministro Celso de Mello12, ao advertir que "Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos.".
Portanto, a construção jurisprudencial da ofensa reflexa à constituição, embora concebida como mecanismo de contenção do volume de recursos extraordinários, converteu-se em verdadeiro obstáculo ao acesso à justiça. Ainda que o art. 1.033 do CPC/15 represente um avanço ao buscar solucionar o conflito negativo de competência entre STF e STJ, tal inovação legislativa mostra-se insuficiente para resolver a questão em sua integralidade. Como resultado, o jurisdicionado permanece como principal prejudicado, vendo-se privado de uma efetiva prestação jurisdicional pelos Tribunais Superiores.
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1 Direito Constitucional / Pedro Lenza; organizado por Pedro Lenza. - 27. ed. - São Paulo: SaraivaJur, 2023. (Coleção Esquematizado®). p. 611
2 Art. 102. Compete ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
[...]
III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
a) contrariar dispositivo desta Constituição;
3 Art. 114 - Compete ao STF: (Redação dada pelo Ato Institucional nº 6, de 1969)
III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas, em única ou última instância, por outros Tribunais, quando a decisão recorrida: (Redação dada pelo Ato Institucional nº 6, de 1969)
a) contrariar dispositivo desta Constituição ou negar vigência a tratado ou lei federal;
4 STF: RE 27011 - https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur137856/false
5 STF: AI 93155 - https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur155173/false
6 https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?b=SUMU&sumula=126
7 7 MADOZ, Wagner Amorin. Recurso extraordinário pela alínea a. in NERY JR, Nelson; Wambier, Teresa Arrruda Alvim (coord). Aspectos Polêmicos e atuais dos recursos Cíveis e assuntos afins 9. São Paulo: RT, 2006, p. 573-646.
8 STJ determina a exclusão do Difal do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins | Legislação | Valor Econômico
9 Art. 1.033. Se o STF considerar como reflexa a ofensa à Constituição afirmada no recurso extraordinário, por pressupor a revisão da interpretação de lei federal ou de tratado, remetê-lo-á ao STJ para julgamento como recurso especial.
10 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva. 2009, v. 5
11 CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. O cabimento do recurso extraordinário pela alínea 'a' do art. 102, III, da CF/88 e a causa de pedir aberta. In NERY JÚNIOR. Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord) Aspectos Polêmicos e atuais dos Recursos Cíveis e assuntos afins. v.11, São Paulo: RT, 2007, p. 246-255.
12 https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ARE639337ementa.pdf