Ameaça e violência doméstica: Quando a vítima tem medo de denunciar
O pacote antifeminicídio tornou a ameaça praticada vítima de violência doméstica e familiar um crime de ação penal pública incondicionada, com mudanças que serão analisadas neste artigo.
quinta-feira, 14 de novembro de 2024
Atualizado às 14:22
O pacote antifeminicídio, como ficou conhecida a lei 14.994, de 9 de outubro de 2024, promoveu diversas alterações no Código Penal, no CPP e na lei de execuções penais, com o evidente objetivo de tornar mais rígida a punição para ilícitos penais praticados em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Dentre as modificações, uma delas se destacou, especialmente quando retratada no caso concreto.
Antes do pacote antifeminicídio o crime de ameaça praticado contra a mulher em contexto de violência doméstica e familiar somente seria investigado caso houvesse representação da vítima no prazo decadencial de seis meses. Em outras palavras, tratava-se de crime de ação pena pública condicionada à representação da pessoa ofendida.
Entretanto, com a nova redação, a ação penal para este ilícito passou a ser pública incondicionada, de modo que não há mais necessidade de representação da ofendida. Isso significa que a investigação poderá ser iniciada e a denúncia oferecida independentemente de representação da vítima.
De um lado, há quem defenda que essa medida beneficia a mulher já que o autor do ilícito penal será investigado e possivelmente processado independente do desejo da vítima, o que antes poderia não ocorrer caso não representasse.
Era comum, nesse contexto, que a ofendida deixasse de representar criminalmente, com o fim de proteger o ofensor, seja porque ele é pai dos filhos que possuem em comum, porque é o provedor financeiro do casa ou simplesmente porque acredita no relacionamento. Nesse sentido, a inovação garantiria maior proteção da vítima justamente nesses casos.
Contudo, na prática, essa mudança legislativa, ao contrário do que pretende, pode prejudicar as vítimas.
Isto porque, é possível que a mulher, com o fim de proteger o agressor, deixe de registrar boletim de ocorrência narrando os fatos que tipificam a ameaça. Consequentemente, deixará de ser beneficiada com medidas protetivas, o que pode mantê-la em risco e em situação de violência cada vez mais grave.
Além disso, ante a ausência de comunicação dos fatos às autoridades competentes, mais difícil será o mapeamento e contabilização da prática de ameaça contra a mulher, o que pode causar a falsa sensação de que a alteração legislativa cumpriu seu propósito de coibir esses ilícitos penais.
Ao que tudo indica, não é a lei que precisa ser mais rigorosa. Sua execução é que precisa ocorrer de modo mais cuidadoso e preciso a fim de fazer cumprir os valiosos preceitos legais em busca da efetiva garantia de direitos e proteção às vítimas de violência doméstica e familiar.
O que observamos no dia-a-dia é a imensa dificuldade de executar as medidas protetivas, desde a intimação dos agressores sobre a decisão judicial que as concede até a fiscalização de seu efetivo cumprimento.
É claro que as discussões a respeito deste assunto não se esgotam por aqui e esperamos muito em breve debates a respeito da retroatividade da inovação legal, como ocorreu em relação à exigência de representação para crimes de estelionato.
Fato é que não se pode desamparar as pessoas ofendidas em contexto de violência doméstica e familiar unicamente em busca do rigor punitivo, o que certamente causará efeitos mais graves e irreversíveis nos casos concretos.