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A nova resolução do CFM e os desafios da atuação dos profissionais de saúde

Resolução CFM 2.416/2024 as práticas médicas frente às outras profissões da saúde. A judicialização novamente à frente dos atos profissionais.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Atualizado às 14:11

Introdução:

A nova resolução 2.416/24, do CFM, publicada aos 30 de setembro de 2024, apresenta definições mais específicas dos atos privativos dos médicos, enfatizando as áreas de diagnóstico, prescrição e intervenções terapêuticas exclusivas destes profissionais, além de impor limites sobre as atividades que podem ser desempenhadas por outros profissionais de saúde.

Essa postura é uma atualização mais restritiva comparada à resolução anterior, de 1.627/01, que já defendia a necessidade de definição dos limites de atuação de outros profissionais da saúde, contudo, ainda reconhecendo o papel das equipes multiprofissionais na saúde e mantendo algumas margens para a atuação de outros profissionais.

Ao compararmos essa resolução com as normativas anteriores, como a resolução 1.627/01 e a própria lei Federal 12.842/13 (lei do ato médico) observamos um movimento do CFM em ampliar a abrangência do que considera exclusividade médica, impactando diretamente o campo de atuação de outros profissionais da saúde.

A lei 12.842/13, conhecida como lei do ato médico, também define atividades que são privativas dos médicos, como o diagnóstico nosológico e a prescrição de terapias. Contudo, na época da sanção desta lei, a presidência da república vetou algumas das restrições mais rigorosas que limitavam a atuação de enfermeiros, dentistas e outros profissionais. Os vetos permitiram, por exemplo, que esses profissionais solicitassem exames e prescrevessem certos medicamentos em contextos específicos, como na atenção primária à saúde. 

Fato é que, há algum tempo o entendimento do CFM segue no sentido de ser inaceitável que outros conselhos profissionais legislem editando resoluções que dão abertura e guarida para que outros profissionais da área da saúde possam ampliar sua atuação profissional, em especial na atividade estética, haja vista as disputas normativas recentes com o CFO -Conselho Federal de Odontologia, apenas para citar um exemplo.

A resolução 2.416/24, ao reinterpretar a lei do ato médico e, ao mesmo tempo, tentar restringir práticas na área da saúde, corre o risco de ir contrariar os vetos presidenciais e, talvez, a própria mens legis original, o que levanta questionamentos quanto à sua legalidade, uma vez que uma resolução não poderia sobrepor-se à lei federal e mais, à própria competência normativa delegada pela lei 3.268/57, que criou os conselhos de medicina.

Impacto e perspectivas para o trabalho multiprofissional:

A resolução reforça uma visão centrada no médico e reduz a margem para atividades compartilhadas com outras profissões, o que pode caracterizar uma ameaça ao modelo de saúde coletiva brasileiro, que se baseia na atuação integrada de várias especialidades.

A título de exemplo, tanto a mencionada lei 12.842/13 quanto a lei 7.498/86 que dispõe sobre o exercício da enfermagem, reconhecem a atuação dos profissionais da saúde de forma multiprofissional, permitindo que enfermeiros realizem procedimentos que não estejam expressamente reservados aos médicos.

Com isso, deve surgir um novo campo de tensão entre a recém publicada resolução do CFM e as normas do COFEN, principalmente no campo das atividades multiprofissionais e dos procedimentos que envolvem urgência e emergência, onde a atuação dos enfermeiros é fundamental.

COFEN - Conselho Federal de Enfermagem argumenta que a resolução do CFM contradiz a lei 7.498/86, que regulamenta a enfermagem no Brasil, e as diretrizes do SUS, que incentivam a atuação multiprofissional e isso dificultará o acesso à saúde em áreas onde os médicos são escassos, especialmente nas regiões mais remotas. Destaca o presidente do COFEN: "O médico não é um astro-rei em torno do qual gravitam os profissionais de saúde. Esse tipo de resolução representa o atraso de se tentar vetar a presença do médico como integrante da equipe multiprofissional de saúde e o trabalho interdisciplinar e multidisciplinar, diferentemente do que ocorre nos países mais desenvolvidos do mundo".1

Tal posicionamento deve estimular a judicialização da questão, inclusive porquanto já há precedente jurisprudencial a respeito das atividades da enfermagem, em essencial no âmbito dos programas públicos de saúde e da atenção básica, que já possuem respaldo legal e jurisprudencial.2

A resolução 176/16 do CFO - Conselho Federal de Odontologia também entrará em conflito com a nova resolução médica, em especial pelo art. 4º, inciso II, letra "a" o qual determina que a aplicação de toxina butolínica, bioestimuladores, preenchedores, fios de sustentação e quaisquer outros dispositivos implantáveis como prescrição privativa do médico, prerrogativa garantida aos profissionais da odontologia pela norma do seu conselho.

Em carta aberta, o COFFITO - Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional declara estare estarrecido com a nova resolução que, a pretexto de dispor sobre atos próprios dos médicos, pretendeu interferir ilegalmente no exercício das demais profissões regulamentadas da saúde, e ainda, na tentativa aparente de criminalizar o trabalho dos demais profissionais, indicando mais uma linha de tensão a ser administrada, provavelmente, pela via judicial.3

II. Controle e supervisão direta dos atos de outros profissionais

O § 3º do art. 5º da resolução CFM 2.416/24 introduz um aspecto controverso ao dispor que os médicos são corresponsáveis pelos atos realizados por outros profissionais de saúde, quando estes atuam sob alguma forma de supervisão ou orientação médica.

Este ponto levanta diversas questões jurídicas e práticas, especialmente em relação à autonomia profissional, à atribuição de responsabilidades e à solução logística no ambiente hospitalar.

A afirmação de que o médico responderá pelos atos de outros profissionais de saúde, ainda que em situações de supervisão, desconsidera as práticas de trabalho multiprofissional e interdisciplinar nos serviços de saúde.

Muitos atos praticados por enfermeiros, farmacêuticos e fisioterapeutas, por exemplo, não exigem a supervisão médica, mas são realizados de maneira independente, com base na regulamentação profissional específica de cada categoria e no conhecimento técnico de cada profissão

A tentativa de impor essa corresponsabilidade ao médico ignora a divisão de responsabilidades que é essencial ao funcionamento da equipe de saúde. Exigir que o médico tenha controle direto sobre todos os atos praticados por muitos profissionais de saúde é incompatível com a realidade das práticas hospitalares, onde múltiplos procedimentos ocorrem de forma simultânea e contínua.

Autonomia profissional e o papel do médico na equipe multiprofissional

O art. 6º, §2º e §3º, da resolução CFM 2.416/24, aborda dois temas sensíveis ao exercício médico: A obrigação de notificação de eventos adversos causados por profissionais não médicos e a necessidade de comunicação às autoridades de casos de óbito sob suspeitas de prática ilegal da medicina. 

Esses dispositivos colocam os médicos em uma posição complexa ao exigir que informem seus conselhos regionais sobre atos de terceiros, criando conflitos entre as equipes. 

Evidentemente que não se pretende propor o acobertamento de eventos adversos, que já devem ser comunicados através de fluxos estabelecidos pela Anvisa, RDC 36/13, em prol da segurança do paciente.

Contudo, não há que se estabelecer tal previsão entre os conselhos, na medida em que a lei 3.268/57 não concede tal atribuição às entidades médicas de fiscalização profissional.

A autonomia médica refere-se ao poder do médico de tomar decisões baseadas em seu julgamento clínico e ético, um princípio que é fundamental para garantir a liberdade de atuação dentro dos limites da responsabilidade profissional. 

No entanto, essa autonomia deve coexistir com a autonomia de outros profissionais, que também são capacitados e regulamentados pelos seus respectivos conselhos e códigos de ética. A autonomia de cada profissional é, portanto, uma condição básica para o sucesso dessa prática colaborativa. 

Ao exigir que os médicos notifiquem e, em alguns casos, supervisionem atos de profissionais de outras áreas, a resolução cria uma relação hierárquica de vigilância e uma responsabilidade adicional ao médico que interfere na atuação autônoma de outros membros da equipe de saúde. 

Na prática, essa exigência pode gerar conflitos e desconfiança dentro da equipe, pois os demais profissionais podem sentir que sua capacidade de atuação está sendo questionada, criando uma relação de dependência em relação ao médico que não se justifica nos modelos de cuidado mais modernos.

Outro ponto crucial é o limite da responsabilidade médica em atos realizados por outros profissionais. No modelo multiprofissional, cada membro responde diretamente por sua área de atuação, o que cria uma divisão clara de responsabilidades e permite que cada profissional exerça sua função com segurança.

Ao transferir a responsabilidade para o médico mesmo em situações de erro cometidas por outros profissionais, a resolução rompe essa lógica, sobrecarregando o médico com uma vigilância que é impraticável em ambientes de alta demanda e que desconsidera as qualificações e responsabilidades dos demais membros da equipe.

Conclusão:

A resolução CFM 2.416/24 promove, de fato, uma reinterpretação da lei do ato médico, definindo os atos privativos de médicos, centralizando diagnósticos, prescrições e intervenções terapêuticas como exclusivas deste profissional, ao passo que ainda lhes transfere uma obrigação decorrente de atos praticados por outros profissionais da saúde, incompatível com a prática multiprofissional moderna.

Essa centralização levanta questionamentos sobre o equilíbrio de responsabilidades na equipe multiprofissional, além de representar uma tentativa do CFM de limitar a prática de outras profissões da saúde, como a enfermagem, a fisioterapia e a odontologia, impactando diretamente na prestação de um cuidado integral e acessível, principalmente em áreas onde a atuação integrada é essencial para o atendimento.

O caminho da judicialização será inevitável. Incumbirá ao Poder Judiciário, através do respectivo cotejamento das normas e leis que instituem os conselhos de fiscalização na área da saúde, definir os limites entre as áreas de atuação o que, nem sempre é mais indicado, na medida que restringirá o poder normativo destes órgãos, como já verificado em situações semelhantes.

O prejuízo maior recairá sobre o ressurgimento de uma grande linha de tensão que coloca, de um lado, os médicos e de outro todos os demais profissionais de saúde.

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1 https://www.cofen.gov.br/cofen-vai-a-justica-defender-enfermagem/

2 O TRF da 1ª região rejeitou o agravo de instrumento interposto pela SBD - Sociedade Brasileira de Dermatologia e manteve em vigor a resolução 731/2023, do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), que regulamenta a realização de suturas simples por enfermeiras e enfermeiros, inclusive com o uso de anestesia local. https://www.cofen.gov.br/enfermeiros-podem-fazer-suturas-reafirma-trf1-ao-negar-recurso-da-medicina/

2 https://www.coffito.gov.br/nsite/?p=29901

Osvaldo Pires Garcia Simonelli

VIP Osvaldo Pires Garcia Simonelli

Advogado e Professor. Esp. em Direito Médico. Ms. em Ciências da Saúde. Idealizador do Programa de Formação em Direito Médico. Fundador do DMed15 - Inteligência Coletiva em Direito Médico e da Saúde.

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