Da necessidade de uma interpretação sistemática do art. 382, § 4° do CPC
Análise sistemática do art. 382, § 4° do CPC para superar o entendimento de que não cabe recurso ou defesa fora das hipóteses deste dispositivo.
quinta-feira, 14 de novembro de 2024
Atualizado às 10:33
O procedimento de produção antecipada de provas, na sistemática do CPC/15 (arts. 381 a 383), possui ao menos dois objetivos gerais: a urgência, que consiste em evitar o risco de perda ou dificuldades na produção da prova quando do momento oportuno na ação judicial comum ou para tomar conhecimento antecipado de determinados fatos e provas para averiguar a conveniência do ajuizamento de uma lide ou autocomposição.
Para Theodoro Júnior (2024), na produção antecipada de provas não importa qual desses seria o objetivo do promovente, se é para o caso de evitar a perda ou risco da prova ou mesmo para tomar conhecimento de certos fatos sem o compromisso de aforamento futuro, bastando o preenchimento dos requisitos de admissibilidade do art. 381 do CPC.
Semelhantemente é o pensamento de Marcato (2022) quando diz que: "Em determinadas circunstâncias, por outro lado, permite o legislador que as provas sejam produzidas anteriormente ao próprio processo, ainda que com vistas à utilização em potencial litígio futuro, normalmente por força de situações que coloquem em risco a possibilidade de produção útil da prova se aguardado o momento natural."
A controvérsia parte do disposto no art. 382, § 4° do CPC, e a interpretação literal de que neste tipo de procedimento não se cogita de defesa ou recurso exceto no caso de indeferimento total da produção da prova pleiteada, in verbis:
Art. 382, § 4º Neste procedimento, não se admitirá defesa ou recurso, salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário.
Sob uma interpretação literal, o dispositivo parece vedar, de forma ampla, a possibilidade de qualquer recurso ou defesa, limitando o direito ao contraditório das partes. Entretanto, uma análise sistemática e teleológica do CPC revela que essa vedação não deve ser interpretada em absoluto, abrindo espaço para hipóteses específicas de cabimento de recursos.
Com base nessa interpretação literal, muitos Tribunais têm deixado de conhecer de apelações por entender inadmissível a sua interposição, de início, mediante decisão monocrática, com espeque no art. 932, III do CPC, e ao final pelo colegiado quando interposto agravo interno, negando provimento a esse.
Se se considerar a interpretação literal desse dispositivo haveria conflito com diversas normas, tanto constitucional como legal, visto que o art. 1° do CPC disciplina que todo o código deve observar os valores e normas fundamentais estabelecidos na CF/88.
Assim, surgem os seguintes conflitos normativos:
1. Violação ao contraditório e ampla defesa - Art. 5°, LV, CF/88 e art. 7° do CPC: A proibição genérica de irrecorribilidade da sentença que homologa a produção antecipada de provas ou mesmo de apresentação de defesa viola garantia constitucional do contraditório e ampla defesa (art. 5°, LV, CF/88), também prevista no art. 7° do CPC como princípio a ser observado pelos magistrados.
2. Violação ao direito de recorrer e a inafastabilidade jurisdicional: O art. 1.009 do CPC que diz que da sentença cabe apelação, sem fazer acepção ao tipo de procedimento. Da mesma sorte se dirá no caso de produção antecipada de provas envolvendo a exibição de documentos, dado que o art. 1.015, VI do CPC admite a interposição de agravo de instrumento. E igualmente ocorre com o art. 3° do CPC, já que não poderia, por exemplo, o relator não conhecer desses recursos com base na generalidade do art. 382, § 4°, deixando de analisar questões que afetem ou ameacem o direito do recorrente.
O art. 384, § 4° do CPC, nada mais fez do que citar o óbvio, a impossibilidade de recurso quando da ausência de interesse recursal no capítulo da sentença que homologa a prova produzida nos autos. Em outras palavras, não existe, de fato, interesse recursal do requerente no procedimento de prova antecipada quando esta é apresentada e homologada na sentença. Em suma não há recurso ou defesa quando segue-se o roteiro primevo.
Ao que parece, o legislador apenas previu a situação ideal e modelo para esse tipo de procedimento, e em se mantendo, isto é, o autor ajuíza a ação, mostra a pertinência da produção antecipada da prova, o juiz cita o réu e a prova é produzida, e ao final é proferida a sentença homologatória, sem que haja qualquer incidente manifesto na esfera jurídica das partes, e porquanto nesta situação não se cogita de defesa ou recurso. Todavia, se houver algum desvio desse padrão legislativo, então, dar-se-ia espaço para defesa e recursos.
Esclarecedora é a lição de Marcato (2022) quando fala sobre essa situação-modelo prevista pelo legislador:
Concebeu o legislador, com efeito, uma situação-modelo em que a prova seja requerida nos limites do art. 381 e em que os interessados sejam citados meramente para o acompanhamento e participação, não para se defender (pela desnecessidade disso, já que inexistente qualquer provimento requerido em face deles), bem como na qual a decisão final, não envolvendo qualquer manifestação valorativa em torno do conteúdo da prova produzida, ou incidente sobre a esfera jurídica dos interessados, tampouco suscite interesse recursal, pela ausência de lesividade. Enfim, uma situação com restritíssima cognição judicial e com atuação das partes concentrada basicamente na produção da prova, em si.
E conforme bem mencionou Freire (2017) se no procedimento comum com diversas fases deve se conferir às partes o direito ao contraditório, mais ainda deve ser no procedimento de produção antecipada de provas já que suprime uma parcela da fase instrutória.
Todavia, pode ocorrer de a sentença conter capítulos diversos da mera homologação da produção da prova pretendida ou mesmo situação que afete a esfera jurídica da parte, distante da situação modelo criada pelo legislador, dando ensejo ao interesse de agir ou recursal, aqui citaremos alguns:
1. Apelação relativa ao capítulo de honorários sucumbenciais: Quando o magistrado fixa ou deixa de fixar honorários sucumbenciais na decisão que julga a produção antecipada de provas, surge um capítulo decisório que pode ser objeto de apelação, conforme previsto no art. 1.009 do CPC. Essa possibilidade decorre do fato de que a decisão sobre honorários não faz parte do mérito da produção antecipada de provas, mas sim de uma questão acessória passível de recurso e que pode prejudicar ao recorrente.
Assim, por exemplo, em havendo pretensão resistida na via administrativa ou judicial, já que a pretensão é una, incide o princípio da causalidade, art. 85 do CPC, devendo o réu ser condenado em honorários sucumbenciais e caso a sentença deixe de o condenar, contra esse ato jurisdicional, cabe apelação ou mesmo embargos de declaração.
2. Apelação relativa a outros capítulos da sentença: Imagem também uma situação na ação de produção antecipada de provas em que na sentença consta um capítulo extrapetita, como a condenação do réu em danos morais ou mesmo fixação de honorários em desacordo com o art. 85, § 2° do CPC, logo verifica-se o interesse recursal e a possibilidade de interposição de apelação.
3. Possibilidade de defesa do réu: Também o réu poderia apresentar defesa, impugnação ou interpor agravo de instrumento na situação em que comprovar a ausência de justificativa, necessidade da produção antecipada da prova, inexistência do requisito do inciso I do art. 381 do CPC, ou que não é parte legítima e outras matérias de ordem pública, cognoscíveis de ofício segundo reza o enunciado 32 da CJF (I Jornada de Direito Processual Civil). Ou seja, como leciona Júnior (2024), nesse tipo de procedimento é obrigação do magistrado, por questões de princípios constitucionais, garantir ao réu atravessar contestação, participar da produção da prova pericial, indagar testemunhas ou depoentes, em suma, garantir o direito de defesa.
4. Deferimento parcial da prova: O conteúdo literal do art. 382, § 4° do CPC não consigna a hipótese de interesse recursal quando do indeferimento parcial da produção da prova. Não há plausibilidade em se conceber a ideia que nos casos de deferimento parcial da prova não caberia a interposição de apelação ou agravo de instrumento (a depender do momento processual). Por isso, indagando essa previsão, Arruda Alvim (2017) alerta para a inconstitucionalidade da norma e abertura para mandado de segurança frente ao desvio do pensamento do legislador.
A 4° turma do STJ, em alguns julgados anteriores (AgInt nos EDcl no AREsp 2176372 / SP) chegou a entender pela interpretação literal do art. 382, § 4° do CPC, mas, recentemente modificou esse entendimento (AgInt no AREsp 2390973 / BA) e acertadamente aquele colegiado concebe que a melhor interpretação desse dispositivo não é a literária.
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DECISÃO DA PRESIDÊNCIA DO STJ. RECONSIDERAÇÃO. AÇÃO DE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS. SUCUMBÊNCIA. APELAÇÃO. CABIMENTO. JURISPRUDÊNCIA DA QUARTA TURMA DO STJ. AGRAVO INTERNO PROVIDO. AGRAVO CONHECIDO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. O entendimento jurisprudencial da eg. Quarta Turma do STJ é no sentido de que a melhor interpretação para o comando do art. 382, § 4º, do CPC/2015, à luz dos princípios da ampla defesa e do contraditório, não é a literal, senão aquela que permite a manifestação e a irresignação da parte requerida, sobretudo para se contrapor à produção de prova desnecessária ou descabida na espécie, bem assim para questionar, por meio de recurso, os atos praticados durante o trâmite processual (AgInt no AREsp 1.948.594/MG, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 29/11/2023, DJe de 15/12/2023).
2. O Tribunal de origem não laborou com o costumeiro acerto, ao não conhecer do recurso desafiador do tópico da sentença da ação de produção antecipada de provas relativo à sucumbência. Necessidade de provimento do recurso especial.
3. Agravo interno provido para reconsiderar a decisão ora agravada e, em novo julgamento, conhecer do agravo para dar provimento ao recurso especial.
(AgInt no AREsp n. 2.390.973/BA, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 15/4/2024, DJe de 19/4/2024.)
A interpretação literal do § 4º do art. 382 do CPC não deve prevalecer de maneira absoluta, pois existem hipóteses específicas em que o recurso é cabível na ação de produção antecipada de provas. Reconhecer essas exceções é essencial para resguardar os direitos das partes e garantir uma interpretação sistemática do CPC, alinhada aos princípios constitucionais de contraditório e ampla defesa. Dessa forma, o processo civil brasileiro mantém-se eficiente sem comprometer a justiça e a segurança jurídica das partes envolvidas.
Assim, o entendimento mais adequado é o de que o § 4º do art. 382 deve ser interpretado à luz do ordenamento jurídico como um todo, e não de forma isolada, permitindo que o Poder Judiciário atue com flexibilidade e justiça nas decisões que impactam diretamente os direitos das partes.
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1 ALVIM, Angélica A. Comentários ao código de processo civil. 2nd ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2017. E-book.
2 FREIRE, Alexandre; STRECK, Lenio L.; NUNES, Dierle; et al. Comentários ao código de processo civil. 2nd ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2017. E-book.
3 JÚNIOR, Humberto T. Código de Processo Civil Anotado. 27th ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024. E-book.
4 JÚNIOR, Gediel Claudino de A. Prática No Processo Civil. 27th ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2024. E-book.
5 MARCATO, Antonio C. Código de Processo Civil Interpretado. Rio de Janeiro: Atlas, 2022. E-book.