Poderes se unem contra precatórios
O Executivo, Legislativo e Judiciário têm contribuído para o calote nos precatórios, com moratórias sucessivas e desvios de recursos. A primeira moratória veio com a Constituição de 1988, seguida de outras em 2000 e 2009.
sexta-feira, 8 de novembro de 2024
Atualizado às 09:29
Executivo, Legislativo e agora o Judiciário se unem para prejudicar os credores por precatórios.
O calote começou com o Executivo que deixou de efetuar o pagamento dos precatórios resultantes de condenações judiciais transitadas em julgado, que é um dos casos de intervenção da União nos Estados e de intervenção dos Estados nos municípios.
Nenhuma das medidas interventivas decretadas foi efetivada, ensejando uma montanha de precatórios impagáveis por conta da impunidade dos governantes irresponsáveis.
O Legislativo veio imediatamente em socorro ao Executivo endividado até o pescoço por causa do desvio sistemático e programado de valores consignados ao Judiciário para pagamento de precatórios, para satisfação de outros interesses, nem sempre de interesse público.
Assim, o primeiro calote de precatórios veio no bojo da Constituição Cidadã de 1988, cujo art. 33 do seu ADCT decretou a moratória para pagamento de precatórios em oito parcelas anuais. Era o primeiro golpe contra a cidadania!
Passados oito anos, o volume de precatórios impagos havia crescido assustadoramente como decorrência da desapropriação em massa de imóveis urbanos pelo seu valor histórico, resultando na condenação do ente expropriante no pagamento de diferença considerável, sobre a qual incide a verba de sucumbência, os juros moratórios e compensatórios, sem prejuízo da correção monetária.
Em um período de inflação aguda, a dívida de precatórios crescia à razão de 100% a cada bimestre, mas os governantes continuaram fazendo o pagamento desses precatórios pelo valor singelo consignado na requisição judicial, não se preocupando com a futura situação financeira do tesouro.
Quando no exercício da diretoria do Departamento de Desapropriações da prefeitura de São Paulo introduzimos a sistemática de depositar o valor real do imóvel atingido a título de oferta, acompanhado do laudo de avaliação administrativa elaborado pelos engenheiros do Departamento, invariavelmente, confirmado pelo laudo do perito judicial. Hoje, essa sistemática acha-se normatizada pelos juízes a Fazenda Pública, que não mais permitem a imissão provisória na posse pelo valor venal, fazendo observar o princípio constitucional da prévia e justa indenização. Com isso a municipalidade de São Paulo livrou-se das pesadas condenações em juros compensatórios, juros moratórios e honorários advocatícios.
Mas, a economia resultante do valor da oferta pelo justo preço do imóvel foi imediatamente compensada com acréscimo de despesas de custeio principalmente com o incrível aumento da despesa com a folha que passou a consumir 60% da RCL do município, limite máximo previsto no art. 19 da LRF.
Isso resultou na decretação do segundo calote constitucional com a promulgação da EC 30/00, que introduziu o art. 78 ao ADCT decretando a moratória pelo prazo de dez anos, incluindo os remanescentes da moratória anterior descumprida.
Como esperado, essa segunda moratória, igualmente, não foi honrada.
Assim, foi promulgada a EC 62/09 que acrescentou o art. 97 ao ADCT para conceder a moratória dos precatórios por longos quinze anos, ficando suspensas as regras permanentes constantes dos parágrafos 2º, 3º, 9º, 10, 11, 12, 13 e 14 do art. 100 da CF/88.
Para assegurar os recursos financeiros necessários ao pagamento de precatórios determinou que estados, Distrito Federal e municípios depositem, mensalmente, na conta aberta pelo Tribunal de Justiça local os recursos financeiros calculados sobre as respectivas RCL - Receitas Correntes Líquidas.
Os estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e o Distrito Federal deverão depositar mensalmente o mínimo de 1,5% da RCL. Os estados das regiões Sul e Sudeste deverão depositar o mínimo de 2% da RCL. Os municípios deverão depositar na conta judicial do Tribunal de Justiça, mensalmente, valores equivalentes a 1% da sua RCL.
Essa EC 62/09 foi declarada inconstitucional pelo Plenário do STF nos autos da ADI 4.357 e apensos, por maioria de votos.
Na pendência de julgamento da proposta de modulação de efeitos, o presidente do STF, ministro Luiz Fux, acolhendo a representação da OAB determinou, ad cautelam, que os Tribunais de Justiça de todos os estados e do Distrito Federal deem imediata continuidade aos pagamentos de precatórios, na forma como vinham fazendo antes da declaração de inconstitucionalidade da EC 62/09.
Finalmente ocorreu a modulação dos efeitos que concedeu uma sobrevida de cinco anos ao regime especial instituído pela EC 62/03, findo o qual os precatórios passariam a ser pagos de acordo com as regras permanentes do art. 100 e parágrafos da CF/88. Uma Emenda declarada inconstitucional continuou sendo aplicada por cinco longos anos. Fantástico! Declaração de inconstitucionalidade que gera efeito ex tunc, no caso versado, projetou efeitos para além do efeito ex nunc.
Antes do termo final de vigência do pagamento de conformidade com a EC 62/09 sobreveio a EC 94/16 prorrogando a moratória até o dia 31 de dezembro de 2020.
Permitiu-se a utilização de até 75% do montante dos depósitos judiciais e dos depósitos administrativos ou judiciais, tributários e não tributários, nos quais os estados, Distrito Federal e municípios ou nas autarquias e fundações e empresas estatais dependentes, sejam parte.
Por conta desse mecanismo imoral, que permite que o Estado se aproprie de recursos de titularidade de terceiros, alguns autores que haviam feito depósito judicial voluntário no bojo da ação anulatória de lançamento tributário tiveram dificuldade no levantamento do valor depositado depois de transitada em julgado a decisão favorável ao autor.
Outrossim, o art. 102 do ADCT, acrescido pela EC 94/16, consignou que 50% dos recursos destinados ao pagamento dos precatórios em mora serão utilizados no pagamento segundo a ordem cronológica de apresentação, respeitadas as preferências de créditos alimentares, e, nesses as relativas à idade, ao estado de saúde e à deficiência, nos termos do §2º, do art. 100 da CF/88.
O restante dos recursos remanescentes poderá ser destinado ao pagamento de precatórios por acordo direto perante juízos auxiliares de conciliação de precatórios, com redução máxima de 40% do valor do crédito atualizado.
Dessa forma, pela vez primeira, foi implementado o pagamento simultâneo das três espécies de precatórios que sustentamos por vários lustros: Os precatórios com privilégio qualificado (idosos, doentes e deficientes); os credores por privilégios simples (os credores de natureza alimentar); e os credores sem qualquer privilégio (os expropriados, por exemplo).
Não era razoável que os precatoristas sem privilégio que nada receberam até o ano de 2001 continuassem na fila, aguardando o término dos credores com privilégio qualificado e dos credores por privilégios simples. E mais, credores com mais de 60 anos surgem diariamente com o passar do tempo. O STF havia julgado inconstitucional a expressão constante no texto da Emenda que conferia o privilégio qualificado aos credores com 60 anos de idade na data da publicação da Emenda, sob o fundamento de ferir o princípio da isonomia, e estendeu esses benefícios a todos aqueles que vierem atingir 60 anos de idade. Estava plantada a semente da igualdade material que parece não mais ter um fim.
Só que o pagamento simultâneo das três espécies de precatórios é limitado a 50% dos recursos financeiros depositados como que forçando os precatoristas a optar pela forma de recebimento por acordo, onde o limite máximo de 40% de redução não é negociável. Os espertos entes políticos devedores alteraram a expressão "redução máxima de 40%" pela expressão "redução de 40%". Sem essa redução imposta unilateralmente pela Fazenda, ninguém consegue celebrar acordo.
A quinta moratória veio com a promulgação da EC 99/17 prorrogando o calote até o dia 31/12/24. Como de hábito, ela não foi honrada.
Seguiu-se a sexta moratória para pagamento de precatórios pendentes até 31 de dezembro de 2029, conforme EC 109/21 que enxertou o art. 101 no ADCT.
A União que sempre vinha pagando religiosamente os precatórios mediante disponibilização de valores consignados na LOA para os respectivos TRFs, em 2021, promulgou a EC 114/21, votada de afogadilho pelo Congresso Nacional turbinado pela liberação de bilhões a título de emendas parlamentares, para estabelecer uma moratória singular. Limitou até o exercício de 2026, inclusive, a inclusão orçamentária dos valores consignados nos precatórios no ano de 2016, isto é, deu uma retroação de seis anos, para aumentar o valor do calote. Dissemos que é uma moratória singular, porque o calote antecede a fase de pagamento; ele é dado na inclusão orçamentária pelo uso abusivo de artimanha legislativa para burlar os textos constitucionais editados pelo legislador constituinte originário.
Essa Emenda ainda alterou, marotamente e astutamente, o período requisitorial de 1º de julho para 2 de abril de cada ano, aumentando o prazo de pagamento de precatório que era de 18 meses (de 1º de julho a 31 de dezembro do ano seguinte) para 21 meses (de 2 de abril a 31 de dezembro do ano seguinte).
É dentro desse cenário que o STF, pelo seu Plenário Virtual, proferiu decisão sob a égide de repercussão geral firmando a tese de que não incide a taxa selic sobre os valores de precatórios durante o período abrangido pelo prazo constitucional de seu pagamento (RE 1515163 - Tema 1.335).
Em outras palavras, o ente político caloteiro deixa de pagar juros moratórios durante 21 meses limitando à atualização monetária do débito. Esse período é conhecido como "período de graça" sinalizando gratuidade parcial do ônus da dívida.
Em um Estado sem referencial ético tudo é possível.
Está em tramitação na Câmara Federal a PEC 66/23, aprovada pelo Senado Federal, que abre novo prazo de pagamento de precatórios que vai além do dia 31 de dezembro de 2029, prazo esse fixado pela última EC de 109/21 e que não será cumprido segundo a previsão dos legisladores futuristas.
A nova Emenda Constitucional a ser promulgada acrescenta os §§ 23 a 26 no art. 100 da CF/88 nos seguintes termos:
§ 23. Os pagamentos de precatórios devidos pelas Fazendas municipais estão limitados a 1% da Receita Corrente Líquida apurada no exercício financeiro anterior.
§ 24. Não são considerados no limite de que trata o § 23 os pagamentos de precatórios realizados nos termos dos §§ 11 e 21.
§ 25. Em 2030, verificando-se mora no pagamento de precatórios em virtude do limite de que trata o § 23, deverá ser quitado mediante parcelamento especial, dos termos de lei municipal, com prazo máximo de 240 meses.
§ 26. A cada cinco anos, verificando-se nova mora no pagamento de precatórios, deverá ser promovido novo parcelamento especial nos termos do § 25. (NR)
Nos termos do § 23, o limite de 1% da RCL para pagamento de precatórios deixa de ser mensal. Esse limite passa a ser aplicado sobre a RCL do exercício financeiro anterior. Só que não se fixou o prazo de depósito, nem a periodicidade dos depósitos de valores destinados ao pagamento de precatórios. Em janeiro, em julho, em dezembro? Não sabemos, nem se descobre. É do conhecimento geral que os tesouros municipais estão sempre esgotados nos dois últimos meses do ano.
Plantou-se a semente da erva daninha que irá torpedear os precatórios. Pela lógica, o montante resultante da aplicação da alíquota de 1% da RCL do exercício anterior deveria ser desdobrado em duodécimos, para fins de depósitos mensais, a fim de possibilitar a administração dos recursos depositados e programar o pagamento dos precatório pelo Tribunal de Justiça. Essa PEC 66/23 abre caminho para novos desvios de recursos destinados a precatórios. É o calote do calote.
E mais, nos termos dos §§ 11 e 21, do art. 100 da CF/88, os valores de precatórios utilizados: Na quitação de débitos inscritos na dívida pública; na compra de imóveis públicos de propriedade do ente político devedor, na aquisição, inclusive minoritária, de participação societária, disponibilizada para a venda, do respectivo ente federativo devedor não são considerados no limite de 1% da RCL (§ 24). Isso no âmbito municipal.
No âmbito federal (§ 21, do art. 100 da CF/88) a União poderá utilizar os valores de precatórios para amortização de dívidas, vencidas e vincendas:
- Nos contratos de refinanciamento;
- Nos contratos e que houve prestação de garantia a outro ente federativo;
- Nos parcelamentos de tributos;
- Nas obrigações decorrentes do descumprimento de prestação de contas ou de desvio de recurso.
Só que o açodado e descuidado legislador da Câmara Alta, em ambos os casos, nos §§ 11 e 21 dispensou o mesmo tratamento jurídico de não inclusão no limite de 1% da RCL para pagamentos de precatórios pelas Fazendas municipais, conforme se depreende do § 23 a que se refere o § 24.
Ora, na moratória decretada pela União não há limite da RCL, porque ela adotou um calote sui generis como já dissemos anteriormente.
A partir do exercício de 2030, os valores de precatórios não liquidados em virtude da limitação do § 23, deverão ser pagos mediante parcelamento especial em 240 meses, nos termos da lei municipal (§ 25).
Finalmente, a cada cinco anos, verificada a nova mora no pagamento de precatórios, deverá ser promovido novo parcelamento nos termos do § 25 (§ 26). Está aberto o caminho para a eternização do calote. Não mais haverá prazo para o pagamento de precatórios seguindo o provérbio: Eu devo, mas pago quando quiser!
O astuto legislador aético é muito rico no exercício da futurologia em se tratando de prejuízo a ser imposto aos indefesos precatoristas, que não têm voz e que vão morrendo silenciosamente na fila interminável dos precatórios, um cancro que corrói o Estado Democrático de Direito. A maldade e a cruedade desses legisladores diabólicos não têm fim. É como a burrice que não tem limites, ao contrário da inteligência que é sempre limitada. É o império da maldade e da crueldade!
Dessa forma, o crédito de precatório vai passando de pai para o filho, para o neto e para o bisneto. O precatorista original, que batalhou e levou lustros para obter a expedição do precatório judicial a seu favor, não consegue usufruir em vida o resultado material da demanda vitoriosa, por conta da insensibilidade e imoralidade dos ditos representantes do povo que falam muito em inclusão social para enganar os eleitores, mas que, na realidade, se preocupam, tão somente, com seus interesses pessoais escusos e ilegítimos, formando alianças espúrias e demoníacas com governantes imorais, desqualificados para o exercício da função pública.
Uma Emenda é mais venenosa e perigosa do que a outra. Começou com uma inocente cobra; evoluiu para uma jararaca/cascavel e agora temos a mortífera coral, que mata em poucos minutos sem dar tempo para vacinar.
Essa PEC 66/23 é, sem dúvida alguma, obra de Satanás!
A Justiça tem dado guarida a todas essas Emendas que violentam direitos protegidos por cláusulas pétreas, com a maior naturalidade.
É o caso de a OAB acionar o Tribunal Internacional, pois a justiça brasileira seguramente não está vocacionada para solucionar o drama das vítimas de precatórios.
Para arrematar, penso que escritórios internacionais poderiam pleitear perante a justiça estrangeira, a exemplo da ação coletiva ajuizada na justiça britânica no caso das indenizações devidas às vítimas de Mariana. Pergunta-se, o que impede de o mesmo escritório internacional pleitear a quitação de precatórios pela forma estabelecida nas regras permanentes do art. 100 e parágrafos da Constituição de 1988? Afinal quase meio século que o Estado vem protelando o pagamento das condenações judiciais, muito mais do que em relação às indenizações devidas às vítimas de Mariana.
Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.