Endurecimento simbólico: A lei 14.994/24 e a ausência de aplicação integrada
A ilusão do endurecimento das penas perpetua uma falsa sensação de segurança, enquanto a proteção efetiva das mulheres continua sendo negligenciada.
sexta-feira, 8 de novembro de 2024
Atualizado às 10:18
Diante da já conhecida e prolongada crise na segurança pública, o legislador brasileiro optou por uma resposta meramente simbólica aos altos índices de violência. Como de costume, endurecem-se penas e superlotam-se as prisões.
Para o criminalista, observar os aplausos à lei 14.994/24 é confrontar um ode ao desconhecimento prático, pois a sociedade tende a ver a pena como um castigo necessário. No entanto, o discurso de rigor retributivo apenas disfarça uma estrutura falha, incapaz de garantir proteção efetiva, especialmente às mulheres em situação de maior vulnerabilidade.
Penas de 20 a 40 anos para o feminicídio não salvarão mais mulheres. O aumento de pena não trará mais segurança a gestantes ou puérperas, nem impedirá a escalada da violência doméstica. Penas mais severas para lesão corporal não garantirão o cumprimento de medidas protetivas pelo temor à condenação. Embora o aumento punitivo pareça significativo, este endurecimento pouco altera a realidade cotidiana da violência.
A prática da advocacia criminal nos ensina que o agressor - especialmente aquele que comete violências não físicas - não se vê como tal. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 20241, constatou que penas 16% dos homens assumem já ter agido de forma violenta com suas parceiras ou ex-parceiras, mas quando perguntados de outra forma, apresentando as violências como de forma exemplificativa, isto é, listando atitudes, 56% dos homens assumem já ter xingado, empurrado, ameaçado, dado um tapa ou um soco em sua parceira/ex-parceira, bem como tê-la impedido de sair de casa, humilhado em público e obrigado a fazer sexo.
Sob essa perspectiva, as medidas que poderiam efetivamente transformar essa realidade, como o comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação ou o acompanhamento psicossocial, previstos nos incisos VI e VII do art. 22 da lei Maria da Penha, ainda são raramente aplicadas.
As citadas medidas, sobretudo as extrapenais, são bastante avançadas e muito bem vindas; isto apesar de algumas serem de difícil implementação, podendo cair no inferno das boas intenções, onde residem diversos dispositivos, também avançados, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da lei de execução penal2.
A sociedade frequentemente clama por respostas simbólicas porque perdeu a confiança na segurança pública e recorre ao imediatismo para sustentar a esperança. Contudo, o recrudescimento das penas só impacta a vida de uma mulher quando seu corpo já foi irremediavelmente violado ou marcado pela violência.
Não há efeito prático na reparação após a violência consumada. Mulheres vítimas de violência doméstica, quando não são atingidas pelo feminicídio, sofrem por anos os efeitos profundos dessa violência, resultando em uma perda social sem precedentes.
Homens que assumem o papel de agressores muitas vezes deixam um rastro de violência na vida de várias mulheres com as quais convivem. Não é incomum, por exemplo, que um homem acumule medidas protetivas de mais de um relacionamento. Onde estamos falhando?
Talvez o aumento de casos reflita que a violência, antes restrita ao espaço privado, agora está sendo investigada e judicializada. Mas isso ainda não basta. A violência de gênero tem causas profundas que o Direito Penal, com seu aumento de penas e tipificações, não consegue alcançar, oferecendo uma resposta apenas simbólica.
O objetivo da pena e do Direito Penal para a visão simbólica é apenas a produção na opinião pública de uma impressão de tranquilidade gerada por um legislador supostamente diligente e consciente dos problemas gerados pela criminalidade3.
Certamente, a própria realidade mostrará que a impressão criada pela nova lei é ilusória e que a violência de gênero, agravada pela omissão estatal, está longe de ser erradicada. O combate à violência contra a mulher exige, de forma essencial, amplas medidas sociais e profundas mudanças estruturais em nossa sociedade.
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1 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário brasileiro de segurança pública. São Paulo: FBSP, ano 18, 2024, p. 136.
2 DOS ANJOS, Fernando Vernice. Direito penal simbólico e lei de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Boletim IBCCRIM, p. 10, 2006.
3 QUEIROZ, Paulo de Souza, Funções do Direito Penal, 2ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 52.
Ione Campêlo da Silva
Advogada especialista em litigância estratégica em casos de Lei Maria da Penha. Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz e especialista em Direito Penal e Processo Penal.