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Ano de 1534: Cartas de doação e foral

A organização jurídica das capitanias hereditárias moldou a estrutura política brasileira e ainda reflete na relação entre União, estados e direitos de propriedade.

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Atualizado em 4 de novembro de 2024 14:44

Algumas pessoas defendem ou acreditam que o direito de propriedade no Brasil começou com a lei de terras de 1850 ou que essa norma legal, ainda vigente, teria produzido efeitos jurídicos de "zerar" o regime de posse e propriedade ao impor certo dever de confirmação do título. Essa linha de interpretação está diretamente relacionada com o interesse da União e dos estados em imporem a prova do destaque do patrimônio público aos possuidores e proprietário. Esse tema é atual no Direito. Revisitar as cartas de doação e foral outorgadas pelos reis de Portugal a partir de 1534 é um meio de expor as fragilidades dessa interpretação.

A escola costuma ensinar que o sistema de capitanias hereditárias fracassou. Essa visão não é exatamente correta. O modelo jurídico das capitanias foi bem-sucedido e determinou a organização tripartite da estrutura dos entes públicos consagrada na Constituição Federal: poder central, regional e local.

O poder central evoluiu da coroa portuguesa para o império do Brasil e, por força da república foi renomeado de União. O poder regional começa nas capitanias hereditárias evolui para as capitanias reais; e no Império e República são renomeadas respetivamente de províncias e estados. A vila das capitanias e das províncias se converte em municípios.

Esse sistema de organização do poder político e governo está previsto com clareza nas cartas de doação e foral. Esses atos jurídicos são pactos entre rei (poder soberano), senhores (donatários capitães e governadores) e povoadores (colonos e aculturados) que aceitaram atravessar o oceano e participar da atividade colonial.

Os dois atos jurídicos (doação e foral) são de finalidades distintas e observam certa lógica de distribuição dos assuntos e respectivos direitos e deveres. A tabela 1 organiza essa distribuição para mais fácil compreensão.

Tabela 1. Cartas de doação e foral. Direitos e deveres

A carta de doação pode ser equiparada no plano formal a ato administrativo unilateral e, no plano material, a contrato de concessão. Essa comparação seria com base no Direito Administrativo moderno. O rei Dom João III concedeu aos donatários poderes jurisdicionais, administrativos e militares e participação nas rendas públicas (redizima, vintena). Esses poderes incorporam a criação de vilas e a nomeação de oficiais diversos como alcaide tabeliães e ouvidores, mantendo-se, porém, o regime português de administração das vilas pelos concelhos.

A carta de foral é ato jurídico mais próximo de lei porque alcança de forma impessoal aos moradores (colonos) e tem por finalidade principal regular direitos e deveres diversos relacionados com a vida na capitania. Em algumas situações, cria dever ou direito para o donatário ou morador. Por exemplo, todos devem prestar serviço militar ao capitão (donatário), quando houver guerra ou pagar as taxas pelos serviços administrados pelo alcaide.

Os monopólios estabelecidos são quatro: a) exploração da força da água e da travessia dos rios por barcos, que pertence ao donatário; b) exploração do pau-brasil e especiarias, que pertence à coroa; c) exploração mineral, que inicialmente não é propriamente monopólio, mas tem a previsão de pagamento do quinto real (20%).

O ponto que mais interessa nesse artigo é a questão dominial. O rei Dom João III transfere integralmente ao capitão os poderes relacionados com a outorga de títulos de terras, usualmente definida como carta de sesmaria. O donatário poderia manter para si certa porção de terras na capitania, mas antes o donatário tinha o dever de repartir a terra em sesmarias. As previsões contidas nas cartas de doação e foral criam o direito de propriedade no território brasileiro.

Ponto importante. A distribuição das terras em sesmaria sempre foi competência exercida pelas capitanias, antecessora natural dos estados, ainda que, eventualmente, houve confirmação régia por conta de algum ponto que pudesse assegurar segurança jurídica.

Curiosa a situação do pau-brasil. Essa árvore pertencia ao monopólio real como algo distinto da terra. Algo equivalente à situação atual da jazida mineral.

O regime tributário é muito simples: a) o dízimo à Deus, no percentual de 10% incidente sobre todas as operações; b) 0 quinto (20%) sobre pedras, pérolas, ouro, prata, cobre, estanho, chumbo ou qualquer outra sorte de metal; c) a vintena (5%) sobre o pescado devida ao donatário, além do dízimo (10%), o que representava 15% sobre a pesca.

A liberdade de comércio estava garantida através de vários dispositivos estabelecidos no Foral. Havia a garantia da liberdade de comércio entre: a) moradores das capitanias; b) moradores das capitanias e Portugal; c) moradores das capitanias e outros países.

A diferença residia no ônus da tributação.

A mercadoria transportada por navios do Reino de Portugal entre capitania e Portugal era pago em Lisboa, como regra, na saída (importação para o Brasil) ou entrada (exportação do Brasil). Se o destino da exportação fosse para outros países, o dízimo era pago na capitania.

A mercadoria transportada por pessoas estrangeiras entre capitania e Portugal era pago em Lisboa, como regra, na saída (importação para o Brasil). Se o destino da exportação fosse para outros países, o dízimo era pago na capitania.

Mercadorias relacionadas com a defesa eram isentas de tributação: armas, pólvora, salitre, enxofre, chumbo. Havia proibição geral de comércio com os indígenas e exportação de escravos, salvo o direito do donatário de enviar para Portugal 34 escravos por ano, e do pau-brasil e especiarias.

A fiscalização dos navios era regra geral e deveria ser realizada pelo donatário se não houvesse oficial do Reino designado para essa função.

A carta de doação contemplava ainda garantias na sucessão da capitania e proibição de divisão e fracionamento dos direitos e deveres.

A distribuição dos direitos e deveres no âmbito das referidas cartas evidencia a finalidade de cada uma delas (doação e foral), complementares entre si. A carta de doação cria a capitania e competências básicas do donatário. O foral assegura direitos e deveres entre três partes envolvidas tendo por objeto principal o direito à terra, o dever de proteção da terra, os tributos e a liberdade de comércio e seus limites.

Esse sistema jurídico contribuiu substancialmente para o sucesso e expansão da conquista da soberania portuguesa sobre o território brasileiro.

Luiz Walter Coelho Filho

Luiz Walter Coelho Filho

Sócio-fundador do escritório Menezes, Magalhães, Coelho e Zarif Sociedade de Advogados. Graduado em Direito pela UFBA, ano de 1985. Exerce a advocacia nas áreas de Direito Administrativo e Imobiliário

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