Linguagem como instrumento de guerra: Desvelando paridade de armas
A linguagem jurídica, com termos como "paridade de armas", impede uma visão mais humana da justiça. Este estudo propõe uma reformulação do discurso jurídico.
terça-feira, 5 de novembro de 2024
Atualizado às 11:09
Um dos princípios comumente utilizados no Direito é o termo "paridade de armas", no entanto, ele já deveria ter sido abolido no século XX. Sua origem medievalesca remete a uma lógica de confronto e guerra, onde a disputa não era pautada pelo convencimento racional, mas pela força e pelo poder. Em tempos modernos, essa metáfora bélica está em descompasso com os valores contemporâneos de justiça, dignidade e ética, especialmente à luz dos princípios constitucionais brasileiros.
O poder da linguagem reflete, na economia social, o espaço de autoridade que um termo pode deflagrar na sociedade. Segundo o filósofo Ludwig Wittgenstein, a linguagem constrói realidades. Quando usamos o termo "paridade de armas", estamos reforçando uma visão de confronto que distorce a busca pela verdade e pela justiça. Wittgenstein enfatiza que "os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo" (Tractatus, 5.6). Portanto, se um dos princípios do Direito remete à força bélica, essa é a parte do seu "mundo". No que tange ao nosso entendimento, no Direito, a linguagem deveria refletir os valores de ética, dignidade e cooperação, e não evocar uma lógica de guerra.
A CF/88, em seu art. 1º, inciso III, consagra a dignidade da pessoa humana como um dos pilares do Estado Democrático de Direito. No entanto, ao utilizar termos como "paridade de armas", o Direito acaba perpetuando uma visão de embate físico, o que, em nosso parecer, é contrário à busca pela verdade real e pela justiça. Defendemos que o termo deveria ser substituído por "paridade de ideias" ou "paridade de instrumentos", mais condizentes com os valores modernos, por evocar a escrita e a oralidade como instrumentos essenciais à construção do Direito, e não uma identidade destrutiva associada ao armamentismo.
A origem histórica e a crítica ao termo
A expressão "paridade de armas" surgiu ou se fortaleceu nos primórdios da civilização moderna, provavelmente durante a era medieval, embora não haja consenso, com alguns traçando suas raízes ao período do Direito Romano. Independentemente da origem, o mais importante é que o termo reflete um contexto de disputas resolvidas com o uso literal de armas. Com o tempo, foi adaptado ao Direito para representar a igualdade de condições entre as partes em processos judiciais. Contudo, essa terminologia carrega um imaginário de guerra e força, incompatível com o sistema jurídico atual, que deveria se pautar pela racionalidade e não pela violência.
Simbologia fálica e o poder no Direito
Pensadores como Sigmund Freud e Carl Jung forneceram análises profundas sobre o simbolismo de armas e obeliscos como representações fálicas de poder. Freud associou o falo (ainda que se remeta ao pênis) ao controle e à virilidade, porém o distinguiu do pênis ou do clitóris, possivelmente podemos ver nos homens e mulheres a apropriação dessa autoridade simbólica, afinal o falo é para Freud um significante múltiplo não apenas do sexo, mas do desejo pela aceitação, do valor e do amor "eros ou phileo". Já Jung, com sua teoria dos arquétipos, discutiu como a figura do guerreiro e suas armas que podem ser expressões de poder masculino.
No Direito, o uso do termo "paridade de armas" perpetua essa simbologia patriarcal, onde o poder é associado à força e à dominação, ainda que de forma indireta. Isso é problemático, pois reforça uma lógica de confronto violento, em vez de diálogo e convencimento racional. Embora o termo seja comumente utilizado como um jargão jurídico para descrever a igualdade de forças. A história e a psicologia demonstram que certas palavras podem ser forjadas para manter e manipular por meio do poder. Como Michel Foucault mostra em Vigiar e Punir, as relações de autoridade são institucionalizadas por meio de práticas que mantêm a dominação, e a linguagem desempenha um papel crucial nesse processo.
Psicologia social e o impacto da linguagem violenta
Estudos de psicologia social demonstram que a linguagem agressiva tende a influenciar o comportamento violento. Segundo Bandura, psicólogo canadense, o ser humano tende a pensar antes de agir e, geralmente, decide se irá imitar alguém. No entanto, se as ações de uma pessoa usada como modelo, especialmente quando são chamativas, isso pode desencadear um comportamento semelhante, criando um ciclo de agressão. A perpetuação dessa linguagem no Direito, mesmo que indiretamente, contribui para a banalização do discurso de ódio na política contemporânea, como demonstrado por expressões que correm o país ditas por políticos proeminentes. Essas expressões criam um ambiente de animosidade que, em muitos casos, resulta em violência real, como assassinatos motivados por divergências políticas. Um exemplo histórico do poder da linguagem está no evangelho de Lucas (4:11-17), onde Jesus omite a palavra "vingança" ao citar o profeta Isaías, transformando a imagem de Deus em uma figura mais protetora e compassiva. Essa omissão prefigura a compreensão moderna da influência do imaginário na linguagem, segundo a filosofia e a psicologia.
Direito Penal: Justiça, não vingança
O Direito Penal brasileiro, conforme o art. 5º, inciso LVII, da CF/88, estabelece o princípio da presunção de inocência e garante que o devido processo legal seja respeitado. O objetivo do Direito Penal é a justiça, e não a vingança. O uso da força só deve ocorrer em casos extremos, como legítima defesa, conforme o art. 25 do CP.
O uso de uma linguagem bélica no Direito pode sugerir uma lógica de eliminação do infrator, o que contraria os princípios fundamentais do Direito Penal, que visa à reintegração social e à proteção dos direitos humanos. Termos como "paridade de armas" reforçam a ideia de que a justiça é alcançada pela força, quando deveria ser pelo convencimento racional e pela aplicação justa da lei. Embora a força, em alguns momentos, seja necessária, é imperativo que a sociedade adote uma cultura que favoreça o diálogo e a revisão de suas práticas.
Direitos constitucionais e a limitação da violência
A CF/88, em seu art. 5º, incisos IV e XLI, garante a liberdade de expressão, mas impõe limites quando essa liberdade ultrapassa os direitos à dignidade humana, especialmente em casos de discurso de ódio ou incitação à violência. O CP, em seu art. 286, também proíbe a incitação ao crime.
Casos recentes de violência política no Brasil, impulsionados por discursos agressivos, demonstram como o uso irresponsável da linguagem pode ter consequências trágicas. A perpetuação de termos bélicos no Direito contradiz os princípios constitucionais e contribui para a legitimação da violência.
Proposta de substituição: Paridade de ideias ou instrumentos
A substituição de termos bélicos, como "paridade de armas", por expressões como "paridade de ideias" ou "paridade de instrumentos", não é apenas uma questão de semântica, mas uma mudança profunda no imaginário jurídico. O Direito moderno deve refletir um compromisso com a justiça, dignidade e proteção dos direitos humanos, promovendo o diálogo e novas interpretações, e não a força ou o confronto.
Conclusão
O uso de metáforas bélicas no Direito perpetua uma visão ultrapassada e violenta da justiça, que colide com os princípios contemporâneos de dignidade, justiça social e direitos humanos. A Constituição Brasileira e o Direito Penal já incorporam, em seu cerne, a busca pela verdade, pelo diálogo e pela reintegração social, e é imperativo que a linguagem jurídica reflita esses valores.
A substituição por termos como "paridade de ideias" ou "paridade de instrumentos" alinha o Direito com um sistema mais justo e humanitário, onde o poder é exercido pela razão e pela ética, e não pela força ou violência. Esse é o caminho para um Direito verdadeiramente comprometido com a justiça e a dignidade humana.
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1 Constituição Federal de 1988, Art. 1º, III; Art. 5º, IV, XLI, LVII.
2 Código Penal Brasileiro, Art. 25, Art. 286.
3 Wittgenstein, Ludwig. Investigações Filosóficas.
4 Wittgenstein, Ludwig. Tractatus.
5 Freud, Sigmund. Totem e Tabu.
6 Jung, Carl. O Homem e seus Símbolos.
7 Foucault, Michel. Vigiar e Punir.