Liberdade de expressão e responsabilidade: Breve análise do voto do ministro Flávio Dino no ARE 1.513.428
O voto do ministro Flávio Dino no STF reafirma o equilíbrio entre liberdade de expressão e proteção de direitos fundamentais, visando uma sociedade inclusiva e respeitosa.
terça-feira, 5 de novembro de 2024
Atualizado em 4 de novembro de 2024 14:40
O voto do ministro Flávio Dino em decisão recente do STF (ARE 1.513.428) representa um marco na defesa do equilíbrio constitucional entre a liberdade de expressão e a proteção de direitos fundamentais. Essa manifestação ponderada reforça a interpretação de que, embora a CF assegure a liberdade de expressão e a vedação à censura, esses direitos não são absolutos e encontram limites claros quando confrontados com outros direitos igualmente protegidos, como a inviolabilidade da honra, da imagem e da dignidade humana. Nesse sentido, Dino parte do entendimento de que a expressão do pensamento, em qualquer forma, não pode se chocar com direitos constitucionais fundamentais, sob pena de tornar-se veículo de degradação e incitação ao ódio.
A decisão analisada reitera que a liberdade de expressão, embora seja um pilar da democracia, precisa ser exercida em conformidade com valores éticos e sociais que preservem o respeito às pessoas e às comunidades. O STF já firmou esse entendimento em julgados históricos, como no caso Ellwanger, no qual ficou decidido que a liberdade de expressão não abarca manifestações de teor imoral e ilícito, especialmente aquelas que promovem a violência e a discriminação. Assim, é evidente que publicações contendo discursos homofóbicos, misóginos ou que incitam o preconceito não estão protegidas pelo manto constitucional da liberdade de expressão.
Conforme exposto por Gilmar Mendes1, em sua análise sobre a colisão de direitos fundamentais, "não é verdade que o constituinte concebeu a liberdade de expressão como direito absoluto, insuscetível de restrição, seja pelo Judiciário, seja pelo Legislativo." Mendes observa que o art. 220 da CF/88 garante a liberdade de expressão, mas condiciona seu exercício ao respeito a outros direitos. Esse dispositivo deixa claro que o direito de expressão deve observar o restante do ordenamento constitucional, onde estão incluídos direitos que protegem a honra, a dignidade e a integridade das pessoas. Esse mesmo pensamento é refletido no voto do ministro Dino, ao defender que publicações com teor discriminatório e ofensivo não podem se utilizar da liberdade de expressão para legitimar abusos.
O ministro Dino reitera, ainda, que a sua decisão não se configura como censura prévia. As obras questionadas já foram publicadas e circulam há anos, o que afasta qualquer alegação de restrição preventiva à manifestação do pensamento. Pelo contrário, como já são de domínio público, elas se submetem às consequências jurídicas de seu conteúdo, especialmente quando esse conteúdo promove ofensas e danos contra grupos vulneráveis. A decisão, assim, não apenas atende ao princípio democrático de livre circulação de ideias, mas também reforça o compromisso do Judiciário em coibir o abuso de direitos fundamentais.
Importante notar que a promoção da liberdade de expressão pelo Estado não deve ser confundida com uma permissão irrestrita para discursos ofensivos e prejudiciais à convivência democrática. Limitar discursos que transgridam os valores constitucionais e atacam minorias não é uma contradição com a missão de promover a liberdade; ao contrário, é uma ação que protege e enaltece esse direito, assegurando que ele seja exercido de forma ética e com respeito aos direitos de todos.
Dentro do debate sobre os limites da liberdade de expressão, há uma tensão significativa entre duas posições: de um lado, grupos minoritários - como a comunidade LGBTQIA+ e movimentos de luta contra o racismo, como o Black Lives Matter - que exigem proteção contra ataques à sua dignidade. De outro, estudiosos defendem que o Estado deve manter uma postura neutra em relação à regulação do discurso, argumentando que "ninguém tem o direito de não ser insultado". No entanto, a defesa dessa neutralidade desconsidera uma dívida histórica que a sociedade tem com as minorias, cujos direitos foram sistematicamente desrespeitados. Essa posição neutra, ao ignorar a disparidade histórica, perpetua desigualdades e permite que as vozes dominantes monopolizem o espaço público, marginalizando ainda mais os grupos vulneráveis.
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, ao interpretar o art. 10 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, trouxe uma visão mais pragmática, estabelecendo que a liberdade de expressão acarreta responsabilidades. A Corte destaca que limitar discursos ofensivos é válido quando ultrapassam o campo da opinião para se tornar um incentivo à discriminação ou violência, comprometendo a dignidade humana. Tal perspectiva se alinha com a ideia de que a verdadeira liberdade de expressão implica na coexistência harmônica de todas as vozes, e que a regulação do Estado é necessária para evitar que apenas as ideias dominantes prevaleçam no espaço público.
O voto do ministro Flávio Dino demonstra um compromisso exemplar com o equilíbrio entre a liberdade de expressão e a proteção da dignidade humana, reafirmando o papel do Judiciário como guardião dos valores constitucionais. Ao ordenar a retirada de obras com conteúdo discriminatório, a decisão não só defende os direitos das minorias, mas também preserva a liberdade de expressão em sua essência mais nobre, como um espaço de debate respeitoso e ético. O STF, dessa forma, garante que o Brasil continue a promover uma sociedade inclusiva e democrática, onde a liberdade de expressão é respeitada sem sacrificar os valores fundamentais da igualdade e da dignidade humana.
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1 (MENDES, Gilmar Ferreira. Colisão de Direitos Fundamentais: Liberdade de Expressão e de Comunicação e Direito à Honra e à Imagem. Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional, vol. 8, p. 479-486, ago. 2015)
Ulisses César Martins de Sousa
Advogado do escritório Ulisses Sousa Advogados Associados