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O princípio da dignidade da pessoa humana em relação ao estelionato afetivo

A pesquisa enfatiza a importância da proteção legal e do apoio psicológico para os lesados,destacando a vulnerabilidade das vítimas e a falta de tipificação desse crime

domingo, 3 de novembro de 2024

Atualizado em 1 de novembro de 2024 14:21

1 INTRODUÇÃO

A dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental que assegura ao cidadão o respeito a seus direitos essenciais, preservando condições para uma vida digna. Ela envolve valores e direitos que garantem a proteção contra desrespeitos aos valores morais e éticos individuais. Esse princípio está presente em várias áreas do direito, como penal, cível e trabalhista, sendo um dos pilares da Constituição Federal, que busca assegurar que ninguém seja violado em sua integridade moral e material. No Brasil, o conceito de dignidade humana é frequentemente invocado para contestar violações, como no caso recente de "estelionato afetivo". Em 2015, o Judiciário de Brasília condenou um réu a indenizar sua ex-namorada após ele abusar de sua confiança, resultando em encargos financeiros que ela foi compelida a assumir durante o relacionamento.

O estelionato afetivo é uma prática que, embora não esteja formalmente tipificada no Código Penal, configura-se como uma fraude que explora o abuso de confiança em relações afetivas para obter vantagens financeiras. Para que seja caracterizado, é necessário demonstrar a intenção do agente em tirar proveito da boa-fé de seu parceiro, causando prejuízos que não resultam em benefício mútuo. Nesse contexto, surge a problemática: até que ponto a dignidade da pessoa humana é protegida quando alguém é lesado financeiramente por seu parceiro amoroso, de forma a deixá-lo desamparado e emocionalmente afetado?

A relevância do estudo sobre estelionato afetivo e dignidade humana está na compreensão das consequências psicológicas e materiais para as vítimas e na reflexão sobre a atuação do sistema judiciário brasileiro na proteção de indivíduos contra essa violação específica de confiança. Esse tema, ainda pouco explorado, mas cada vez mais frequente, ajuda a entender como a justiça tem tratado esses casos e se há um suporte legal adequado.

O objetivo principal deste artigo é investigar como a dignidade humana é afetada nas vítimas de estelionato afetivo, abordando a relação entre a proteção dos direitos individuais e a legislação vigente. De maneira mais específica, pretende-se (1) analisar como o crime de estelionato vem sendo tratado à luz das mudanças propostas pelo Pacote Anticrime e (2) discutir as formas de ação da justiça brasileira no enfrentamento do estelionato afetivo.

Este estudo é importante porque esclarece um problema social crescente, com repercussões na vida de muitas pessoas. A ausência de uma tipificação específica para o estelionato afetivo e as dificuldades que isso acarreta no campo judicial justificam a necessidade de uma investigação aprofundada sobre o tema, contribuindo para o fortalecimento das políticas de proteção à dignidade humana no ordenamento jurídico brasileiro.

A metodologia desta pesquisa baseou-se em uma revisão teórica da legislação brasileira e em autores de referência nas áreas de direito constitucional, cível e penal. A análise foi dividida em três tópicos principais: o primeiro discute a importância do princípio da dignidade na garantia dos direitos dos cidadãos; o segundo explora o crime de estelionato, suas formas de consumação e as sanções previstas, além de examinar o impacto do Pacote Anticrime de 2019; e o terceiro aborda o estelionato afetivo, investigando a dignidade das vítimas e a atuação do Judiciário frente a essa prática.

2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O princípio da dignidade da pessoa humana representa a garantia das necessidades fundamentais dos indivíduos, constituindo um dos fundamentos essenciais da República Federativa do Brasil, conforme expresso no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal. Esse princípio visa assegurar o respeito aos direitos dos cidadãos, tanto pela sociedade quanto pelo Estado, promovendo a valorização da pessoa humana e preservando sua integridade e direitos básicos, independentemente das diferenças individuais.

A dignidade da pessoa humana é um valor universal, sendo compartilhado por todos, independentemente de características físicas, intelectuais ou culturais. Ela compreende um conjunto de direitos existenciais, intrínsecos à condição humana, que não dependem de qualquer capacidade de expressão ou autoconsciência. Esse entendimento desafia a visão de que a dignidade está atrelada à autonomia da vontade, reafirmando que todos possuem dignidade em igual proporção.

Pode-se afirmar que a Dignidade da Pessoa Humana é um fundamento basilar da República Federativa do Brasil, apesar do ordenamento jurídico nacional não apresentar uma fundamentação mais aprofundada., como afirma Flávia Piovesan (2000):

A dignidade da pessoa humana, (...) está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora "as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro.

Para André Ramos Tavares (2020), o desenvolvimento pleno da personalidade está vinculado ao reconhecimento de sua autodeterminação e liberdade, enquanto Alexandre de Moraes (2017) conceitua a dignidade como um valor espiritual e moral que requer o respeito da sociedade. Esse valor é priorizado na legislação brasileira, como exemplificado pelo artigo 8º do Novo Código de Processo Civil, que orienta os juízes a protegerem a dignidade humana em suas decisões, respeitando princípios de proporcionalidade e razoabilidade.

Ana Paula Barcellos (2019) argumenta que o respeito à dignidade deve ser mantido mesmo quando há conflitos com outros princípios constitucionais, como a livre concorrência. Nesses casos, é necessária uma ponderação justa para equilibrar os direitos individuais sem comprometer a liberdade econômica. Assim, o princípio da dignidade é absoluto em seu papel como fundamento da República, mas admite ponderações quando se trata de conflitos entre particulares.

Aline Ribeiro Pereira (2020) amplia o entendimento sobre a dignidade, ressaltando que ela abrange diversas dimensões, como liberdade, trabalho, integridade e política. Dessa forma, o operador do direito deve adotar uma interpretação abrangente e retórica adequada para assegurar a aplicação plena do princípio da dignidade da pessoa humana, respeitando sempre os limites constitucionais.

Sendo assim, é de suma importância que o operador do direito utilize a interpretação e a retórica para a melhor aplicação possível do princípio da dignidade da pessoa humana. Tem-se que a melhor aplicação é aquela que respeita os limites constitucionais.

3 O CRIME DE ESTELIONATO

O presente capítulo aborda o crime de estelionato, conforme descrito no artigo 171 do Código Penal Brasileiro, caracterizando-o como um crime em que o autor, por meio de fraude, busca obter vantagem ilícita em prejuízo da vítima. No contexto do estelionato afetivo, há a análise da intenção do autor em se aproveitar da boa-fé da vítima, levando-a ao erro de forma dolosa para obter benefício financeiro, mesmo que isso resulte em endividamento ou prejuízo substancial ao parceiro(a), demonstrando ausência de reciprocidade ou intenção de benefício mútuo.

Rafael Rocha (2019) identifica os elementos fundamentais do crime de estelionato: fraude, erro, resultado duplo (vantagem ilícita com indução ao erro) e dolo. A fraude, nesse caso, refere-se ao artifício utilizado pelo autor para ludibriar a vítima, levando-a ao erro. O dolo é essencial para caracterizar o crime, pois exige que o autor tenha plena consciência e intenção de enganar, o que exclui a possibilidade de configuração do estelionato na modalidade culposa.

No âmbito civil, o dolo é visto como um vício de vontade que pode resultar na anulação de um negócio jurídico, conforme o artigo 145 do Código Civil. Já no direito penal, o dolo é a intenção consciente de praticar um ato ilícito. Diferentemente do dolo no direito civil, no processo penal, ele implica em uma conduta intencional e ardilosa, demonstrando a plena consciência do agente em relação à ilegalidade do ato.

As mudanças introduzidas pela lei 13.964/19 (Pacote Anticrime), alterou a natureza da ação penal no crime de estelionato, tornando-a pública condicionada à representação da vítima, exceto em casos envolvendo a Administração Pública, menores de idade, maiores de 70 anos ou pessoas incapazes, nos quais a ação permanece pública incondicionada. Uma nova qualificadora foi criada para estelionato cometido no ambiente virtual, com penas mais severas para o uso de informações pessoais obtidas por meios eletrônicos.

Por fim, identificamos o impacto das alterações legislativas sobre a aplicabilidade da lei penal no tempo, destacando o princípio da retroatividade da lei mais benéfica e a distinção entre normas materiais e processuais penais, conforme os artigos 2º do Código Penal e do Código de Processo Penal. Esse debate demonstra a complexidade das normas híbridas e a importância de considerar os direitos materiais e formais no contexto do estelionato.

4 ESTELIONATO AFETIVO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O capítulo apresenta o conceito de estelionato afetivo e sua relação com a dignidade humana, relacionando-o à tipificação do estelionato no artigo 171 do Código Penal brasileiro, que abrange fraudes praticadas com o objetivo de obter vantagens indevidas. Nesse contexto, o estelionato afetivo ocorre quando uma pessoa, em um relacionamento amoroso, utiliza de enganos para obter benefícios financeiros de seu parceiro, podendo ser civilmente responsabilizada por danos morais conforme o artigo 927 do Código Civil. Esse abuso impacta não apenas o patrimônio da vítima, mas também sua dignidade, que está vinculada aos direitos de personalidade, protegidos pelo artigo 11 do Código Civil (2002). Fachini (2020) destaca que a responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro apoia-se no princípio da dignidade da pessoa humana, considerando que os direitos de personalidade abrangem aspectos como direito à vida, autodeterminação corporal, privacidade, honra, preservação de identidade e nome.

A autora Berlini (2022) analisa que a definição de estelionato no Código Penal tem sido aplicada a pedidos de indenização por estelionato afetivo, evidenciando o comportamento enganoso do agente que obtém vantagens indevidas ao explorar um relacionamento amoroso. Para mulheres vítimas desse crime, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) oferece respaldo, classificando o estelionato afetivo como violência patrimonial e prevendo medidas protetivas, como restrições de contato e proteção do espaço pessoal, conforme o artigo 7º, inciso IV, e o artigo 22.

Berlini (2022) observa que, muitas vezes, as vítimas hesitam em denunciar devido ao constrangimento ou à exposição pública, suportando o prejuízo financeiro e emocional para evitar reviver o trauma. Advogados recomendam que essas vítimas reúnam provas, como mensagens e documentos financeiros, para fortalecer a denúncia. Berlini enfatiza que, juridicamente, para que o estelionato afetivo seja configurado, é preciso comprovar a fraude. Não é suficiente evidenciar um relacionamento abusivo ou a presença de agressões; a configuração do crime requer provas claras de manipulação financeira intencional para obtenção de vantagem. Casos em que pagamentos ou presentes foram consensuais e explícitos não configuram estelionato, pois não se caracterizam pela fraude prevista no artigo 171 do Código Penal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não é novidade para ninguém que toda e qualquer relação amorosa encontra-se embasada confiança, lealdade e boa-fé dos parceiros, e no direito; sendo livre as formas de pactuação ou de estabelecimento dos contratos na qual se formula uma espécie de contrato tácito (celebrado sem formulação de um documento escrito).

O presente estudo sobre estelionato afetivo destaca a complexidade jurídica e emocional desse fenômeno, o qual explora relações amorosas para obtenção de vantagens indevidas, comprometendo diretamente a dignidade da pessoa humana e os direitos de personalidade. Com base na análise do artigo 171 do Código Penal e na legislação civil brasileira, evidencia-se que o estelionato afetivo, embora ainda não tipificado formalmente, é passível de responsabilização civil e penal, dependendo da comprovação da fraude e do dano emocional.

As proteções legais, como as previstas na Lei Maria da Penha, proporcionam um respaldo importante às mulheres vítimas de estelionato afetivo, reconhecendo essa prática como uma forma de violência patrimonial. Os autores aqui estudados apontam que muitos desses indivíduos hesitam em buscar justiça, seja por receio de exposição pública ou pelo impacto psicológico da situação, o que reforça a importância de uma abordagem mais empática e humanizada no tratamento dos casos.

Assim, o estelionato afetivo desafia as fronteiras entre os direitos penais e civis, exigindo não apenas a devida comprovação do dolo para configurar fraude, mas também uma rede de apoio que ofereça às vítimas assistência psicológica e jurídica adequada. A necessidade de conscientização e de melhores orientações às vítimas também emerge como fundamental, visto que, na maioria dos casos, essas pessoas são aconselhadas a registrar provas e buscar amparo legal, enfrentando o peso de um julgamento social. Portanto, o combate ao estelionato afetivo requer tanto um avanço nas políticas públicas de proteção quanto uma sensibilização social que resguarde a dignidade e os direitos dos envolvidos.

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BARCELLOS, Ana Paula de. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro. Forense, 2019.

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Eric Tadeu do Vale Lima

VIP Eric Tadeu do Vale Lima

Advogado e Jornalista, integra a Comissão de Direito de Família e Direito do Trabalho na OAB do Ceará.

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