O argumento da hipersuficiência para admitir a pejotização
STF amplia a terceirização e flexibiliza vínculo trabalhista, validando a autonomia da contratação por pessoa jurídica e priorizando a negociação direta.
sexta-feira, 1 de novembro de 2024
Atualizado em 31 de outubro de 2024 14:18
Temos assistido, reiteradamente, a manifestações de divergência e uma consequente resistência do judiciário trabalhista à nova realidade imposta pelo STF no tocante às decisões que vêm ampliando a terceirização e sua licitude em toda atividade, meio ou fim.
Com critérios distantes da tradicional essência protecionista utilizada pela Justiça do Trabalho, o STF vem autorizando, progressivamente, a pejotização e as "outras formas de trabalho fora da CLT", afastando o vínculo de emprego declarado pela Justiça do Trabalho.
Destaque-se que a hipersuficiência do trabalhador - pessoas com alto nível de formação e remuneração -, entendida pelo STF como liberdade de negociação, tem sido a base da validação das diversas modalidades alternativas de contrato de prestação de serviços.
A tese de que a hipersuficiência pode ser aplicada a todo tipo de trabalhador, contudo, ainda tem se mostrado controversa. Há que se reconhecer que falta clareza nos critérios utilizados pelo STF para conceituar o hipersuficiente. Ora o STF aponta os profissionais liberais como tais (advogados, médicos, engenheiros etc.), ora representantes comerciais e corretores, sem formação superior e com baixos salários.
Resta que, nestes casos, não estão sendo aplicados ou observados os arts. 2º, 3º e 9º da CLT pela Suprema Corte, os quais definem o empregador, o empregado e os atos nulos que visam fraudar ou impedir a aplicação dos preceitos da CLT. Aparentemente, o STF tem dado mais valia à forma e à autonomia da vontade do que à realidade dos fatos, mitigando e até afastando os princípios trabalhistas e as regras da CLT, as quais passaram a ser facultativas.
É bom lembrar que, em agosto de 2018, o STF julgou a ADPF 324 - que questionou a constitucionalidade e os limites da terceirização de atividades no Brasil - e o RE 958.252, no qual também se discutiu a constitucionalidade da proibição de terceirização de atividades-fim de uma empresa, fixando a seguinte tese: "1) É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada. 2) Na terceirização, compete à contratante verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada e responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias" (ADPF 324). O entendimento se aplica às terceirizações ocorridas antes mesmo da lei 13.429/17.
Relator da ADPF 324, o ministro Barroso entendeu que "a terceirização não enseja, por si só, precarização do trabalho, violação da dignidade do trabalhador ou desrespeito a direitos previdenciários". É o exercício abusivo da sua contratação que pode produzir tais violações", deixando claro que o STF admitiu que a realidade dos fatos pode demonstrar o exercício abusivo e a existência de fraude na contratação.
Igualmente importante é a tese vinculante no julgamento de Repercussão Geral, Tema 725, acerca da constitucionalidade da terceirização de mão de obra, proposta pelo relator ministro Luiz Fux que, de maneira mais abrangente, firma a tese de que "é lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante".
Portanto, a súmula 331 do TST, que proibia a terceirização de atividade-fim nas empresas - e até então adotada de forma pacificada pelos Tribunais Trabalhistas -, passou a ser considerada pelo STF como inconstitucional por violar os princípios da legalidade, da livre-iniciativa, da livre concorrência e dos valores sociais do trabalho.
Outro relevante precedente diz respeito ao julgamento conjunto da ADC 48 e da ADIn 3.961, que versa sobre o TAC - Transporte Rodoviário de Cargas -, em que o STF reconheceu que a atividade de transportador autônomo de cargas configura relação comercial de natureza civil, sem vínculo de trabalho celetista. Na mesma direção, o julgamento da ADIn 5.625 a respeito dos contratos de parceria com o profissional de salão de beleza, reconheceu ser constitucional a celebração de contrato civil de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor, negando haver relação de emprego dissimulada.
Trata-se de precedentes vinculantes inovadores a respeito da terceirização irrestrita ou ampla prestação de serviços a terceiros, entendendo também pela compatibilidade da pejotização com a CF/88, e que serviram de base para uma série de reclamações constitucionais a respeito de profissionais de outras categorias.
Cite-se ainda o exemplo emblemático do caso da RCL 47.843, quando o STF anulou a decisão da Justiça do Trabalho para reconhecer a licitude na contratação de médicos pelo Instituto Fernando Filgueiras, na Bahia, por meio de pessoa jurídica, validando a adoção de formas alternativas de contratação de mão de obra, sem prevalência ou preferência do vínculo de emprego celetista, principalmente para os profissionais hipersuficientes. Em seu voto o ministro Barroso ressaltou que "se estivéssemos diante de trabalhadores hipossuficientes, em que a contratação como pessoa jurídica fosse uma forma, por exemplo, de frustrar o recebimento de fundo de garantia por tempo de serviço ou alguma outra verba, (...) uma tutela protetiva do Estado poderia justificar-se. (...) Não só médicos, hoje em dia - que não são hipossuficientes -, fazem uma escolha esclarecida por esse modelo de contratação. Professores, artistas, locutores, são frequentemente contratados assim, e não são hipossuficientes. São opções permitidas pela legislação".
A atual posição do Supremo, em um movimento reformista, reflete o reconhecimento dessa nova dinâmica mundial e a necessidade de se viabilizar as demandas de maior eficiência da economia, através de uma interpretação mais ampla e flexível em relação ao polêmico tema da terceirização da mão de obra, pejotização, entre outras modalidades de contrato de prestação de serviços. Reconhecendo mudanças no mecanismo das relações de trabalho e buscando alternativas de contratação, o STF caminha validando em uma série de decisões vinculantes o sentido de constitucionalidade à terceirização irrestrita e todas as outras formas de trabalho fora da CLT. Trazendo uma visão mais liberal e progressista ao instituto, o ministro Luís Roberto Barroso, em junho de 2023, considerou que "(...) o contrato de emprego não é a única forma de se estabelecerem relações de trabalho. Um mesmo mercado pode comportar alguns profissionais que sejam contratados pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho e outros profissionais cuja atuação tenha um caráter de eventualidade ou maior autonomia. Desse modo, são lícitos, ainda que para execução de atividade-fim da empresa, os contratos de terceirização de mão de obra, parceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica (pejotização), desde que o contrato seja real, isto é, de que não haja relação de emprego com a empresa tomadora do serviço, com subordinação, horário para cumprir e outras obrigações típicas do contrato trabalhista, hipótese em que se estaria fraudando a contratação" (RCL 60.436).
Com base nessa visão, o STF se posicionou a respeito de uma série de matérias, flexibilizando e redefinindo conceitos, dando novos contornos a temas caros à área trabalhista, em decisões orientadas, segundo o ministro Barroso, na garantia dos direitos fundamentais previstos na Constituição para as relações de trabalho, na preservação do emprego e da empregabilidade, na formalização do trabalho (removendo os obstáculos que levam a informalidade), na melhoria da qualidade geral e na representatividade dos sindicatos, na valorização da negociação coletiva, na desoneração da folha de salários, para incentivar a empregabilidade e no fim da imprevisibilidade dos custos das relações de trabalho em uma cultura em que a regra seja propor reclamações trabalhistas ao final da relação de emprego.
Cabe observar, assim, das decisões do Supremo que, apesar de supostamente poderem estar presentes todos os requisitos materiais para reconhecimento do vínculo de emprego da CLT, o fato do trabalhador ser hipersuficiente e de se tratar de pessoa esclarecida, relativiza e até exclui as regras de direito do trabalho e prioriza a autonomia da vontade, pois parte da premissa de que o trabalhador pode escolher, de forma esclarecida, o tipo de contratação (animus contrahendi), como também aponta a igualdade entre as partes para negociar diretamente.