A necessidade de limitar a reeleição no Brasil - O exemplo da XXII emenda dos EUA
É preciso limitar reeleições sucessivas, pois mandatos longos geram ingerência nos demais poderes e perpetuação no cargo, mascarando uma ditadura sob o contexto democrático.
quinta-feira, 24 de outubro de 2024
Atualizado às 13:26
O transcurso longevo de um mandato permite a indevida ingerência nos demais poderes, além de possibilitar a indesejada confusão do público com o privado, fazendo com que governantes se perpetuem no poder com discursos populistas, utilizando o contexto democrático para mascarar a face opressora de uma ditadura.
Por esse motivo, Rui Barbosa, um dos mais influentes juristas na redação da primeira Constituição brasileira, destacou que a referida Assembleia Constituinte temia o exercício exclusivo do poder pelo chefe do Executivo, e havia grande preocupação no parlamento acerca da duração do mandato presidencial1.
O debate se concentrou na escolha entre um período curto, com possibilidade de reeleição, ou um período mais longo, vedada a recondução. Ao final, o art. 43 da CF/91 estipulou que "O Presidente exercerá o cargo por quatro anos, não podendo ser reeleito para o período presidencial imediato".
Constata-se, portanto, que desde o surgimento do Direito Constitucional brasileiro, existe um receio quanto à continuidade dos mandatários por períodos prolongados no poder, uma vez que tal prática é reconhecidamente um risco ao pleno exercício da democracia. Isso porque a essência do princípio republicano reside justamente no impedimento da perpetuação de uma mesma pessoa ou grupo no poder2.
Nesse contexto, a tradição do pensamento constitucional no Brasil sempre defendeu a existência de um mandato único, com o objetivo de evitar a perpetuidade e a personificação do governante, além de "evitar o uso da máquina administrativa" em prol da tentativa de novos mandatos3.
Contudo, em 1997 foi promulgada a EC 16, cujo art. 1º alterou o § 5º do art. 14 da CF/88, passando a vigorar com a seguinte redação: Art. 14 (...) § 5º O presidente da república, os governadores de Estado e do Distrito Federal, os prefeitos e quem os houver sucedido ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subsequente.
A EC 16 permitiu deste modo, que pela primeira vez na história da república brasileira, houvesse a reeleição para o chefe do Poder Executivo, desestruturando portanto, um ponto central no sistema Constitucional brasileiro, que tentava evitar que pessoas se eternizassem nos cargos de chefes dos Poderes Executivos.
A doutrina e a jurisprudência à época da promulgação da EC 16, concentraram-se em questões relativas à lisura do processo eleitoral, levantando controvérsias sobre: desincompatibilização, a possibilidade de eleição de parentes, o uso da máquina pública em prol do candidato, entre outros pontos. No entanto, pouco se discutiu sobre as consequências democráticas advindas do prolongamento do mandato.
A permanência prolongada de qualquer governante no poder, mesmo que democraticamente eleito, gera uma série de riscos à sociedade e ao sistema democrático, uma vez que enfraquece as instituições, como o Judiciário e o Legislativo, à medida que possibilita a perpetuação de nomeações de aliados para cargos-chave, dificultando o controle e o equilíbrio entre os poderes.
Além disso, o detentor de mandatos sucessivos pode promover alterações legislativas para favorecer sua própria continuidade no poder, criando barreiras para a oposição, impedindo a renovação política e resultando na diminuição da pluralidade de ideias e da competição saudável entre partidos. Ademais, quando um agente permanece no poder por um longo período, pode surgir o culto à personalidade, criando a falsa percepção de que o líder é insubstituível, gerando um ambiente em que críticas são vistas como traição.
A prolongada permanência no poder gera receios entre os aliados do mandatário, que temem perder privilégios ou enfrentar processos judiciais, o que tende a tornar a gestão mais permissiva à corrupção, comprometendo a governança e a confiança da população nas instituições. Isso inevitavelmente leva a tentativas de prolongar ainda mais o mandato ou à adoção de medidas para manter o controle do governo, ainda que de forma autoritária.
A história recente está repleta de exemplos de governos autoritários que com máscara democrática, utilizaram estratégias para prolongar a permanência de seus mandatários no cargo.
Por exemplo, em 2023 na Venezuela, diante de uma maioria parlamentar favorável aos seus propósitos populistas, o então presidente Hugo Chávez conseguiu aprovar na Assembleia Nacional uma lei que ampliava o número de juízes da Corte Suprema de 20 para 324. Com essa manobra e contando com uma ampla maioria na Assembleia Nacional, Chávez enfraqueceu seus adversários e realizou reformas no sistema legislativo para se manter no poder, sem qualquer ingerência do Judiciário. A consequência disso é a atual condição precária enfrentada pelo povo venezuelano.
Nos Estados Unidos, a história mostra que Franklin D. Roosevelt, eleito democraticamente para mandatos sucessivos (1933 a 1945), enfrentou grandes conflitos com a Suprema Corte americana e também tentou aumentar o número de membros do Tribunal, sob a justificativa de torná-lo mais "eficiente", quando, na realidade, sua pretensão era neutralizar magistrados contrários ao seu governo5.
Esta desvirtuação democrática decorrente do prolongamento dos mandatos eleitorais, é retratada pela professora Renáta Uitz, da CEU - Universidade Central Europeia na Hungria, que denominou de "recessão democrática" esse processo, promovido por "políticos que não levam os ideais constitucionais a sério", que não enxergam nas Constituições "fontes de limitação aos seus poderes" e utilizam as leis para "autoperpetuarem-se no poder"6.
Como visto, desde a origem do Direito Constitucional brasileiro, havia grande preocupação do constituinte originário em evitar a perpetuação de governantes. Contudo, o constituinte reformador, ao promulgar a EC 16, não previu as consequências democráticas advindas da reeleição, pois não limitou o número de mandatos consecutivos.
Em paralelo, mesmo a Constituição dos Estados Unidos, que sofreu poucas alterações desde sua promulgação, passou por uma importante reforma em 1951, decorrente da aprovação da vigésima segunda emenda pelo Congresso em 1947 e sua ratificação em 1951, prevendo que ninguém poderá ser eleito mais de duas vezes para o cargo de presidente. Essa reforma foi motivada pela decisão do presidente Roosevelt de concorrer a um terceiro e quarto mandatos7.
Dessa forma, o sistema vigente nos EUA veda a reeleição de um presidente por mais de dois mandatos consecutivos.
Quando a norma constitucional brasileira foi revisada em 1997, já se tinha conhecimento dessas reformas ocorridas nos Estados Unidos. Contudo, o constituinte reformador brasileiro não limitou a reedição de mandatos, como o fizeram os americanos.
Desde então, a questão da reeleição tem sido objeto de análises políticas, e seus reflexos ainda são criticados até mesmo pelos que antes a defendiam. Neste contexto, veja que em 2020, o primeiro presidente beneficiado pela norma, Fernando Henrique Cardoso, admitiu, em artigo, sua "meaculpa", afirmando que a aprovação da reeleição "foi um erro"8.
O fim da reeleição tem sido objeto de debate desde a EC 16, como demonstra a proposta de emenda sem número autuada no Senado com protocolo SF/14188.81548-39 da relatoria da senadora Lídice da Mata. A proposta se justifica sob o enfoque do desequilíbrio na disputa eleitoral, uso da máquina pública, e pouca rotatividade dos cargos.
O professor Daniel Mitidiero alerta que "é sempre bom conhecer a história" para que a gente reflita sobre "tudo o que já se percorreu" e, se "levarmos a sério as suas lições, a herança pode ser ainda maior"9.
Nesse contexto de revisão de fatos históricos, faz-se necessária a rediscussão dos reflexos da reeleição, uma vez que erros do passado continuam a se reproduzir em novas modalidades ao redor do mundo, mas sempre sob a mesma vertente autoritária, que deve ser combatida de forma veemente.
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1 BARBOSA, Rui. Commentários à Constituição Federal brasileira. São Paulo: Saraiva, 1993.
2 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. - 12. ed. rev. e atual. - São Paulo : Saraiva, 2017.
3 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003. 593 p.
4 Chávez aumenta número de juízes na Corte Suprema venezuelana. Folha de S. Paulo. São Paulo, p. 1-1. 25 out. 2003.
5 O que ocorreu na última vez em que os democratas tentaram expandir a Suprema Corte. Gazeta do Povo. Curitiba, p. 1-1. 14 out. 2020.
6 QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo; BUSTAMANTE, Thomas; MARTIN, Margaret. A Constituição contra a ameaça autoritária. Folha de S. Paulo. São Paulo, p. 1-1. 29 maio 2020.
7 CAGGIANO, Mônica Herman Salem. Corrupção e financiamento das campanhas eleitorais. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 10, n. 41, p. 215-240, 2002.
8 FOLHA DE S. PAULO - FHC faz mea-culpa e afirma que emenda que permitiu reeleição foi um erro. 06.09.2020.
9 MITIDIERO, Daniel. Por uma história do judicial review: da Inglaterra aos Estados Unidos, dos Estados Unidos ao Brasil. Revista de Processo: RePro, São Paulo, v. 48, n. 345, p. 421- 439, nov. 2023.