Improbidade administrativa e Direito Administrativo sancionador: Reflexões sobre a ADIn 4.295 à luz da jurisprudência constitucional
A ADIn 4.295 reafirma a constitucionalidade da lei de Improbidade, focando em sanções dolosas e na autonomia do direito administrativo sancionador.
sexta-feira, 25 de outubro de 2024
Atualizado em 24 de outubro de 2024 11:48
Introdução
A lei de improbidade administrativa (lei 8.429/92), que passou por uma profunda reformulação com a edição da lei 14.230/21, continua a ser uma das principais ferramentas do Estado brasileiro na luta contra a corrupção, a má gestão pública e a violação dos princípios da administração pública. Entretanto, o conceito de improbidade administrativa, conforme defendemos ao longo de nossas obras e reflexões, vai muito além de simples atos de corrupção ou enriquecimento ilícito. Trata-se de um mecanismo que abarca a desonestidade grave e a ineficiência crassa, desde o ângulo constitucional, inserido dentro de uma abordagem mais ampla do direito administrativo sancionador.
Neste artigo, propomos uma análise da decisão do STF na ADIn 4.295, que julgou dispositivos da lei 8.429/92 sob a perspectiva constitucional, ressaltando a função do direito administrativo sancionador no regime da improbidade. A partir de nossa interpretação, examinamos a decisão à luz da jurisprudência constitucional e sua interface com os princípios da moralidade, legalidade e eficiência, focos centrais da improbidade administrativa no Brasil.
O conceito constitucional de improbidade e a reforma de 2021
A improbidade administrativa, como conceituada no art. 37, §4º, da Constituição Federal, exige dos agentes públicos uma conduta compatível com a probidade administrativa e o respeito aos princípios que regem a administração pública, como legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, em graus especialmente qualificados. O conceito de improbidade não se restringe à corrupção propriamente dita, mas também abrange atos que, mesmo sem lesar diretamente o erário, violam esses princípios, afetando a confiança da sociedade na administração pública. Não obstante, o legislador pode ou não tipificar atos culposos.
A reforma trazida pela lei 14.230/21 gerou controvérsia ao eliminar os tipos culposos de improbidade administrativa, privilegiando apenas as condutas dolosas. Segundo nossa visão, essa reforma representa uma opção legítima do legislador dentro do sistema democrático, que optou por priorizar a punição de condutas intencionais, mais graves, em detrimento de atos culposos que, embora prejudiquem o erário, não envolvem a má-fé ou dolo direto do agente público.
O STF, ao julgar a ADIn 4.295, reconheceu a constitucionalidade dessa escolha legislativa, destacando que o texto constitucional oferece margem para que o legislador defina o âmbito de abrangência das infrações de improbidade. Assim, ao excluir os tipos culposos, o legislador brasileiro seguiu uma tendência de fortalecimento do princípio da segurança jurídica e da tipicidade estrita no direito sancionador.
Direito Administrativo Sancionador: Origem e aplicação na improbidade administrativa
Desde a década de 1990, temos defendido a necessidade de se tratar a improbidade administrativa como uma infração inserida no campo do direito administrativo sancionador. Este ramo do direito, que se consolidou principalmente na Europa e ganhou força no Brasil com a evolução jurisprudencial, as reformas legislativas e fortalecimento dos mecanismos de controle, visa sancionar infrações administrativas com base em um regime jurídico próprio, distinto do direito penal, mas igualmente regido por princípios garantistas, como proporcionalidade, legalidade e tipicidade.
O direito administrativo sancionador busca proteger valores como a moralidade, a eficiência e a legalidade da atuação administrativa, mediante a aplicação de sanções que podem ser impostas diretamente pelo poder judiciário ou poder executivo, com estrita observância de princípios e regras que guardam simetria com o direito penal. A improbidade administrativa se insere neste contexto como uma infração que, embora não seja necessariamente crime, exige uma resposta severa do Estado para garantir o bom funcionamento da administração pública e a confiança da população nos gestores públicos.
A reforma de 2021 reafirma essa natureza materialmente administrativa das infrações de improbidade, consolidando o entendimento de que as sanções por atos ímprobos possuem natureza inserida no regime do direito administrativo sancionador, ainda que processualmente se insiram na jurisdição cível.
O STF, na ADIn 4.295, reforçou essa visão ao confirmar a independência das esferas administrativas e criminais, destacando que a punição por improbidade pode ser aplicada de forma autônoma, sem a necessidade de condenação criminal, o que reforça o caráter punitivo-administrativo da improbidade.
A constitucionalidade das sanções: Análise do acórdão da ADIn 4.295
A ADIn 4.295 discutiu, entre outros pontos, a constitucionalidade de dispositivos da lei 8.429/92 que permitem a aplicação de sanções severas, como a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos e a proibição de contratar com o poder público, mesmo sem a comprovação de dano ao erário. A decisão do STF foi clara ao afirmar que a proteção da moralidade administrativa vai além da defesa do erário, envolvendo também a tutela dos princípios que regem a administração pública, especialmente a legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência.
No voto do ministro relator, Marco Aurélio, ficou explícito que a sanção por improbidade administrativa, ao contrário do que argumentava a parte autora da ação, não depende necessariamente da existência de dano ao patrimônio público. A improbidade é, acima de tudo, uma infração aos princípios administrativos, e sua punição visa resguardar o interesse público mais amplo, que inclui a confiança da sociedade na administração estatal.
Além disso, o acórdão reforçou a tese de que as sanções administrativas previstas na lei 8.429/92 são independentes de outras esferas, como a penal e a civil. Isso significa que, mesmo que o agente público não tenha sido condenado criminalmente, ele ainda pode ser punido por improbidade administrativa, com base nos critérios estabelecidos pela lei. Essa independência das esferas, reafirmada pelo STF, é um dos pilares do direito administrativo sancionador, que visa garantir uma resposta célere e eficaz às violações graves dos deveres funcionais. Claro que essa independência não significa desprezo pelo princípio do non bis in idem.
O papel do Ministério Público e o controle judicial na improbidade
Outro aspecto relevante do acórdão da ADIn 4.295 foi a discussão sobre a atuação do Ministério Público no acompanhamento dos processos de improbidade administrativa. A lei 8.429/92 prevê que o Ministério Público, assim como os Tribunais de Contas, tem o direito e o dever de acompanhar os processos administrativos e judiciais que envolvem a apuração de atos de improbidade, podendo, inclusive, ajuizar a ação de improbidade e acompanhar as investigações, inclusive a apuração do dano.
A parte autora da ação questionava a constitucionalidade desse dispositivo, alegando que ele violaria o princípio da separação dos poderes ao permitir que o Ministério Público interviesse em processos administrativos. Contudo, o STF, mais uma vez, foi categórico ao afirmar que a participação do Ministério Público é uma garantia fundamental para a imparcialidade e a objetividade na apuração dos fatos, inclusive nas esferas administrativas. A supervisão exercida pelo Ministério Público, conforme destacado pelo relator, não viola a separação dos poderes, mas sim fortalece o controle e a transparência na aplicação das sanções por improbidade.
A atuação do Ministério Público nos processos de improbidade é essencial para garantir que as investigações e as sanções sejam conduzidas com base em critérios técnicos e jurídicos, afastando o risco de interferências políticas ou decisões arbitrárias. O controle judicial também foi reafirmado como uma salvaguarda importante para assegurar que o direito administrativo sancionador seja aplicado de forma justa e proporcional, em consonância com os princípios constitucionais.
A extensão das sanções a pessoas jurídicas: Prevenção de fraudes e proteção ao erário
A ADIn 4.295 também trouxe à tona uma questão importante sobre a aplicação de sanções de improbidade a pessoas jurídicas controladas por agentes públicos. A lei 8.429/92 prevê que empresas das quais o agente público seja sócio majoritário podem ser sancionadas com a proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios fiscais e creditícios, caso o agente tenha sido condenado por improbidade.
Esse dispositivo, cuja constitucionalidade foi contestada, foi validado pelo STF como uma medida legítima e necessária para prevenir fraudes e garantir a efetividade das sanções por improbidade. O tribunal destacou que a aplicação de sanções a empresas controladas por agentes ímprobos é fundamental para evitar que esses agentes utilizem suas empresas como instrumentos para burlar as punições impostas pela lei. A decisão do STF garantiu, assim, que as sanções sejam aplicadas de maneira efetiva e proporcional, protegendo o patrimônio público contra manobras fraudulentas, circunstância que tampouco afasta a importância do princípio do non bis in idem.
Uma das grandes contribuições da reforma trazida pela lei 14.230/21 foi a consolidação da independência das sanções administrativas em relação ao direito penal, sem descurar do princípio do non bis in idem.
Ao reafirmar a natureza administrativa das infrações de improbidade e a sua autonomia em relação a outras esferas, a reforma promovida pela lei 14.230/21 trouxe uma importante evolução, pois consolidou a independência das esferas administrativas e criminais. O reconhecimento de que as sanções de improbidade administrativa possuem uma natureza materialmente administrativa e processualmente cível foi reafirmado pelo STF na ADIn 4.295, reforçando a autonomia do direito administrativo sancionador em relação ao direito penal.
Essa independência é essencial para garantir que as sanções por improbidade sejam aplicadas de forma eficiente e célere, sem depender do resultado de processos criminais, que muitas vezes demoram anos para serem concluídos. O direito administrativo sancionador, como ramo autônomo do direito público, visa proteger a administração pública contra infrações graves que comprometem a moralidade, a legalidade e a eficiência dos serviços públicos, sem a necessidade de comprovação da responsabilidade criminal.
A decisão do STF na ADIn 4.295 confirmou que a improbidade administrativa pode ser sancionada de forma autônoma, sem que seja necessária uma condenação penal prévia. Isso é fundamental para o bom funcionamento dos mecanismos de controle da administração pública, garantindo que agentes públicos que violem os deveres de probidade sejam responsabilizados de maneira proporcional e tempestiva, independentemente do resultado de eventuais processos criminais.
Além disso, a ADIn 4.295 reforçou que as sanções administrativas não são penais em sua essência, ainda que possam ter efeitos semelhantes, como a perda de função pública e a suspensão de direitos políticos. Essas sanções servem para proteger o interesse público e manter a integridade da administração pública, com base nos princípios do direito administrativo sancionador.
A supressão dos tipos culposos na lei de improbidade e suas implicações
Uma das mudanças mais significativas introduzidas pela lei 14.230/21 foi a exclusão dos tipos culposos de improbidade administrativa. Antes da reforma, a lei 8.429/92 previa a possibilidade de punir condutas culposas, ou seja, aquelas em que o agente público agiu sem dolo, mas com culpa, seja por negligência, imprudência ou imperícia. No entanto, a nova lei optou por restringir as sanções de improbidade apenas às condutas dolosas, o que gerou debate na doutrina e na jurisprudência.
A justificativa para essa alteração é que a punição por improbidade administrativa deve ser reservada para as infrações mais graves, que envolvem uma violação consciente dos deveres de probidade, moralidade e eficiência. O legislador entendeu que punir agentes públicos por mera culpa, sem a presença de dolo, poderia gerar insegurança jurídica e desestimular a atuação administrativa, especialmente em setores em que o risco de erro é elevado, como na gestão de políticas públicas complexas.
Embora a exclusão dos tipos culposos possa ser criticada, porque a ineficiência grave também deve ser punida, o STF validou essa opção legislativa como constitucional. A corte entendeu que a Constituição Federal oferece margem ao legislador para definir o alcance das infrações de improbidade, inclusive a possibilidade de restringir a punição às condutas dolosas.
Na visão do STF, a opção de punir apenas atos dolosos não viola o princípio da moralidade administrativa.
Ao nosso entender, aliás, o legislador pode, no futuro, reintroduzir os tipos culposos, caso entenda necessário, porque, ao que consta, o tipo penal do peculato culposo não é inconstitucional.
O mais importante, segundo nos parece, é que a punição por improbidade esteja sempre alinhada aos princípios da proporcionalidade e da segurança jurídica, evitando tipos desproporcionais ou arbitrários que possam comprometer a legalidade, segurança jurídica ou dignidade da pessoa humana.
A proporcionalidade das sanções e o devido processo legal
Outro ponto central que tem pautado o STF é a reafirmação do princípio da proporcionalidade como um dos pilares do direito administrativo sancionador. O STF vem destacando que as sanções por improbidade devem ser aplicadas de forma proporcional à gravidade da infração, levando em consideração as circunstâncias concretas do caso e a extensão do dano causado à administração pública.
Nesse sentido, o tribunal ressaltou que as sanções previstas na lei 8.429/92, como a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos e a proibição de contratar com o poder público, são severas e, por isso, devem ser aplicadas com cautela, sempre respeitando o devido processo legal. O STF reafirmou que o devido processo legal, além de garantir o contrADIntório e a ampla defesa, deve assegurar que as sanções sejam impostas de maneira justa e equilibrada, sem excessos ou arbitrariedades.
A decisão na ADIn 4295 também reiterou a importância da tipicidade estrita no direito sancionador. O princípio da tipicidade exige que as infrações sejam claramente definidas em lei, de modo a garantir que os agentes públicos saibam exatamente quais condutas são consideradas ímprobas e quais sanções podem ser aplicadas em caso de violação. Esse princípio é fundamental para a segurança jurídica e para a previsibilidade das ações do Estado no campo sancionador.
A inconstitucionalidade das penas sem comprovação de dano
Outro ponto relevante abordado na decisão do STF na ADIn 4.295 foi a análise sobre a possibilidade de aplicação de sanções de improbidade sem a comprovação de dano ao erário. O tribunal destacou que a defesa da probidade administrativa não se limita à proteção do patrimônio público em sua dimensão financeira. A improbidade administrativa visa, antes de tudo, proteger os princípios fundamentais que regem a administração pública, como a legalidade, moralidade e eficiência.
Nesse sentido, o STF reafirmou que é possível aplicar sanções por improbidade mesmo nos casos em que não há comprovação de dano material ao erário, desde que fique comprovado que o agente público violou gravemente os princípios da administração pública. O tribunal entendeu que a defesa da moralidade administrativa e a prevenção de condutas ímprobas são objetivos legítimos do Estado, que justificam a aplicação de sanções independentemente do prejuízo financeiro direto.
Essa interpretação é coerente com a lógica do direito administrativo sancionador, que não se limita a punir condutas que causam prejuízo financeiro, mas também busca sancionar atos que comprometam a integridade ética e funcional da administração pública. O foco é, portanto, garantir a observância dos deveres de probidade, moralidade e eficiência, pilares fundamentais para o bom funcionamento do Estado.
Considerações finais: O legado da ADIn 4.295 para o Direito Administrativo brasileiro
O julgamento da ADIn 4.295 pelo STF representa um marco importante na consolidação do regime jurídico da improbidade administrativa no Brasil. A decisão reafirmou a constitucionalidade dos principais dispositivos da lei de improbidade administrativa, validando a opção legislativa por restringir a punição às condutas dolosas e reconhecendo a autonomia do direito administrativo sancionador em relação ao direito penal.
A ADIn 4.295 também reforçou a importância do Ministério Público e dos Tribunais de Contas no acompanhamento dos processos de improbidade, garantindo que as investigações sejam conduzidas de maneira técnica e imparcial, em conformidade com os princípios constitucionais. A participação desses órgãos de controle é fundamental para assegurar que as sanções por improbidade sejam aplicadas de forma justa e proporcional, sempre em defesa do interesse público.
Outro legado importante da decisão foi o reconhecimento de que as sanções de improbidade podem ser aplicadas de forma autônoma, sem depender da comprovação de dano ao erário, desde que o agente público tenha violado gravemente os princípios da administração pública. Esse entendimento reforça o caráter preventivo e ético da lei de Improbidade, que visa proteger não apenas o patrimônio financeiro do Estado, mas também a integridade moral e funcional da administração pública.
Por fim, a ADIn 4.295 consolidou o entendimento de que o direito administrativo sancionador é um instrumento eficaz e necessário para a preservação da moralidade, legalidade e eficiência na administração pública. Ao reafirmar a independência das esferas e a proporcionalidade das sanções, o STF contribuiu para o fortalecimento dos mecanismos de controle e combate à corrupção no Brasil, garantindo que a administração pública atue de acordo com os mais altos padrões de ética e responsabilidade.
A decisão também lançou luz sobre a importância de aprimorar continuamente o regime jurídico da improbidade administrativa, respeitando os limites constitucionais e as garantias fundamentais, mas sem abrir mão da defesa intransigente da moralidade e da eficiência administrativa. Dessa forma, o julgamento da ADIn 4.295 representa um avanço significativo para o direito administrativo brasileiro e para o fortalecimento das instituições.
Fábio Medina Osório
Advogado do escritório Medina Osório Advogados, ex ministro da AGU.