A iminente revogação da súmula 102 do TJ/SP e seu impacto no direito da saúde
A iminente revogação da súmula 102 do TJ-SP inaugurará uma nova fase jurídica no âmbito do tribunal, exigindo evidências científicas para a cobertura de procedimentos fora do rol.
terça-feira, 22 de outubro de 2024
Atualizado às 14:55
Cochichos nos corredores do Tribunal de Justiça de São Paulo indicam a iminente revogação da súmula 102 do TJ-SP, que durante anos consolidou, no âmbito do tribunal paulista, o entendimento de que o rol de procedimentos da ANS seria o "mínimo obrigatório" para a cobertura dos planos de saúde. Essa mudança, a princípio, gerou inquietações na advocacia consumerista. A súmula prevê o seguinte:
102. Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento de sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS.
A revogação dessa súmula não deve ser motivo de pânico para os consumidores, embora, naturalmente, seja comemorada pelas operadoras de plano de saúde. No entanto, isso não significa, de forma alguma, que o rol da ANS será considerado taxativo. Na verdade, estamos diante de uma nova fase, mais alinhada com as recentes mudanças legislativas e a própria evolução do entendimento judicial.
A alteração da lei 9.656/98 pela lei 14.307/22 redefine a forma como o rol da ANS deve ser tratado nos litígios entre consumidores e operadoras de saúde. O STJ , ao interpretar essas mudanças, passou a considerar o rol como exemplificativo condicionado1, ou seja, sua utilização é obrigatória, mas sua rigidez pode ser flexibilizada desde que certos critérios sejam atendidos. Esses critérios, que servem como parâmetros para a cobertura de procedimentos fora do rol, estão previstos nos incisos I e II do §13º do art. 10 da lei 9.656/98. Resumidamente, eles exigem a demonstração da indispensabilidade do procedimento e sua comprovação científica.
A importância da comprovação científica e a superação da abusividade abstrata
Durante muitos anos, a simples alegação de que o rol da ANS era o "mínimo obrigatório" para a cobertura dos planos de saúde gerava uma presunção automática de abusividade em casos de negativa de cobertura de procedimentos não listados. Essa interpretação alimentou uma era de "abusividade abstrata", em que as operadoras eram frequentemente condenadas com base em uma alegação genérica de que a recusa violava os direitos do consumidor, sem a necessidade de se demonstrar concretamente as razões pelas quais o procedimento deveria ser coberto.
Essa abordagem teve méritos ao garantir a proteção dos consumidores, mas também gerou distorções. O perigo de se considerar abusiva, de forma abstrata, qualquer recusa de cobertura, sem uma análise concreta do caráter científico e da real necessidade do procedimento, é significativo. Mais ainda, nesses casos, há o risco de que o Judiciário possa estar tutelando não o legítimo interesse do beneficiário, mas os interesses do prescritor do tratamento ou da indústria. Embora a boa-fé seja a regra e a má-fé não possa ser presumida, não se ignora que frequentemente o interesse legítimo do beneficiário em cuidar de sua saúde foi instrumentalizado para beneficiar interesses nem sempre tão republicanos.
A nova realidade imposta pela lei 14.307/22 e pelo entendimento do STJ exige um nivelamento mais elevado do debate. Agora, o foco deve ser a análise criteriosa dos níveis de evidência científica e a verificação objetiva de que o procedimento solicitado atende a parâmetros de segurança, eficácia e indispensabilidade ao caso específico do paciente. Isso significa que, em vez de se presumir a abusividade, será necessário demonstrar concretamente as razões pelas quais o tratamento pleiteado, não listado no rol da ANS, é imprescindível para a condição de saúde do paciente.
Não se olvide que esse também foi o intuito do STJ ao julgar o REsp 1.733.013-PR, o primeiro em que o tribunal estabelecia que o rol era taxativo, em regra, assim como ao julgar os REsp 1.886.929 e 1.889.704, nos quais se determinou que o rol era taxativo, com possibilidade de cobertura de procedimentos não previstos na lista. Há muito tempo, tenho dito nas aulas de pós-graduação que o objetivo nunca foi tornar o rol "taxativo" de forma absoluta, mas sim estabelecer critérios claros para sua superação. Basta ler a lista de exceções criadas no julgamento do famigerado "rol taxativo" para compreender que o recado implícito era muito mais sobre a necessidade de adoção de uma abordagem técnico-científica para superar a lista da ANS do que propriamente sobre o desejo de instituir um rol estritamente taxativo.
A qualificação do debate jurídico: evidências científicas e responsabilidade
Esse novo modelo de análise jurídica não representa uma diminuição dos direitos do consumidor, mas sim uma qualificação do debate sobre saúde suplementar. Ao exigir a demonstração de critérios científicos, a justiça não apenas garante a cobertura de procedimentos essenciais, como também protege os próprios consumidores de práticas que poderiam ser prejudiciais ou desnecessárias
É importante ressaltar que os critérios previstos na lei 9.656/98 são bastante claros:
- Inciso I: Exige a comprovação da eficácia do tratamento, baseada em evidências científicas e plano terapêutico. Nesses casos, quanto maior a raridade da doença, menor será a exigência técnica de evidências robustas, podendo, nesses casos, a opinião do especialista ser suficiente para a cobertura.
- Inciso II: Requer que o tratamento tenha sido recomendado pela CONITEC (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde) ou por uma entidade de avaliação de tecnologias em saúde de renome internacional, com base em evidências científicas;
Embora o inciso I elimine a necessidade prática do inciso II, pois, afinal, não há recomendação da CONITEC ou avaliação por órgão de renome internacional sem que os critérios de evidência em saúde sejam atendidos, esses incisos destacam a importância de se diferenciar o que é essencial e fundamentado cientificamente daquilo que pode ser supérfluo, ou que atende mais a interesses econômicos de prescritores ou da indústria farmacêutica, do que ao real benefício do paciente.
O fim da era da judicialização baseada em alegações genéricas
A possível revogação da súmula 102 do TJ-SP e a nova legislação não impõem barreiras para que o consumidor tenha acesso a tratamentos inovadores ou que ainda não estejam previstos no rol da ANS. Pelo contrário, o rol continua a ser o mínimo obrigatório, mas agora exige-se uma demonstração concreta dos motivos pelos quais a cobertura de um procedimento fora do rol é necessária.
Essa transição reflete a evolução do papel da judicialização da saúde. Se antes o foco era garantir a maior cobertura possível ao consumidor, sem uma análise técnica mais profunda, agora a exigência é que os pedidos sejam fundamentados em critérios científicos e concretos. Isso impede que a justiça se torne palco para a prescrição indiscriminada de tratamentos de alto custo e fortalece a proteção dos consumidores, garantindo que eles tenham acesso ao que é realmente necessário e eficaz
Impacto prático: Protegendo o consumidor e expurgando o supérfluo
Essa nova fase, ao contrário do que se possa imaginar, não tende a mudar o desfecho em favor do consumidor quando se trata de procedimentos essenciais e cientificamente comprovados. O objetivo é expurgar da cobertura o que é desnecessário ou não respaldado por evidências. A exigência de critérios científicos não visa limitar direitos, mas sim garantir que o tratamento seja seguro e eficaz para o paciente, evitando práticas abusivas ou recomendações que possam atender a interesses que não são os do próprio consumidor.
Ao trazer mais rigor e responsabilidade ao debate sobre o rol de procedimentos da ANS, o novo entendimento também atua como um filtro contra a judicialização de pedidos baseados em tratamentos experimentais ou controversos, muitas vezes movidos por interesses alheios ao beneficiário, que podem colocar o paciente em risco ou gerar custos desnecessários ao sistema de saúde.
Conclusão: Responsabilidade e evidência para proteger o consumidor
A eventual revogação da súmula 102 do TJ-SP não deve ser vista como um retrocesso, mas como um ajuste necessário ao novo marco regulatório e às recentes decisões do STJ e da lei dos planos de saúde. A exigência de comprovação científica sempre foi um marco na lei, e isso se reafirma agora. Desde sempre, tratamentos experimentais estão excluídos da cobertura dos planos de saúde. Porém, muitas vezes, as operadoras subvertem esse conceito, excluindo equivocadamente tratamentos off-label, que possuem respaldo científico para tratar determinadas condições. Como se sabe, a bula é uma foto, enquanto a ciência é um filme.
Doravante, a superação do rol de procedimentos da ANS exigirá maior responsabilidade por parte dos advogados, médicos e do próprio Judiciário, qualificando as decisões e garantindo que os consumidores tenham acesso a tratamentos que realmente importam para sua saúde.
Em suma, o fim da súmula 102 e da presunção de abusividade abstrata, embora possa ser comemorado pelas operadoras, também pode ser visto como um marco da evolução da proteção ao consumidor, permitindo que as decisões sejam baseadas em evidências concretas e científicas, garantindo que o sistema de saúde suplementar continue a servir àqueles que mais precisam, de forma justa e responsável
Elton Fernandes é advogado especialista em plano de saúde, autor do livro Manual de Direito da Saúde Suplementar pela editora Verbo Jurídico, é professor convidado nos cursos de pós-graduação nos cursos de Direito Médico e Hospitalar da escola paulista de Direito e na pós-graduação de Direito Médico e Hospitalar da USP de Ribeirão Preto, professor convidado na pós-graduação em Direito Civil da faculdade de Direito São Bernardo do Campo, professor do Instituto Luiz Mário Moutinho em Recife, além de lecionar como professor convidado no curso de especialização em Medicina Legal e Perícia Médica da faculdade de Medicina da USP e na pós-graduação em Direito Médico e Bioética da Santa Casa de São Paulo.
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1 "Ademais, diante da retroatividade mínima, nos tratamentos de caráter continuado deverão ser observados, a partir da sua vigência, os critérios trazidos pela lei 14.454/22, que alterou a natureza do Rol da ANS, de taxativo superável para exemplificativo condicionado, de modo que, conforme o art. 10, § 13: (...) Ante o exposto, conheço do agravo e dou parcial provimento ao recurso especial para determinar o retorno dos autos à Corte de origem, a fim de que julgue a apelação conforme os critérios estabelecidos pela Segunda Seção nos EREsps nºs 1.886.929/SP e 1.889.704/SP. No caso de tratamento assistencial de caráter continuado, deverão ser observados, a partir de sua vigência, os critérios estabelecidos pela lei 14.454/22, que também deverão ser verificados pelo Tribunal local (retroatividade mínima da lei). - AREsp 2.171.213 - Min. Villas Bôas Cueva