A entrevista com o suspeito: O caso Michael Crowe
O planejamento é a preparação são etapas cruciais, nas quais o entrevistador, estrutura um roteiro.
terça-feira, 22 de outubro de 2024
Atualizado em 23 de outubro de 2024 13:16
Uma das técnicas mais importantes nas investigações de homicídios é a entrevista com o suspeito. Quando conduzida de forma correta, ela pode fornecer informações valiosas para o progresso da investigação.
Essas informações auxiliam os investigadores na construção do perfil do suspeito, na verificação da credibilidade dos fatos e na confirmação ou refutação de dados obtidos por outras fontes.
O planejamento e a preparação são etapas cruciais, nas quais o entrevistador estrutura um roteiro, define os objetivos da entrevista e se prepara mentalmente para considerar o maior número possível de hipóteses diferenciais. Isso é fundamental para evitar vieses comuns, como focar apenas em uma única hipótese (Fahsing, 2016).
Essas entrevistas precisam ser conduzidas de maneira coesa e cuidadosa para garantir a obtenção correta das informações. Técnicas bem elaboradas, aliadas à mentalidade adequada dos investigadores, são determinantes para o sucesso da investigação. Falhas nessas etapas podem levar a erros judiciais, como ocorreu no caso de Michael Crowe.
Em 21 de janeiro de 1998, Stephanie Ann Crowe foi encontrada morta em seu quarto, violentada e esfaqueada enquanto sua família dormia. Naquela manhã, os Crowe chamaram a polícia, que realizou uma inspeção superficial na casa, sem encontrar sinais de arrombamento.
Sem avaliar outras evidências ou ouvir testemunhas, os detetives rapidamente concluíram que o assassinato de Stephanie havia sido cometido por alguém de dentro da casa, sucumbindo a vieses típicos de investigações malconduzidas (Bryan, 2023).
A polícia convocou a família de Stephanie para prestar depoimentos, alegando que isso ajudaria a capturar o assassino. Contudo, os investigadores já acreditavam que Michael, irmão da vítima, era o responsável, baseando-se em seu comportamento "distante e preocupado" durante a investigação inicial na cena do crime, e em evidências frágeis, como um cabelo encontrado no corpo de Stephanie, supostamente parecido com o de Michael (Bryan, 2023).
Enquanto os pais de Stephanie eram interrogados, os investigadores descobriram que Michael e seus amigos jogavam Dungeons & Dragons e eram fãs de bandas como Mötley Crüe, o que apenas reforçou seus preconceitos. Quando Michael foi levado à delegacia, a polícia o confrontou com "fatos" e alegações falsas, como a presença de sangue em seu quarto. Nas próximas 27 horas, ele foi exaustivamente interrogado, com detetives inventando evidências para forçar uma confissão (Bryan, 2023).
Ao longo do interrogatório, Michael foi submetido a um teste de detector de mentiras, e, apesar de suas respostas, continuava a ser pressionado. O jovem foi mantido isolado de sua família e bombardeado com acusações. Quando o interrogatório não seguia conforme o esperado, os detetives criaram uma situação psicológica de pressão, fazendo com que Michael chorasse e começasse a duvidar de si mesmo.
Durante uma conversa entre dois detetives, deliberadamente realizada ao alcance de Michael, um deles afirmou com convicção que acreditava na culpa dele pelo assassinato da própria irmã. Assim que o investigador deixou a sala, Michael começou a chorar e a expressar sua incredulidade diante da situação, insistindo veementemente que não havia cometido o crime pelo qual estava sendo acusado. Após horas de exaustão, ele repetiu: "Como posso dar uma resposta que não tenho?", um sinal claro de esgotamento (Bryan, 2023).
A entrevista seguiu enviesada neste sentido, como quando os detetives perguntaram como uma faca poderia ser usada para tirar a vida de alguém. Em sua ingenuidade e senso comum, o suspeito respondeu da mesma forma que muitas pessoas fariam: "Talvez esfaqueando". (Bryan, 2023).
A polícia então conseguiu uma confissão forçada, cheia de incertezas e declarações como: "Só estou dizendo isso porque é o que você quer ouvir". Com essa "confissão", Michael foi formalmente acusado do assassinato de sua irmã (Bryan, 2023).
Esse caso ilustra como entrevistas enviesadas podem comprometer uma investigação. Em vez de se concentrarem em coletar evidências e explorar todas as hipóteses, os investigadores pressionaram por uma confissão, utilizando técnicas coercitivas, que visam forçar o suspeito a admitir algo contra sua vontade (Rossmo, 2019).
Na audiência preliminar, as confissões foram amplamente escrutinadas pela mídia. Em dezembro de 1998, a "confissão" de Michael foi suprimida, evidenciando o uso de técnicas coercitivas por parte dos detetives, que, de forma intencional ou não, pressionaram o adolescente a fornecer informações (Bryan, 2023).
Depois de anos de investigação, o assassino de Stephanie Crowe ainda não foi identificado. A Unidade de Análise Comportamental do FBI descreveu o crime como altamente organizado, com o autor conseguindo entrar e sair sem ser visto ou deixar rastros.
A verdade dolorosa é que, se os detetives tivessem conduzido uma investigação mais completa e evitado a coação do adolescente, o caso de Stephanie poderia ter sido resolvido (Bryan, 2023).
Este caso exemplifica como crenças pessoais podem moldar a visão de mundo dos investigadores, limitando sua capacidade de conduzir investigações imparciais. No caso Crowe, os detetives focaram em sua premissa inicial que ele era o culpado do assassinato de sua irmã, fazendo com que este viés designasse o curso da entrevista. Ignoraram evidências físicas e deixaram de entrevistar possíveis testemunhas, concentrando-se apenas no comportamento de Michael, o que reforçou a crença inicial de que era culpado.
O viés pode levar o entrevistador a interpretar informações de maneira tendenciosa, resultando em falhas na busca por elementos que poderiam, por exemplo, comprovar o álibi de um suspeito. Isso inclui a negligência no uso de todas as evidências coletadas e a recusa em considerar hipóteses alternativas. As crenças devem ser constantemente revisadas à medida que a investigação avança e novas provas surgem, já que novas alternativas podem redirecionar o foco investigativo. O viés cognitivo pode prejudicar investigações, levando policiais a desconsiderar informações que contradigam suas crenças (Rossmo, 2019).
Estudos vêm sendo desenvolvidos para entender as causas das condenações injustas e os fatores que as influenciam. A literatura aponta erros de identificação por testemunhas, análises forenses inadequadas, falsas confissões e má conduta policial como causas comuns. Entre os principais fatores estão o viés de confirmação e a visão de túnel (Rossmo, 2019).
O viés de confirmação ocorre quando uma pessoa tende a buscar, interpretar e lembrar informações de uma maneira que confirme suas crenças ou hipóteses prévias, ao mesmo tempo que ignora ou desvaloriza evidências que as contradizem. Em psicologia forense, isso pode acontecer quando investigadores, promotores ou outros profissionais já possuem uma teoria sobre a culpa ou inocência de um suspeito e, inconscientemente, concentram-se apenas em provas que reforçam essa teoria, desconsiderando ou minimizando dados que possam sugerir outra conclusão. A visão de túnel, também conhecida como "efeito de foco", é um tipo de viés cognitivo em que a pessoa se concentra exclusivamente em um aspecto ou hipótese da investigação, excluindo outras possibilidades. No contexto forense, isso pode ocorrer quando os investigadores se fixam em uma linha de investigação ou em um suspeito específico e negligenciam considerar outras pistas, hipóteses ou suspeitos que poderiam ser igualmente relevantes. No caso de Michael, essa visão limitou a investigação, fazendo com que os detetives focassem na premissa de sua culpa, enquanto ignoravam outras possibilidades.
Rossmo (2019) realizou um estudo sobre o viés de confirmação em condenações injustas, identificando-o em 74% dos casos e em 80% das condenações estudadas. O viés pode fazer com que um entrevistador interprete informações de maneira tendenciosa, levando a falhas na busca por provas, na avaliação de álibis e na consideração de hipóteses alternativas. As crenças dos investigadores precisam ser constantemente atualizadas à medida que novas evidências são coletadas, para que o foco da investigação possa mudar de acordo com as provas (Rossmo, 2019).
O planejamento e a preparação de entrevistas com suspeitos para que reduzam seus vieses é essencial, possibilita a obtenção de informações relevantes que aproximem os investigadores da verdade dos fatos. Essa preparação deve estabelecer os objetivos da investigação, identificar quais informações precisam ser esclarecidas e garantir que o entrevistador mantenha uma postura isenta, evitando que seus preconceitos e vieses influenciem a conclusão do caso (Fahsing et al., 2021). A entrevista deve manter o suspeito confortável, com perguntas abertas e foco no relato livre, sem interrupções, além de estabelecer um bom rapport entre entrevistador e entrevistado.
A literatura acadêmica sobre os vieses em entrevistas com suspeitos é escassa, sendo fundamental que pesquisas futuras explorem o planejamento, preparação, condução e análise de entrevistas, além de expandirem o uso de técnica para outros crimes além de homicídios (Fahsing et al., 2021).
Uma entrevista investigativa é bem conduzida, com rigor metodológico e atenção aos detalhes, pode ser crucial para estabelecer a linha do tempo do crime, revelando detalhes sobre quando, onde e como o delito aconteceu, além de fornecer informações sobre os movimentos do suspeito antes e após o ocorrido. De fato, pode desvendar padrões ocultos, melhorar a coleta de evidências e contribuir significativamente para a resolução de casos complexos.
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Hewdy Lobo
Psiquiatra Forense (CREMESP 114681, RQE 300311), Membro da Comissão de Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria. Atuação como Assistente Técnico em avaliação da Sanidade Mental.
Ana Carolina Schmidt de Oliveira
Psicóloga (PUC Campinas e UNIR Espanha), especialista em dependência química (UNIFESP), máster em psicologia lega e forense (UNED Espanha).
Elise Karam Trindade
Elise Karam Trindade, psicóloga inscrita no CRP sob nº 06/205.826; especialista em Psicologia Jurídica e Neuropsicologia. Coordenadora da equipe de Psicologia Jurídica da Vida Mental.