O crescente reconhecimento da união estável e o cumprimento constitucional
A união estável no Brasil evoluiu, ganhando reconhecimento e direitos equiparados ao casamento. O Registro Civil e o termo declaratório ampliam a segurança jurídica, beneficiando a sociedade.
segunda-feira, 21 de outubro de 2024
Atualizado às 08:38
No Brasil, a história da união estável, como instituição jurídica, começa com a CF/88 que, no § 3º do art. 226, prescreve "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento". O dispositivo, ainda que de forma velada, mantém a união estável em posição inferior ao casamento, com destaque para a expressão "entidade familiar" e traz orientação aos operadores do direito: "devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".
Propositais assertivas colocadas no texto constitucional, pois não predominava a ideia de considerá-la como forma familiar mais autêntica. Entidade familiar seria, assim, uma família de segunda classe.
Posteriormente, foram editadas as leis 8.971/94 e 9.278/96, que regulamentaram a união estável, sobretudo no que diz respeito aos alimentos e direitos sucessórios. Já em 2002, o CC, em seu art. 1723, assim definiu o instituto: "é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família".
Entretanto, a desigualdade entre casamento e união estável perdurou até o julgamento dos recursos extraordinários 646.721 e 878.694 que, em sede de repercussão geral, acabaram por firmar a inconstitucionalidade da diferenciação do regime sucessório entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado em ambos os casos o regime estabelecido no art. 1.829 do CC.
Atualmente, sob o influxo de princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, igualdade e afetividade, a união estável e o casamento passaram a ostentar o mesmo status e a irradiar os mesmos efeitos. Sendo assim, suas diferenças ficaram restritas basicamente às formas de constituiçãoe dissolução, determinantes para questões probatórias, inclusive verificação de datas (inicial e final).
Em 2011, com os julgamentos da ADI - Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 e da ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, o STF egitimou a união estável de pessoas do mesmo sexo que, logo em seguida, se estendeu ao casamento.
Em 2014, o CNJ editou o provimento 37 que disciplinou a possibilidade do registro da união estável no Livro E do Registro Civil de Pessoas Naturais, apresentando a via extrajudicial como forma segura de constituição e demonstrando franca expansão do instituto.
Em 2022, entrou em vigor a lei 14.382 que, além de dispor sobre o Serp - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos, alterou diversos dispositivos da lei 6.015/73 (lei de registros públicos). No que aqui interessa, a lei incluiu o 94-A na lei de registros públicos, instituindo a figura do termo declaratório de reconhecimento ou dissolução de união estável, posteriormente disciplinado pelos Provimentos 141/23 e 149/23 do CNJ, ampliando ainda mais as possibilidades ligadas ao instituto.
E aqui estamos!
É inegável a importância da classe notarial, como agentes construtores do Direito e defesa da segurança jurídica. São os senhores, por excelência, tradição e preparo, dos instrumentos públicos, pela colheita da manifestação de vontade e atuação com fé pública estatal. Formalizando juridicamente a vontade das partes, prestam um serviço de imensurável valor à sociedade brasileira, com reflexos nas mais diversas áreas, mas sobretudo jurídica, econômica e social.
Na mesma senda, o Registro Civil de Pessoas Naturais é uma função de Estado. Não há país no mundo, democrático ou não, desenvolvido ou não, que possa dispensá-lo. Sem ele, Estado e sociedade ficam às cegas sobre os fatos mais relevantes de seus cidadãos.
Acresça-se ainda que, no sistema brasileiro, os serviços extrajudiciais possuem uma especificidade: não custam um centavo para os cofres públicos.
A união estável é uma situação de fato caracterizada pela convivência pública, contínua, duradoura e com o intuito de constituir família, nos termos do art. 1723 do CC. Em razão disso, possui natureza diversa do casamento. A união estável é um fato que, ao reunir os elementos mencionados no dispositivo supracitado, por si só e sem qualquer formalidade, deve gerar direitos e deveres, com repercussões não apenas individuais, por atingir diretamente os companheiros, mas sobretudo coletivas, atingindo terceiros e indiretamente toda a sociedade.
A expansão da sua proteção é um imperativo constitucional e por isso a ampliação das suas formas de reconhecimento se coadunam com a liberdade, própria do instituto, mas atendem principalmente aos princípios mais modernos do direito de família. Assim, as preocupações com as formas de constituição e desconstituição, apesar de irrelevantes para a sua existência em si, são imperativos que o legislador vem buscando cumprimento e os operadores do direito, efetividade.
Há pouco tempo, essas provas eram mais restritas, limitadas ao reconhecimento judicial e a escritura pública declaratória de união estável. A utilização de instrumento particular com a mesma finalidade jamais foi recomendada, embora por vezes utilizadas, por não contar com grande segurança jurídica.
Hoje, as diversas possibilidades de ingresso no Registro Civil das Pessoas Naturais ratificam o franco desenvolvimento do instituto, com enormes ganhos para a sociedade brasileira. Isso porque uma via não exclui a outra: a intenção do legislador foi justamente alargar as vias de constituição para atender da melhor forma a população, que poderá escolher aquela mais próxima da sua realidade ou conveniência.
O termo declaratório do registrador civil, redigido por agente público, dotado de fé pública, é um instrumento adequado para todos os fins a que se destina, agregando segurança jurídica ao ato, pela identificação do declarante, colheita da manifestação e arquivo de documentos.
Aliás, o registrador civil é o oficial da cidadania, como bem consta na lei federal 13.484/17. Ele é o guardião de tudo o que é mais caro à pessoa humana, a sua intimidade, cidadania e dignidade. Além disso, é preciso destacar que o Registro Civil das Pessoas Naturais é o serviço público de maior capilaridade no Brasil. Nas grandes metrópoles ou no mais longínquo distrito, nenhum outro serviço público está tão presente e tão próximo do cidadão como o Registro Civil. Na verdade, em muitos lugares, é o único serviço público colocado à disposição da população.
Como já dito, o termo declaratório é um instrumento público e nele pode constar tudo aquilo que, com relação à união estável, constaria na escritura pública, como eventual alteração de nome e regime de bens. Ademais, tal como ocorre com a escritura pública, o termo declaratório pode ser objeto de registro no Livro E do 1º Subdistrito da Sede da Comarca, onde residem os conviventes, garantindo eficácia erga omnes ao instrumento e gerando maior publicidade à união (ou dissolução), com as respectivas anotações junto aos registros anteriores.
Importante destacar que a certificação eletrônica de união estável tem a função de conferir fé pública ao início ou fim da união, fazendo com que a declaração das partes passe pelo crivo do registrador civil que, ao final de um procedimento, formando seu convencimento, certifica a respectiva data.
A data de início ou fim da união sempre pode constar nas respectivas escrituras públicas, da mesma forma que, hoje, também pode figurar no termo declaratório. Com essa certificação, a data da união ou a sua dissolução ganha maior eficácia pelo ingresso registral, com importantes efeitos na seara patrimonial, não só entre o casal, mas, principalmente, em relação a terceiros.
Dessa forma, a existência do termo declaratório de união estável, como instrumento de formalização dessa situação jurídica, é garantia de cidadania e exercício de direitos.
É evidente que o crescimento das serventias extrajudiciais e a ampliação de seus serviços demandam um alargamento de sua compreensão institucional, como agentes dotados de fé pública e participantes do Sistema de Justiça, para além das suas atribuições específicas.
Sem a pretensão de esgotar o tema, essas considerações reforçam a importância do avanço na disciplina da união estável, não apenas pela criação desses novos instrumentos, como também por trazê-la para o Registro Civil de Pessoas Naturais, dando efetividade ao art. 226 da CF/88 e concretizando, entre outros, os princípios constitucionais da cidadania e dignidade da pessoa humana.
Certamente, com a ampliação do serviços extrajudiciais, ganha mais a sociedade.