A responsabilidade civil dos hospitais, médicos e operadoras de plano de saúde: Uma abordagem histórica e dos principais temas que ensejam o dever de indenizar
A 13ª câmara Cível de MG condenou hospital e médico a indenizarem paciente por falha cirúrgica, destacando a necessidade de assessoria jurídica especializada em saúde.
segunda-feira, 21 de outubro de 2024
Atualizado às 10:02
Em decisão publicada no final de 2023, a 13ª câmara Cível do TJ/MG condenou um hospital e um médico a indenizarem uma paciente em R$ 175 mil, após falha em procedimento cirúrgico, que ocasionou danos morais, estéticos e materiais à paciente.
Em outros casos, mais recentes, o STJ condenou sociedades empresárias de saúde complementar a cobrir tratamentos não previstos em contratos e no rol da ANS, a congelar óvulos de paciente em tratamento de câncer e a indenizar por negativa cobertura de home care.
Estes poucos exemplos demonstram a necessidade de hospitais, médicos e operadoras de plano de saúde terem dentre seus prestadores de serviços uma assessoria jurídica com competências e conhecimentos específicos de um microssistema jurídico repleto de atos normativos que os responsabilizam pelas falhas no exercício de suas atividades empresárias.
A responsabilidade civil dos médicos remonta a história do próprio Direito, desde a passagem da vingança coletiva à vingança privada, consistente na retribuição do mal com o mal conforme princípio da lei de talião. O Código de Hamurabi foi a primeira codificação vigente na Mesopotâmia durante o primeiro império babilônico (1972-1950 a.C) e já previa punições aos curandeiros que, no exercício de seu mister, causassem danos aos pacientes. A lei de aquília, vigente em 572 d. C., obrigava o médico a indenizar a morte de um escravo submetido aos seus cuidados ou que agisse com negligência, imperícia ou imprudência. A lei cornélia estabelecia uma série de crimes relacionados com a prática da medicina e trazia as penas cominadas a cada infração. E, ainda, tanto na Grécia Antiga como na história egípcia, a responsabilidade civil dos médicos foi estabelecida de uma forma mais próxima ao que conhecemos nos dias atuais.
No ordenamento brasileiro, na era contemporânea, a CF/88 insere no topo do ordenamento jurídico o Direito à Saúde como um direito de todos, previsto no Art. 196, mas também eleva à condição de Direito fundamental a defesa do consumidor, prevista no Art. 5º, inciso XXXII, daquela Carta Magna.
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 5º. XXXII. O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;
Mais adiante, em 1990, o CDC atribuiu ao paciente a condição de consumidor final. O conflito de normas entre o referido código (lei ordinária), ato normativo primário de nosso ordenamento, com o inciso XX, do tópico I, do CEM, que trata dos princípios fundamentais e que exclui expressamente a relação de consumo da relação médico-paciente, ante a natureza personalíssima da atuação profissional daquele, foi resolvida pelo STJ com fundamento na hierarquia das normas. Portanto, paciente é para todos os fins consumidor final, restando caracterizada a relação de consumo.
Nos mesmos anos 90, concretizada a defesa do consumidor por meio da regulação deste microssistema normativo, a judicialização das questões relacionadas ao direito à saúde aumentou exponencialmente. Inicialmente para garantia de acesso aos tratamentos desenvolvidos para pacientes soropositivos. Posteriormente, para todos os pacientes e tratamentos disponíveis.
A concretização do direito à saúde e o dever do Estado em efetivá-lo veio a partir de uma decisão do STF que reconheceu que este direito é indissociável do direito à vida e que a norma constitucional programática não pode tornar-se em uma promessa inconsequente. O direito à vida não se basta em respirar, mas viver com qualidade, dignidade e com boa saúde inclusive.
Portanto, a norma constitucional que tutela o direito público subjetivo à saúde à coletividade (Art. 196) deve ser preservada e impõe aos três entes políticos (União, Estados e municípios) ações sociais e econômicas idôneas que visem a garantir este direito.
Trata-se de direito impostergável, ante à possibilidade de perda da vida e/ou agravamento de quadro, incidindo, sobre o poder público, a obrigação de tornar efetivas as prestações de saúde, incumbindo-lhe promover, em favor das pessoas e das comunidades, medidas - preventivas e de recuperação, que, fundadas em políticas públicas idôneas, tenham por finalidade viabilizar e dar concreção ao que prescreve, em seu art. 196, a CF/88
Em 2005, com a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos restou consagrado o Princípio Bioético da Autonomia (da Vontade) e Responsabilidade Individual, segundo o qual
Deve ser respeitada a autonomia dos indivíduos para tomar decisões, quando possam ser responsáveis por essas decisões e respeitem a autonomia dos demais. Devem ser tomadas medidas especiais para proteger direitos e interesses dos indivíduos não capazes de exercer autonomia.
Neste contexto, o paciente deixou a passiva posição de aceitar a submeter-se a algum tratamento prescrito pelo médico e passou a decidir sobre o tratamento ou a escolher dentre aqueles possíveis para seu estado de saúde. Logo, cumulado com o direito básico do consumidor à informação, é dever do profissional médico prestar todas as informações necessárias ao paciente para que este, de forma ativa, segundo sua autonomia, possa fazer a escolha de melhor tratamento, segundo suas próprias convicções e crenças. Qualquer falha neste processo, pode fazer emergir a responsabilidade civil do médico, hospitais com o qual mantém vínculo e, até mesmo, consequências a planos de saúde complementar.
As principais vertentes de judicialização destas questões são: saúde pública, saúde suplementar e relação médico-paciente.
No tocante à saúde pública, questões como prescrição de tratamento não previsto no sistema nacional de saúde, fornecimento de medicamentos não registrados ou experimentais, medicamentos de alto custo, acesso aos leitos em UTI e acesso à internação são temas recorrentes nas ações judiciais.
No campo da saúde complementar, as lides versam sobre reajuste de mensalidade de planos de saúde, assistência domiciliar (home care), tratamentos para autistas, acesso a tratamentos não previstos no rol da ANS, coberturas de tratamentos diversos, cirurgias bariátricas e plásticas posteriores, fornecimento de medicamentos, carências e doenças preexistentes.
Já nas questões decorrentes da relação médico-paciente as ações versam sobre imperícia, imprudência e negligência médicas, falta de dever informacional, publicidade médica e sigilo profissional, não conformidade com a LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados, cobranças indevidas de honorários e os processos éticos-profissionais junto aos Conselhos Regionais de Medicina.
Outros temas de bastante debate e com consequências jurídicas aos profissionais de saúde e nosocômios são a violência obstétrica, infecção hospitalar, recusa terapêutica pelo paciente, transfusão de sangue e a religião, reprodução humana e a terminalidade da vida.
Além dos elementos já citados, a judicialização das questões de saúde decorrem também do envelhecimento da população e consequentemente do maior uso do sistema de saúde, dos efeitos da pandemia de covid-19, da migração de clientes de planos privados para o SUS, a liberdade do médico em prescrever tratamentos com tecnologias recentes, mas cuja incorporação ao sistema de saúde ainda não ocorreu e a queda da qualidade na formação dos profissionais da saúde.
Em resumo, da complexidade desta relação médico-paciente e dos fatores pessoais e de convicção de cada player desta relação, seja antes do tratamento ou após a realização do procedimento, se houver falha decorrente de negligência, imprudência ou imperícia, é que pode insurgir a responsabilidade civil de médicos, dos hospitais a que estiver vinculado ou oferecendo sua estrutura, e dos planos de saúde, sendo a judicialização um fenômeno previsível e crescente na nossa sociedade, aumentando a influência do Judiciário nestas questões relacionadas à saúde, o que exige de todos os atores aqui já citados, a contratação de assessorias jurídicas com conhecimentos específicos e interdisciplinares (Direitos constitucional, civil, empresarial, consumidor, médico e diversas áreas médicas).
Sérgio Jacob Braga
Diretor de Assuntos e Processos Estratégicos da banca Ferreira e Chagas Advogados.