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Distribuição desproporcional de dividendos e outro olhar sobre o PLP 108/24

O PLP 108/24 propõe regras anti-abuso para o ITCMD, desafiando a definição de direitos privados e exigindo justificativas negociais para distribuições de lucros desproporcionais.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Atualizado em 17 de outubro de 2024 14:59

Introdução

A distribuição desproporcional de dividendos é o pagamento de lucros - conforme sua designação mais usual - feito de maneira assimétrica às participações dos sócios ou acionistas no capital social. Como regra, a participação dos sócios ou acionistas nos lucros da sociedade é diretamente proporcional às suas quotas ou ações. No entanto, a distribuição desproporcional é admitida por lei, desde que devidamente pactuada.

Nas sociedades limitadas, a permissão é conferida através da sua regência supletiva pelas normas da sociedade simples, que, através do art. 1.007 do CC, faculta a estipulação sobre a participação dos sócios nos lucros de maneira desproporcional às suas respectivas quotas. De outro lado, nas sociedades anônimas, embora o pagamento do dividendo tenha que observar o número de ações atribuídas ao seu titular na data do ato de sua declaração1, é possível a implementação da distribuição desproporcional mediante a emissão de ações preferenciais, geralmente pela previsão de prioridade na distribuição de dividendos fixos ou mínimos facultada pelo art. 17, inciso I, da lei 6.404/76, que dispõe sobre as sociedades por ações.

Nesse sentido, na esfera societária, não há maiores dificuldades na previsão da distribuição desproporcional de dividendos.

Ocorre, todavia, que a assimetria nem sempre é bem-vista sob o olhar arrecadatório do fisco. Isso porque, a rigor, a legislação do Imposto de Renda (art. 10, da lei 9.249/95) estabelece que são isentos os lucros e dividendos distribuídos por pessoas jurídicas previamente já tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado. Porém, há um movimento arrecadatório para desqualificar a distribuição desproporcional, feita sem a observância de critérios rígidos do conceito de dividendos regulares.

No Carf, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, órgão integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, que tem por finalidade julgar recursos que versem sobre a aplicação da legislação referente a tributos administrados pela Receita Federal do Brasil, os casos sobre a distribuição desproporcional são frequentes.

A despeito das recorrentes discussões no contencioso tributário, muito tem se falado sobre PLP 108/24, destinado à regulamentação da reforma tributária promovida pela EC 132/23, no ponto em que equipara à doação, para fins de incidência do ITCMD - Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos, os atos societários que resultem em benefícios desproporcionais para sócio ou acionista praticados por liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação, incluindo distribuição desproporcional de dividendos.

Embora, à primeira vista, possa-se afirmar que a regulamentação proposta visa ampliar o alcance da definição de doação com o objetivo meramente arrecadatório, em verdade, é preciso atentar que a doação também é isenta de Imposto de Renda (art. 6º, XVI, da lei 7.713/88).

Deste modo, afora a questionável constitucionalidade da medida, por atentar contra a Liberdade Econômica e a Livre Iniciativa, caso a lei federal venha a ser aprovada da forma proposta, haverá uma sensível limitação do âmbito de atuação fiscal da Receita Federal. As possibilidades serão as seguintes: (i) distribuição proporcional à participação societária isenta de IR; (ii) distribuição desproporcional regular também isenta de IR; e (iii) distribuição desproporcional irregular entre pessoas vinculadas será equiparada à doação, sujeita ao ITCMD, mas isenta de IR.

Portanto, o embate arrecadatório que envolve a distribuição desproporcional de dividendos, que hoje já existe entre isenção versus incidência de IR (com alíquotas de até 27,5%), passará a ser entre isenção total versus incidência de ITCMD (alíquota de até 8%). No mais, sairá de cena a Receita Federal, e passará a ter competência as secretarias estaduais de fazenda, que, ao nosso ver, não dispõem dos dados necessários para fiscalizar ativamente tais operações, já que as pessoas físicas não são obrigadas a prestar informações periódicas ao Fisco Estadual. Estes não têm acesso imediato aos dados da DAA (Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda) e terão grande dificuldade de monitorar eventuais "distribuições desproporcionais irregulares".

Indo além, entendemos que o PLP pode trazer alguma segurança jurídica aos empresários brasileiros. Ora, a distribuição desproporcional de lucros já não se encontra totalmente isenta de tributos e, conforme entendimento da Receita Federal e precedentes do Carf, o pagamento assimétrico demanda o cumprimento de requisitos determinados que, se não observados, poderá sujeitar a distribuição à incidência do imposto de renda e da contribuição previdenciária sobre a parcela dos lucros que exceder a proporção das participações societárias.

Desse modo, no intuito de contribuir para este importante debate, propomos, por meio destas breves notas, oferecer outra perspectiva sobre o e a proposta de equiparar a distribuição desproporcional de dividendos à doação, para fins de incidência do ITCMD. Em que pese a aparente natureza arrecadatória da regulamentação, é preciso considerar os potenciais ganhos em termos de segurança jurídica para os empresários brasileiros, já que a doação é isenta de Imposto de Renda.

A distribuição desproporcional e seus requisitos atuais

Como regra geral, a distribuição de lucros deve ser feita de maneira proporcional à quantidade de quotas ou ações que cada sócio ou acionista detém na sociedade. Contudo, a desproporcionalidade, sendo ela excepcional - apesar de habitual na prática -, exige o atendimento de certos requisitos para a sua implementação. A não observância desses requisitos, no caso concreto, pode acarretar consequências societárias e fiscais para a sociedade e seus sócios.

Cabe esclarecer que, nas sociedades anônimas, a distribuição de dividendos é sempre proporcional à quantidade de ações detidas pelo acionista. É como indica as disposições dos arts. 205 e 186, § 2º, da lei 6.404/76. Todavia, o pagamento desproporcional - como objetivo - poderá ser levado a cabo nas companhias através da emissão de ações preferenciais com a prioridade na distribuição de dividendos fixos ou mínimos, conforme disposição do art. 17, inciso I, da lei 6.404/76. Este instrumento é, por vezes, utilizado na prática societária para a implementação de regras específicas na distribuição de dividendos aos acionistas, resultando na desproporcionalidade no pagamento dos lucros sociais. Nesse contexto, os requisitos adiante relacionados - exceto pela estipulação expressa, uma vez que as vantagens das ações preferenciais demandam previsão estatutária2 - não se relacionam com as sociedades anônimas.

Quanto aos requisitos a serem observados, a sociedade apenas poderá lançar mão da distribuição desproporcional se possuir expressa previsão no seu contrato social para autorizar o seu pagamento de modo diverso às participações dos sócios, a teor do que dispõe o art. 1.007 do CC, que se encontra entre as disposições das sociedades simples. Assim, a distribuição desproporcional de lucros é permitida nas sociedades limitadas que se regem supletivamente pelas normas das sociedades simples3. Exige-se, portanto, previsão expressa no contrato social, requisito formal inerente ao próprio ato constitutivo, que deve dispor sobre a participação dos sócios nos lucros e nas perdas (arts 997, VII, e 1.054 do CC)4.

Em reforço ao que prescrevem os dispositivos do CC, a Receita Federal do Brasil, por meio da solução de consulta DISIT/ SRRF06 46/10, após instada a se manifestar sobre a incidência de imposto de renda e contribuições previdenciárias sobre a distribuição desproporcional, assinalou que estão abrangidos pela isenção os lucros distribuídos aos sócios de forma desproporcional à sua participação no capital social, desde que tal distribuição esteja devidamente estipulada pelas partes no contrato social, em conformidade com a legislação societária. Conforme esclarecido pela Receita Federal, a dita conformidade com a legislação societária se verifica pela observância dos seguintes preceitos e dispositivos do CC: (i) previsão sobre o modo de distribuição dos lucros no contrato social (arts 997, IV; 1.007; e 1.054), (ii) respeito ao direito essencial do sócio de participar dos lucros (art. 1.008), e (iii) regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade simples (art. 1.053).

No mesmo sentido, o Carf, no seu entendimento dominante5, também exige a previsão contratual para autorizar o pagamento de dividendos de forma assimétrica em relação ao capital social, como demonstram os seguintes julgados:

ASSUNTO: IRPF - IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA FÍSICA

Ano-calendário: 2011, 2012, 2013, 2014

DISTRIBUIÇÃO DE LUCROS DESPROPORCIONAL.

Somente admitida se estiver disposta no contrato social da empresa [...].

(Proc. 11516.723215/2016-84, Acórdão 2402-010.872, de 10/11/22).

ASSUNTO: IRPF - IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA FÍSICA

Ano-calendário: 2005

DISTRIBUIÇÃO DESPROPORCIONAL DE LUCROS.

A despeito da falta de vedação legal à distribuição desproporcional de lucro aos sócios, tal possibilidade deve constar do contrato social da empresa. No caso de expressa previsão contratual no sentido de que a distribuição dos lucros deve observar a proporcionalidade das cotas detidas por cada sócio, incide tributação sobre a parcela do lucro distribuída que exceder ao montante que seria devido ao sócio pela sua participação proporcional, sendo irrelevante a existência de ajustes particulares não averbados. [...].

(Proc. 10380.013096/2009-49, Acórdão 2201-008.959, de 15/07/21).

ASSUNTO: IRPF - IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA FÍSICA

Ano-calendário: 2008

DISTRIBUIÇÃO DE LUCROS DESPROPORCIONAL À PARTICIPAÇÃO SOCIETÁRIA. LIBERDADE DE PACTUAÇÃO. PERMISSÃO EXPRESSA NO CONTRATO SOCIAL.

Não há vedação legal no que se refere à distribuição desproporcional de lucros em relação à participação social, quando o contrato social for claro ao dispor sobre tal distribuição. Havendo contabilidade que cumpre com as formalidades intrínsecas e extrínsecas e sendo a apuração de lucro regular e contabilizada, não há que se falar em incidência de imposto de renda em face dos valores distribuídos como lucro. [...].

(Proc. 19515.723028/2013-70, Acórdão 2402-009.350, de 12/01/21).

A partir do exame dos precedentes do Carf, conclui-se ainda pela necessidade de cumprimento de outros requisitos, notadamente a existência de lucro apurado em demonstração de resultado e a manutenção de contabilidade regular pela sociedade, com o cumprimento de suas formalidades intrínsecas e extrínsecas. Nesse sentido:

DISTRIBUIÇÃO DE LUCROS DESPROPORCIONAL À PARTICIPAÇÃO SOCIETÁRIA. SOCIEDADE CIVIL DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PROFISSIONAIS. EXPRESSA PREVISÃO CONTRATUAL. POSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO LEGAL. DISCRIMINAÇÃO ENTRE PRÓ-LABORE E LUCRO. NÃO INCIDÊNCIA DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA.

Não há vedação legal no que se refere à distribuição desproporcional de lucros em relação à participação social, nas sociedades civis de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissões regulamentadas, quando o contrato social for claro ao dispor sobre tal distribuição. Havendo contabilidade que cumpre com as formalidades intrínsecas e extrínsecas e sendo a apuração de lucro regular e contabilizada, não há que se falar em incidência de contribuições previdenciárias em face dos valores distribuídos como lucro, com mais razão ainda quando houver

discriminação entre a remuneração decorrente do trabalho (pró-labore) e a proveniente do capital social (lucro) e tratar-se de resultado já apurado por meio de demonstração do resultado do exercício (DRE).

(Proc. 19515.721101/2014-50, Acórdão 2402-006.980, de 13/02/19).

Diante do exposto, com fundamento no entendimento da Receita Federal, firmado na solução de consulta DISIT/SRRF06 46/10, e nos precedentes do Carf, verifica-se que, caso não sejam observadas as condições para sua implementação, a distribuição desproporcional de dividendos pode estar sujeita à incidência de Imposto de Renda (e contribuição previdenciária), a título de remuneração de outra natureza, como pró-labore.

Assim, o PLP 108/24 não surpreende pela tributação em si, mas porque substitui a incidência de tributos federais mais onerosos (que podem chegara a 50%) pelo ITCMD, que é estadual e tem alíquota máxima de 8%. Além disso, a proposta introduz um novo requisito de validade para a distribuição desproporcional: a justificativa negocial passível de comprovação, que é um aspecto até então não explorado nos julgados do CARF.

Em qualquer caso, a distribuição desproporcional de dividendos permanecerá legítima e disponível às sociedades, de maneira isenta de tributos - ainda -, desde que atendidos os requisitos comentados. Por um raciocínio inverso, caso os sócios optem por realizar distribuições desprovidas de propósito negocial, quando se tratar de uma sociedade entre pessoas vinculadas, sob a ótica tributária, haverá uma equiparação à doação, também isenta de tributos federais (apenas sujeita ao ITCMD), e amparada agora por lei federal.

O PLP 108/24 e a exigência de justificativa negocial

O PLP 108/24 faz parte do conjunto normativo destinado a regulamentar a recente reforma tributária aprovada pela EC 132/23.

Embora seu principal objeto seja o IBS - Imposto sobre Bens e Serviços, o projeto também aborda a regulamentação do ITCMD. Nesse particular, o PLP 108/24 busca equiparar, para fins de incidência do ITCMD, os atos societários que resultem em benefícios desproporcionais para sócio ou acionista praticados por liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação, incluindo distribuição desproporcional de dividendos. A previsão está no art. 160, § 5º, inciso I, do PLP 108/24, conforme transcrito abaixo:

Art. 160. [...].

§ 5º. Consideram-se, ainda, como doações, para fins da incidência do ITCMD, em transmissões entre pessoas vinculadas:

I - os atos societários que resultem em benefícios desproporcionais para sócio ou acionista praticados por liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação, incluindo distribuição desproporcional de dividendos, cisão desproporcional e aumento ou redução de capital a preços diferenciados; e [...].

A doação, por definição legal, é o contrato pelo qual uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra6. As situações previstas no § 5º do art. 160 do PLP 108/24 se referem exclusivamente a operações entre pessoas vinculadas7, realizadas por liberalidade e que resultem em benefícios ou vantagens sem justificativa negocial comprovável. O objetivo do legislador, nesse ponto, é qualificar determinados atos e operações praticados entre pessoas vinculadas que, feitos por liberalidade e sem justificativa negocial, seriam, na verdade, doações. Abaixo, segue o trecho da exposição de motivos do PLP 108/24 que trata sobre o comentado § 5º:

O § 5º do art. 155 introduz normas específicas anti-abuso, com objetividade e previsibilidade para o contribuinte e para o ente tributante. Essas normas estão limitadas a transmissões entre pessoas vinculadas e versam sobre situações que, na realidade econômica, consistem em doações. As situações, entre pessoas vinculadas, de "atos societários que resultem em benefícios desproporcionais para sócio ou acionista praticados por liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação"; e "perdão de dívida por liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação" podem corresponder a negócios jurídicos praticados pelo contribuinte com qualificação jurídica atribuída por ele incorreta, correspondendo, na realidade, a verdadeiras doações.

Nesse aspecto, a medida tem legalidade e constitucionalidade bastante questionáveis, uma vez que altera "a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado [.] para definir ou limitar competências tributárias", em clara afronta ao art. 110 do Código Tributário Nacional8, além de exigir demonstração de "propósito negocial" para arranjos empresariais. Conforme prescreve a declaração de Direitos de Liberdade Econômica9, que detalha a proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, nos termos dos arts. 1º, IV, e 170, da CF/88, interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas.

Nesse sentido, não é permitido à lei tributária alterar um conceito de direito privado para ampliar a competência do ITCMD, e, sobretudo, adotando como premissa a ausência de boa-fé do contribuinte, ou seja, impondo a demonstração de um propósito negocial.

Importante rememorar que não há incidência tributária sobre a distribuição desproporcional de lucros em si. Como ocorre na sistemática atual - a partir do que foi exposto no último tópico -, se realizada sem a observância de critérios mínimos para a sua realização, a distribuição desproporcional de lucros pode estar sujeita a tributos. Além disso, independentemente da nova previsão, o fisco já possui a prerrogativa de desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo10. Dessa forma, o PLP 108/24 apresenta alterações substanciais em relação à prática atual: a exigência de uma justificativa negocial passível de comprovação e a incidência do ITCMD - tributo de competência dos estados - em substituição ao imposto de renda e à contribuição previdenciária, que são de competência da União.

Sobre a justificativa negocial passível de comprovação, realmente, o PLP 108/24 apresenta complexo requisito para demonstração diante do seu alto grau de subjetividade. Não existe uma definição uniforme para os conceitos de propósito ou justificativa negocial em operações societárias. Geralmente, o fisco pode entender pela ausência de propósito negocial quando não houver motivação além da redução da carga tributária. Assim, na distribuição desproporcional de dividendos, algum fundamento negocial ou econômico, passível de comprovação, deve anteceder sua aplicação.

Inclusive, apesar de a repercussão penal não ser o foco da presente análise, ao normalizar distribuições de lucro sem propósito negocial (bastando que se pague o ITCMD), abre-se um flanco perigoso para o combate à lavagem de dinheiro. Por exemplo, uma pessoa física poderá adquirir uma participação societária de baixo valor e sem histórico e, em pouco tempo, passar a receber enormes montas de dinheiro, a título de distribuição desproporcional de dividendos, mediante regular pagamento da tributação estadual sobre doações.

Voltando ao cerne societário, entendemos que as sociedades caracterizadas como de pessoas, nas quais prevalecem os atributos individuais dos sócios sobre sua contribuição no capital para o desenvolvimento do objeto social, como nas sociedades de prestação de serviços profissionais, terão melhor sorte para demonstrar, por meio de evidências plausíveis, a justificativa negocial para a realização da distribuição desproporcional dos lucros sociais. Nas sociedades de pessoas, as características pessoais dos sócios têm impacto direto na realização do objeto social. Dessa forma, a distribuição desproporcional pode ser estipulada como justa contrapartida pelos lucros exclusiva ou preponderantemente obtidos pela sociedade em razão das respectivas contribuições individuais dos sócios, como, por exemplo, a produtividade, o comprometimento e o empenho nos serviços prestados.

Por outro lado, nas sociedades de capital, em que a capacidade de contribuição ao capital (investimento) do sócio se sobrepõe às suas qualidades individuais, a justificativa negocial torna-se ainda mais complexa. Se, nessas sociedades, os atributos pessoais dos sócios são pouco relevantes e o foco reside na sua capacidade de investimento, a distribuição desproporcional de lucros carece de fundamento econômico, especialmente porque, nesses casos, o lucro distribuído tem como finalidade remunerar o capital investido pelo sócio. Não se justifica uma distribuição desigual de lucros se, por exemplo, as contribuições dos sócios no capital social forem idênticas.

Nesse contexto, passando a ser legalmente exigida uma justificativa negocial, o pagamento de lucros de maneira desproporcional às participações no capital social deve ser realizado a partir de algum fundamento ou critério econômico passível de demonstração objetiva. A sociedade que adotar a distribuição desproporcional de dividendos deve ter cautela na fixação de critérios objetivos, economicamente justificáveis, para afastar a incidência tributária proposta no PLP 108/24.

Conclusão

A distribuição desproporcional de lucros é faculdade conferida pela legislação societária como maneira de acomodar adequada participação dos sócios ou acionistas nos resultados da sociedade, a partir dos seus acertos privados sobre a partilha dos ganhos auferidos no desenvolvimento do objeto social. O pagamento de lucros, por proteção legal, (ainda) está isento de tributos. Atualmente, há a incidência de tributos federais na distribuição desproporcional de dividendos apenas se não forem atendidos certos requisitos, a saber: (i) previsão sobre o modo de distribuição dos lucros no contrato social, (ii) respeito ao direito essencial do sócio de participar dos lucros, (iii) regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade simples, (iv) existência de lucro apurado em demonstração de resultado; (v) manutenção de contabilidade regular pela sociedade, com o cumprimento de suas formalidades intrínsecas e extrínsecas.

Apesar da proposta legislativa, a distribuição desproporcional de lucros continuará sendo legítima e isenta de tributos, desde que, além do cumprimento das normas da legislação societária e princípios contábeis, não seja realizada por liberalidade entre as partes e sem uma justificativa negocial passível de comprovação. Embora a demonstração da justificativa negocial esteja sujeita a elementos subjetivos, a indicação legislativa de que uma operação pode ser tributada se certas condições não forem observadas proporciona previsibilidade ao contribuinte. Assim, ele pode decidir com clareza se deseja realizar determinadas ações, considerando os possíveis impactos tributários.

Deve-se destacar que, atualmente, a distribuição desproporcional feita em desacordo com as condições exigidas pelo fisco pode sofrer a incidência de imposto de renda e contribuição previdenciária, ambos de competência da União. Se aprovado o PLP 108/24, a incidência será do ITCMD, que é de competência dos estados. As diferentes regulamentações, aplicações e interpretações de cada unidade federativa sobre o mesmo objeto poderão ser consequências negativas da proposição. No entanto, se comparadas as alíquotas aplicáveis para cada tributo mencionado, o ITCMD, atualmente limitado a 8%, leva larga vantagem sobre a atual incidência do imposto de renda e contribuição previdenciária, que, somada, pode chegar perto de 50%, conforme o caso.

Cabe agora acompanhar com atenção os debates e o andamento do processo legislativo relativo ao PLP 108/24 até sua eventual aprovação. Caso seja aprovado, não se espera que a equiparação de atos e operações societárias à doação - para fins de incidência do ITCMD -, quando realizados entre partes vinculadas, sem justificativa econômica objetiva, altere significativamente as práticas atualmente consolidadas para a distribuição desproporcional de dividendos de maneira regular e isenta. O pagamento desproporcional de lucros, quando realizado em conformidade com os critérios estabelecidos, continuará sendo um mecanismo legítimo de partilha dos resultados da sociedade, conforme os acordos firmados entre sócios ou acionistas.

________

1 Lei 6.404/1976: "Art. 205. A companhia pagará o dividendo de ações nominativas à pessoa que, na data do ato de declaração do dividendo, estiver inscrita como proprietária ou usufrutuária da ação."

2 Lei 6.404/1976: "Art. 17. [...]. § 2º. Deverão constar do estatuto, com precisão e minúcia, outras preferências ou vantagens que sejam atribuídas aos acionistas sem direito a voto, ou com voto restrito, além das previstas neste artigo.

3 CC: "Art. 1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples."

4 "Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará: [...] VII - a participação de cada sócio nos lucros e nas perdas; [...]."; "Art. 1.054. O contrato mencionará, no que couber, as indicações do art. 997, e, se for o caso, a firma social."

5 No ponto, registra-se que o entendimento firmado no Acórdão 2102-01.496, de 24/08/11, dispensa a exigência da previsão contratual por entender que a legislação tributária não autoriza a tributação sobre a parcela dos lucros que exceder a distribuição proporcional, sendo a lei fiscal silente quanto à forma de distribuição.

6 Art. 538. Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.

7 Art. 160. [...]. § 6º Para fins do disposto no § 5º, considera-se pessoa vinculada:

  1. a pessoa física que for cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, até o terceiro grau, de outra pessoa física;
  2. a pessoa jurídica cujos diretores ou administradores forem cônjuges, companheiros ou parentes, consanguíneos ou afins, até o terceiro grau, de pessoa física; ou
  3. a pessoa jurídica da qual pessoa física for sócia, titular ou cotista.

8 Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

9 Conquanto a lei 13.874/2019, que institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, não seja aplicável diretamente ao direito tributário, vale o registro de que o que o PLP 108/24 faz é alterar a legislação civil e societária, equiparando à doação operações que foram pactuadas de forma diversa. Ademais, a Livre Iniciativa tem valor constitucional por si só.

10 Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos: [...].

Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.

Leonardo Maciel

Leonardo Maciel

Advogado e Sócio Gestor da área de Direito Empresarial de Queiroz Cavalcanti Advocacia. É Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e LL.M. em Direito Corporativo pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec).

Rodrigo Accioly

Rodrigo Accioly

Advogado e Sócio Gestor da área de Direito Tributário de Queiroz Cavalcanti Advocacia. É Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Pós-graduado em direito tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Também é Consultor Legislativo da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco.

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