MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Reflexões sobre ideologia e impessoalidade nas licitações públicas

Reflexões sobre ideologia e impessoalidade nas licitações públicas

Ao afirmar que não aprovaria a licitação por questões ideológicas, o ministro da defesa trouxe pontos de reflexão sobre a aplicação do princípio da impessoalidade nas contratações públicas.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Atualizado às 09:12

Em recente declaração 8/10/24, o ministro da defesa, José Múcio Monteiro Filho, afirmou que o Governo Federal não firmaria contrato com a empresa israelense Elbit Systems "por questões ideológicas" 1, mesmo tendo sido a vencedora do certame. Tal posicionamento despertou a atenção do mundo jurídico, ao levantar dúvidas sobre a aplicação dos princípios da impessoalidade e da isonomia nas licitações.

Referida "questão ideológica" serviu de pano de fundo para que o Ministério da Defesa elaborasse consulta no TCU - Tribunal de Contas da União (Cons. 021.681/2024-4) questionando a possibilidade de restringir ou impedir a participação em licitação de empresa com vínculo com países em situação de conflito armado, "ainda que tal restrição ou vedação acarrete consequências de tamanha monta que comprometam, severamente, o cumprimento das missões institucionais das Forças Armadas brasileiras e coloquem, em grave risco, a defesa nacional".

Em que pese reconhecer a inexistência de vedação legal, a consulta ressalta três hipóteses que poderiam causar a impossibilidade da contratação: "(i) imposição de embargos comerciais por organismos multilaterais de que o Brasil seja integrante; (ii) ruptura de relações diplomáticas e comerciais com o governo brasileiro; e (iii) decisões de cortes internacionais de justiça cujas deliberações o país tenha se obrigado a observar".

É certo que o objeto em questão - aquisição de 36 veículos blindados de combate obuseiros ao exército -, cujo valor final apresentado pela empresa israelense se aproxima de R$ 1 bilhão, por se tratar de licitação internacional, é regido pelo art. 52 da lei 14.133/21 2, e, consequentemente, pelas "diretrizes da política monetária e do comércio exterior" (caput).

Porém, ainda nesses casos, o princípio da impessoalidade se faz presente, ao vedar a previsão de "condições de habilitação, classificação e julgamento que constituam barreiras de acesso ao licitante estrangeiro" (art. 52, §6º da lei 14.133/21), bem como ao assegurar que "as propostas de todos os licitantes estarão sujeitas às mesmas regras e condições" (art. 52, §5º da lei 14.133/21).

Além da tradicional lei de licitações, a referida aquisição é regida também pela lei Federal 12.598/12 (que estabelece normas especiais para as compras, as contratações e o desenvolvimento de produtos e de sistemas de defesa); pelo decreto Federal 9.607/18 (que institui a Política Nacional de Exportação e Importação de Produtos de Defesa); e pelo decreto Federal 11.173/22 (que promulga o Tratado sobre o Comércio das Armas).

Nesse contexto, como resultado da consulta, o plenário do TCU lavrou o Acórdão 1918/24 - plenário3 afirmando enfaticamente que "não há restrição relativa a fornecedor que tenha sua sede em país em situação de conflito armado, seja quanto à sua participação em licitação, seja quanto à celebração ou a manutenção de contrato".

Referida decisão - paradigmática sobre o tema - revela uma necessária (e indiscutível) observância ao princípio da impessoalidade e isonomia entre os participantes, ainda que em situações extremas como o alegado comprometimento das missões institucionais das Forças Armadas brasileiras ou o grave risco para a defesa nacional.

Porém, considerando que o caso concreto não foi levado ao TCU (em razão da vedação prevista no regimento interno do TCU, art. 265 4), surge o questionamento se eventual aquisição de material bélico pela empresa Israelense, posterior ao governo israelense declarar que o presidente da república seria persona non grata, estaria, de fato, pondo em risco a segurança nacional e, consequentemente, todo o Estado brasileiro.

Indo além, é importante ponderar e identificar se a legislação de regência já contempla, ainda que de forma implícita, valores universais como a paz mundial. Além de impactar questões estratégicas, esses valores podem influenciar nas contratações internacionais (art. 52, lei 14.133/21) que, como um castelo de cartas, interferem em diversas relações comerciais no cenário global, afetando a economia nacional e, em última instância, o bem-estar da população brasileira.

A exemplo disso, está a recentíssima 10/11 intimação do Departamento de Justiça Norte Americano à empresa sueca Saab para apurar suposto caso de corrupção na venda de 36 caças do modelo Gripen ao Brasil possui relação e se apresenta como potencial fator externo de intervenção na condução do processo dos obuseiros5.

Ainda, há de se questionar se o Governo Federal, em razão do suposto risco internacional confessado pelo ministro da defesa, poderia revogar todo o certame considerando "os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas" inerentes ao cargo, previstas na lei de introdução às normas do direito brasileiro (art. 22, decreto-lei 4.657/42).

Por último, deve-se refletir se mesmo diante de todo o cenário apresentado (risco internacional vs. isonomia entre os participantes), a eventual revogação do certame, com fundamento no parágrafo acima, resultaria na fragilidade irreparável de toda e qualquer licitação internacional futura, uma vez que o risco internacional, a depender do licitante vencedor, seria sobreposto ao próprio resultado do processo licitatório.

Dentre todos os questionamentos - sem respostas, até então - é certo que as contratações públicas, sejam elas quais forem, não devem servir à posicionamentos político-ideológicos de determinado chefe do Executivo, conforme confessado pelo ministro, sob pena de violação aos princípios elencados no art. 37 da CF/88 e no art. 5º da lei 14.133/21.

__________

1 Declaração foi dada durante a Cerimônia de assinatura do Acordo de Cooperação entre o Ministério da Defesa e a Confederação Nacional de Indústria. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/10/09/mucio-ideologia-governo-compra-armas-defesa.htm. Acessada em 10/10/2024 às 11:19.

2 Art. 52. Nas licitações de âmbito internacional, o edital deverá ajustar-se às diretrizes da política monetária e do comércio exterior e atender às exigências dos órgãos competentes.

3 https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/documento/acordao completo/*/NUMACORDAO%253A1918%2520ANOACORDAO%253A2024%2520COLEGIADO%253A%2522Plen%25C3%25A1rio%2522/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/0

4 Art. 265. O relator ou o Tribunal não conhecerá de consulta que não atenda aos requisitos do artigo anterior ou verse apenas sobre caso concreto, devendo o processo ser arquivado após comunicação ao consulente.

5 https://g1.globo.com/google/amp/economia/noticia/2024/10/10/sueca-saab-diz-ter-sido-intimada-nos-eua-a-fornecer-informacoes-sobre-venda-de-cacas-ao-brasil.ghtml. Acessada em 14/10/2024 às 10:13.

Tiago Miranda Neves Baptista

VIP Tiago Miranda Neves Baptista

Advogado. Pós-graduado em Direito Administrativo pelo IDP.

Eduardo Augusto S. S. Silva

Eduardo Augusto S. S. Silva

Advogado / Assessor Jurídico em matéria de Licitações e Contratos Administrativos. Ex-Presidente da Comissão Permanente de Licitações da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca