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PEC 28/24: A "notwithstanding clause" brasileira

A PEC 28/24 introduz na constitucional regra de suspensão pelo Congresso de decisões do STF. Similar ao que existe na Constituição do Canadá.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Atualizado às 13:20

1. A PEC 28/24: Apresentação

A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou no dia 9/9/24 a continuidade da tramitação da Proposta de Emenda Constitucional 28/24, doravante PEC 28. A proposição acrescenta o art. 97-A e §§4º e 5º da CF/88, para estabelecer o julgamento de referendo de liminares pelo colegiado de Tribunal, bem como criar hipótese de sustação parlamentar de decisão do STF.1

Ficarei adstrito aos §§ 4º e 5º do art. 02 acima transcrito que, nada mais nada menos, atrai para o sistema jurídico brasileiro uma disposição constitucional que já existe no direito comparado, como é o caso da Constituição do Canadá. A Constituição Canadense prevê a notwithstanding clause,2 "cláusula não obstante". Por ela o parlamento ou a legislatura de uma província pode declarar expressamente numa lei que uma regra legal deverá vigorar não obstante tenha ocorrido alguma decisão judicial a seu respeito, especialmente pela Corte Suprema do Canadá.

O prazo dado na notwithstanding clause canadense, inclusive, é bem maior que o previsto na PEC 28. Enquanto a PEC 28 confere um prazo de dois anos, prorrogáveis, a constituição canadense refere a cinco anos, também prorrogáveis.

A pretensão está bem próxima. O Congresso Nacional brasileiro nem mesmo foi adiante, não pretendendo o override legislativo, ou seja, a superação total da decisão judicial por uma decisão do Parlamento. O que o direito comparado igualmente debate, não sendo exclusividade brasileira.

E não foi apenas o prazo de duração da suspensão que foi mais maleável que o canadense. A PEC 28 ainda autoriza o STF "suspender a suspensão legislativa", desde que por voto de 4/5 dos ministros. Sinceramente, era melhor não constar essa previsão. Explicarei rapidamente adiante.

Portanto, dizer que a PEC 28 afronta a separação de poderes, ou que não é democrática, seria desconhecer que em países democráticos, como o Canadá, essa prática já ocorre há décadas. Aliás, com critérios até mais gravosos que os da PEC 28. Este tipo de argumento ad terrorem virá, certamente, mas, é totalmente vazio de sentido.

2. A PEC 28/24: Possibilidade de ir adiante

De fato, se analisado o caso canadense, a PEC 28 poderia inclusive ir adiante. Por exemplo:

  1. Substituir o prazo máximo de dois anos, podendo ser até cinco anos, mantida a possibilidade de prorrogação;
  2. Suprimir a possibilidade de revisão judicial do ato do Parlamento. Essa revisão desnaturaria a natureza da cláusula de suspensão: uma decisão de índole política. Seria convertida numa decisão de índole meramente jurídica, portanto, sindicável judicialmente. Já vimos a diferença que isto causa na perda de competências legítimas dos Poderes Executivo e Legislativo. O ideal seria - com o perdão do exagero - que a PEC 28 inserisse textualmente que se trata de "decisão de natura política", ao invés de prever a condição de revisão judicial.

3. Iniciar o debate para futuro "Override" legislativo

A ideia de um poder - ou, mais precisamente, uma função - do Estado ter a competência para interferir em outro, de uma ou outra forma, não é desconhecida. Em artigo anterior3 pudemos avaliar ponto semelhante quando tratamos da reforma judiciária em Israel. O Legislativo, em todo o mundo democrático, detém um poder que pode ser chamado, para este artigo, de "substituição" ou "override". O Poder Executivo também tem capacidade semelhante, embora diferente em extensão. É preciso atentar que cada país comporta sua peculiaridade.

Em linhas gerais, estamos falando do poder de "veto": quando o parlamento aprova uma lei, o Poder Executivo pode "vetar" a lei e "substituir" a decisão do parlamento. Novamente: cada sistema jurídico prevê as possibilidades de veto e a extensão que o "veto" pode ter. Há países, por exemplo, que permitem vetos parciais, apenas para "trechos" de artigos ou alguma palavra. Em outros, como o Brasil, o veto deve alcançar o dispositivo por completo. Há, portanto, extensões diferentes para um poder assemelhado.

Dependendo de cada ordenamento jurídico, o Poder Legislativo também tem um outro poder de "substituição", quando faz a "análise do veto" do Poder Executivo. Ele pode, inclusive, derrubar o veto. Isso seria a"revogação" ou"revisão" do veto do Executivo. Então, voltaria a vontade parlamentar original.

A questão - nos dias atuais - está em reconhecer que o Poder Judiciário já não mais atua com a chamada virtude passiva da jurisdição. Não apenas por não ser simples "boca da lei" - não se espera que o juiz seja um ser inerte e sem alma -, mas por estar verdadeiramente substituindo o legislador.

O fluxo e o contrafluxo de interesses na arena política são naturais. Quando o Judiciário assume o papel de intervir nas políticas públicas, anulando leis e interpretando-as de forma a alterar genuinamente o que o Parlamento decidiu, ele não pode ficar isento desse fluxo de interesses opostos. É preciso estabelecer, logicamente, a distinção entre a "inexistência de controle" e os outros extremos: um controle excessivo e um controle demagógico, capazes de aniquilar a independência judicial, sem agregar accountability nenhuma.

Hoje, porém, o gigantismo do Poder Judiciário não tem paralelo na história do mundo. Assim como os juristas construíram academicamente poderes judiciais que seriam impensáveis há 50 anos, a mesma academia, hoje, deve se preocupar em verificar o sistema proporcional de freios e contrapesos para poderes de tamanha importância.

Portanto, qualquer ideia de um "Poder" buscar a harmonização em casos de excessos de outro não é de todo estranha. Deve ser feita cum grano salis, para que o remédio não se converta em veneno pior que a enfermidade.

3.1. O Direito comparado

O Direito Constitucional comparado reconhece formas de suspensão de decisões judiciais das Cortes Constitucionais - ou suas equivalentes - como, por exemplo, a notwithstanding clause da Constituição do Canadá como já referido anteriormente. O uso da notwithstanding clause já foi bastante verificado como pode-se ver no estudo publicado em 2005 pelo professor Nicholas Stephanopoulos.4

No estudo o autor se pergunta qual a melhor solução para o controle jurisdicional? A maioria dos acadêmicos partiram do princípio de que existem apenas duas alternativas importantes: a supremacia judicial e a soberania parlamentar. A academia, refere Stephanopoulos, tem negligenciado o espaço conceitual que existe entre estes dois pólos, em particular o "inovador modelo de anulação legislativa". Stephanopoulos avaliou as experiências de dois países que adoptaram o override: Canadá e Israel.

Stephanopoulos ao mesmo tempo que confia no uso do controle legislativo das decisões de Cortes Constitucionais - especialmente contra excessos do legislativo, ou violações contra minorias - também reconhece suas vantagens e possibilidade para quando as Cortes - a pretexto de uma "atuação contra majoritária" - apenas efetivamente subtraem competência política legítima do Poder Legislativo. Por isso não é possível demonizar o override legislativo, de forma a priori.

O autor Jeb Barnes5 faz uma a abordagem com algumas conclusões interessantes. Ao aprovar overrides legislativos, o Congresso tende a entrar em áreas em que os juízes tiveram dificuldade em chegar a consenso. A intervenção legislativa conduz geralmente a um maior acordo. Barnes encontra poucas provas de que o processo de anulação legislativa (override) seja capturado por um conjunto restrito de interesses. O processo está quase sempre aberto a pontos de vista concorrentes, uma função melhor exercitada no juízo político do legislativo, podemos dizer, do que no hermetismo judicial.

Nessas linhas gerais é preciso verificar que - se bem adotado e com cautelas para que não se transforme em um abuso - o override legislativo não significa violação de qualquer prerrogativa inalienável do Poder Judiciário. Muito menos quando o Poder Judiciário passa a interferir em juízos políticos que, historicamente, não são inerentes à sua intervenção.

Citando a cultura popular - em especial a história em quadrinhos Homem Aranha - a juíza da Suprema Corte Americana Elena Kagan vaticinou:6"O que podemos decidir, podemos anular. Mas o stare decisis ensina-nos que devemos exercer essa autoridade com parcimónia. Conforme S. Lee e S. Ditko, Amazing Fantasy No. 15: "Spider-Man," p. 13 (1962) ["Neste mundo, a um grande poder deve corresponder também uma grande responsabilidade")."

Com as cautelas para que a proposta não se converta no que a doutrina denomina abusive constitutional borrowing - ou, o empréstimo abusivo de modelos constitucionais para fins pretensamente autoritários - a pretensão da PEC 28 parece ter os contornos típicos do Brasil, que é um país cujo modelo de democracia é liberal, como se nota do art. 1º da CF, quando assevera em seu parágrafo único: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."

O que pretende a PEC 28? Que a democracia liberal, baseada no voto de cada brasileiro ou brasileira, não seja violada por argumentos outros, estes sim, importadores de doutrinas autoritárias, travestidas de lindas nomenclaturas, como "atuação contra majoritária" ou "democracia militante", cuja aplicação abusiva - esta sim - negará os valores do art. 1º da CF/88.

__________

1 Assim ficariam os dispositivos constitucionais acaso aprovada a PEC em sua redação inicia

"Art. 97-A Compete aos relatores de processos em Tribunais submeter imediatamente ao órgão colegiado competente, para referendo, medidas cautelares de natureza cível ou penal necessárias à proteção de direito suscetível de grave dano de incerta reparação, ou ainda destinadas a garantir a eficácia da ulterior decisão da causa.

Parágrafo único. A medida cautelar concedida nos termos do caput produzirá efeitos imediatos e será automaticamente inserida na pauta da sessão subsequente, para julgamento do referendo pelo respectivo colegiado. (NR 

Art. 102

§ 4º Nas decisões do Supremo Tribunal Federal, no exercício da jurisdição constitucional em caráter concreto ou abstrato, se o Congresso Nacional considerar que a decisão exorbita do adequado exercício da função jurisdicional e inova o ordenamento jurídico como norma geral e abstrata, poderá sustar os seus efeitos pelo voto de dois terços dos membros de cada uma de suas Casas Legislativas, pelo prazo de dois anos, prorrogável uma única vez por igual período.

§ 5º Em caso de utilização da prerrogativa prevista no § 4º, o Supremo Tribunal Federal somente poderá manter a sua decisão pelo voto de quatro quintos de seus membros. (NR

2 Vide Constituição canadense, tradução livre nossa

(1) O Parlamento ou a legislatura de uma província pode declarar expressamente numa Lei do Parlamento ou da legislatura, conforme o caso, que a Lei ou uma disposição da mesma deverá vigorar não obstante uma disposição incluída na secção 2 ou nas secções 7 a 15 desta Carta.

(2) Uma lei ou disposição de uma lei em relação à qual uma declaração feita nos termos desta seção esteja em vigor terá a mesma operação que teria se não fosse a disposição desta Carta referida na declaração.

(3) Uma declaração feita nos termos da subseção (1) deixará de produzir efeitos cinco anos após sua entrada em vigor ou em data anterior, conforme especificado na declaração.

(4) O Parlamento ou a legislatura de uma província podem promulgar novamente uma declaração feita ao abrigo da subsecção (1).

(5) A subseção (3) se aplica a uma reconstituição feita nos termos da subseção (4).

3 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Reforma Judicial em Israel: um risco ou um farol para o mundo? Congresso em Foco. 02.03.2023. Acessível em https://congressoemfoco.uol.com.br/blogs-e-opiniao/forum/reforma-judicial-em-israel-um-risco-ou-um-farol-para-o-mundo/

4 Nicholas Stephanopoulos, "The Case for the Legislative Override," 10 UCLA Journal of International Law and Foreign Affairs 250 (2005).

5 Jeb Barnes. Overruled? Legislative Overrides, Pluralism, and Contemporary Court- Congress Relations Stanford, CA, Stanford University Press, 2004. 224 pp.

6 https://www.scotusblog.com/case-files/cases/kimble-v-marvel-enterprises-inc/. No original: What we can decide, we can undecide. But stare decisis teaches that we should exercise that authority sparingly. Cf. S. Lee and S. Ditko, Amazing Fantasy No. 15: "Spider-Man," p. 13 (1962) ("[I]n this world, with great power there must also come-great responsibility").

Luiz Henrique Antunes Alochio

VIP Luiz Henrique Antunes Alochio

Doutor em Direito (Uerj). Mestre em Direito Tributário (UCAM). Visiting Scholar - Florida State University (2022/23). Advogado (ES). Conselheiro Federal OAB (2019/2022). Redes sociais: @luiz_alochio

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