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A competência da Anvisa para regulamentar a publicidade

Vidal Serrano Junior e Isabella Vieira Machado Henriques

Muito se tem discutido sobre as propostas de regulamento da Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária - a respeito da restrição de publicidades de bebidas alcoólicas e de cervejas para o público em geral e de bebidas com baixo teor nutricional e de alimentos não saudáveis dirigidas para crianças.

terça-feira, 10 de julho de 2007

Atualizado em 9 de julho de 2007 11:44


A competência da Anvisa para regulamentar a publicidade

Vidal Serrano Junior*

Isabella Vieira Machado Henriques**

Muito se tem discutido sobre as propostas de regulamento da Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária - a respeito da restrição de publicidades de bebidas alcoólicas e de cervejas para o público em geral e de bebidas com baixo teor nutricional e de alimentos não saudáveis dirigidas para crianças.

Os veículos de comunicação, as empresas e as agências publicitárias, de um modo geral, têm dito, exaustivamente, que tais publicidades, como toda e qualquer publicidade comercial, consubstanciariam manifestações do direito de informação e do direito de expressão. Por conta disso, impor restrições às manifestações publicitárias seria, em última análise, um atentado à democracia, considerando-se a necessidade de subsistência da liberdade de opinião e expressão para a existência de um sistema democrático.

Ocorre que, contrariamente a esse entendimento, a publicidade é ato puramente comercial e não manifestação do pensamento, criação, expressão e/ou informação. O termo "liberdade de expressão comercial", que vem sendo repetidamente utilizado pelos defensores e representantes do mercado publicitário, simplesmente não faz qualquer sentido. É a clara tentativa de se unir conceitos distintos na sua essência.

A publicidade, a seu turno, pode ser definida como função de venda, ou seja, de prática comercial, que se vale dos meios de comunicação social de massa para difundir benefícios e vantagens de determinado produto ou serviço, cujo consumo se pretende incentivar, perante o respectivo público consumidor, potencial ou efetivo.

E é justamente por isso que a correta ambientação da publicidade na Constituição Federal (clique aqui) é na ordem econômica.

Não é possível considerar a publicidade como expressão de um direito fundamental da Constituição Federal, como é a livre manifestação do pensamento. Os direitos fundamentais são aqueles considerados como direitos humanos, ou seja, de proteção do ser humano, em suas diversas dimensões. Mesmo porque o ser humano é o núcleo essencial da Constituição Federal.

Por serem fundamentais, esses direitos devem ser sempre interpretados de forma a serem protegidos e garantidos. Isso quer dizer que, apesar de a Constituição Federal também disciplinar sobre a ordem econômica, a tutela das liberdades e o direito à saúde, entre outras garantias fundamentais, devem ter prioridade absoluta e ser objeto de proteção integral por parte do Estado e da sociedade.

Não há dúvidas de que, a princípio, a publicidade é lícita, faz parte da livre iniciativa e da livre concorrência - princípios básicos da ordem econômica -, porém, quando for contrária às garantias e aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal - tais como, direito à saúde, direito à educação, direito à informação adequada, direito à proteção integral da infância, direito à prioridade absoluta da infância e da juventude - deve ser repudiada.

Toda e qualquer publicidade que incite seus destinatários a um consumo inadequado para a sua saúde, como é o caso das publicidades de bebidas alcoólicas, cervejas, bebidas com baixo teor nutricional e alimentos com alto teor de sódio, açúcar e gorduras, será considerada inconstitucional - sem que isso signifique 'censura' ou qualquer outra forma de atentado ao Estado de direito democrático.

Mas não é só. Os defensores do mercado publicitário, além de suscitarem a suposta violação à liberdade constitucional de manifestação e expressão do pensamento, também tentam barrar as novas propostas de regulamento técnico da Anvisa mediante o argumento de que haveria violação do disposto constitucional que prevê a competência privativa da União para legislar a respeito da propaganda comercial.

Entendem, assim, que, qualquer limitação à atuação do mercado publicitário, além de constituir-se violação aos direitos e garantias fundamentais, somente poderia ser implementada por lei federal vinda do Poder Legislativo, mas nunca por uma agência regulatória do Poder Executivo.

No entanto, também com relação a esse argumento, sem razão o mercado publicitário e seus defensores. De fato, não se faz necessária a elaboração de novas normas pelo Poder Legislativo para regular a matéria, posto que já existe legislação federal que regulamenta a publicidade no país.

O Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/90 (clique aqui), com efeito, possui dispositivos específicos que regulamentam a publicidade e prevêem a proteção do consumidor que a ela está exposto, ressalvando-se, a propósito, que será considerado consumidor, para os fins dessa lei federal, qualquer pessoa que tiver sido exposta à mensagem publicitária, ainda que não tenha adquirido o produto e/ou serviço anunciado.

Por meio do Código de Defesa do Consumidor (clique aqui) foi instituído o princípio da veracidade, pelo qual a publicidade tem obrigação de informar adequadamente o consumidor, sendo enganosa a publicidade que o induz a erro, ainda que por omissão de informação essencial.

Também definiu que será abusiva a publicidade considerada antiética e/ou for contrária aos valores da sociedade. E dentre os exemplos de abusividade que o Código de Defesa do Consumidor enumerou está a publicidade que se vale da deficiência de julgamento e experiência da criança e do adolescente, assim como a publicidade que induz o consumidor a se comportar de maneira prejudicial à sua saúde.

Assim, pela compreensão do texto constitucional e da norma federal mencionada, pode-se concluir que todas as publicidades que se pretende sejam expurgadas por meio dos novos regulamentos técnicos que a Anvisa quer implementar já são consideradas inconstitucionais e ilegais.

Aliás, fazer ou promover publicidade enganosa e/ou publicidade abusiva é conduta tipificada, nos termos do próprio Código de Defesa do Consumidor, como crime e passível de ser punida com pena de detenção.

Por tudo isso, é bem certo que a Anvisa está apenas e tão somente trabalhando para dar efetividade às normas constitucionais e legais. Efetividade tal que deriva da intensidade com que a norma jurídica é observada na realidade social.

A esse respeito, vale ser lembrado que a Anvisa é um órgão que tem como missão "proteger e promover a saúde da população garantindo a segurança sanitária de produtos e serviços e participando da construção de seu acesso". Sua maior finalidade é promover o bem-estar social no país.

Sua atribuição para criar regulamentos, controlar e fiscalizar a publicidade de produtos sob o regime da vigilância sanitária é decorrente da Lei nº 9.782/99 (clique aqui), que define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, norma essa em absoluta consonância com os dispositivos constitucionais e as normas infraconstitucionais que tratam dos direitos do consumidor, da criança e do adolescente e do sistema nacional de segurança alimentar e nutricional.

Como no Brasil não há uma alta autoridade para regular a comunicação, contrariamente ao que ocorre em outros países democráticos, assim como a velocidade das mensagens publicitárias é tamanha, atualmente, constata-se, na prática, a absoluta falta de aplicação do que está na lei.

Os regulamentos técnicos da Anvisa que se quer fazer valer são, pois, plenamente legais e funcionais, na medida em que a Constituição Federal e a legislação pátria infraconstitucional são extremamente protetivas. A grande virtude desses regulamentos é vir a transformarem-se em instrumentos importantíssimos de efetividade, que comprometerão um conjunto de agentes públicos com a aplicação da lei, bem como propiciarão uma maior mobilização da sociedade civil em torno do tema e em busca da efetivação do que já existe em termos legais.

E mais. A importância dessa questão, por tudo o que foi dito, diz respeito à preservação dos direitos e garantias fundamentais no país. A regulamentação da publicidade é tão cara ao ordenamento porquanto além de vender produtos e serviços tem impacto cultural, forma valores e referências sociais.

Ora, o elemento essencial da publicidade é a persuasão. E, justamente, em razão do seu intuito puramente comercial a mensagem publicitária é elaborada para atingir o emocional daquele a quem se dirige, na medida em que é notório que o convencimento acontece de forma muito mais bem sucedida quando o público consumidor alvo da mensagem publicitária é guiado pela emoção e não pela razão.

E quando se fala da publicidade que atinge o público infanto-juvenil todas essas questões tornam-se ainda mais sérias. Por isso a publicidade que anuncia bebidas de baixo teor nutricional e alimentos com alto teor de sódio, açúcar, gordura saturada e gordura trans para crianças, fomentando a obesidade infantil e a desnutrição, não pode ser tolerada.

Nos termos da Constituição Federal, é dever não só da família, mas também da sociedade e do Estado assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à dignidade, ao respeito, dentre outros direitos enumerados pela Carta Magna. Além disso, é igualmente dever de tais instituições colocar as crianças e os adolescentes a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

No mesmo sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece os direitos dessas pessoas em desenvolvimento e a necessidade de respeito à sua integridade, inclusive com relação à sua saúde e aos seus valores.

A Constituição Federal estabelece, ainda, que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, o qual deverá garantir por meio de políticas sociais e econômicas a redução do risco de doença e de outros agravos.

A propósito, vale mencionar que o Brasil hoje tem 48,8 milhões de pessoas com idade até 14 anos1. As crianças brasileiras possuem, em média, R$28,60 de mesada, o que, no universo mencionado, significa R$69.237.069,00, a cada mês2, sendo que o mercado infantil, no ano de 2004, movimentou R$5 bilhões com consumo de fast food3 e em 2006 o mercado publicitário infantil investiu, só em produtos infantis, R$209,7milhões4.

E o mais grave, em recente pesquisa, ao serem perguntadas em que mais gastam seu dinheiro, as guloseimas foram citadas por 73% das crianças entrevistadas, os salgadinhos por 47%, os sorvetes por 44%, as bebidas por 29%, ou seja, alimentos e bebidas possuem muito mais apelo até mesmo do que brinquedos e roupas5.

Esses dados são ainda mais assustadores se for lembrado que no Brasil 30% das crianças estão com sobrepeso e aproximadamente 15% já são consideradas obesas6.

Da mesma forma, também a publicidade que incentiva o consumo de bebidas alcoólicas e de cervejas é tão danosa à sociedade.

Se a publicidade não aumentasse o consumo, não seria tão necessária ao mercado publicitário milionário dos grandes fabricantes, distribuidores e/ou representantes nacionais.

A alegação de que o que falta no país é educação e, portanto, novas regras de restrição à publicidade não seriam a solução, é parte do discurso daqueles que não querem ver o desenvolvimento da sociedade brasileira. A publicidade de bebidas alcoólicas e de cervejas tem como objetivo vender, persuadir e aumentar o consumo desses produtos.

Obviamente não se pede que a publicidade eduque - o que seria ótimo, diga-se de passagem - mas tem a obrigação legal de não atacar valores da sociedade e de não promover a deseducação, principalmente de crianças e adolescentes.

O consumo de álcool é hoje um dos mais graves problemas de saúde e segurança pública no Brasil: (i) é responsável por mais de 10% de todos os casos de adoecimento e morte; (ii) provoca 60% dos acidentes de trânsito; (iii) é detectado em 70% dos laudos cadavéricos de mortes violentas; (iv) transforma 18 milhões de brasileiros em dependentes; (v) leva 65% dos estudantes de 1º e 2º graus à ingestão precoce, sendo que a metade deles começa a beber entre 10 e 12 anos; (vi) está ligado ao abandono de crianças, aos homicídios, à delinqüência, à violência doméstica, aos abusos sexuais, a acidentes e mortes prematuras; (vii) causa intoxicações agudas, coma alcoólico, pancreatite, cirrose hepática, câncer em vários órgãos, hipertensão arterial, doenças do coração, acidentes vascular cerebral, má formação do feto, doenças sexualmente transmissíveis, aids e gravidez indesejada; e (viii) impõe prejuízos incalculáveis, atendimentos em prontos-socorros, internações psiquiátricas, faltas no trabalho, além dos custos humanos com a diminuição da qualidade de vida dos usuários e de seus familiares7.

Daí porque a regulação da publicidade comercial e do mercado publicitário é absolutamente compatível com o estado de direito democrático. Aliás, é imprescindível para que sejam assegurados os direitos de todos os consumidores, considerados, por lei, a parte vulnerável nas relações de consumo. Principalmente quando se fala na publicidade que afeta o emocional do público infanto-juvenil, que mais do que vulnerável é naturalmente hipossuficiente.

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1 IBGE, PNAD, 2005.

2 Nickelodeon Business Solution Research, ano 2007 - pesquisa intitulada '10 Segredos para falar com as crianças (que você esqueceu porque cresceu).

3 Nickelodeon Business Solution Research, ano 2007 - pesquisa intitulada '10 Segredos para falar com as crianças (que você esqueceu porque cresceu).

4 Nickelodeon Business Solution Research, ano 2007 - pesquisa intitulada '10 Segredos para falar com as crianças (que você esqueceu porque cresceu).

5 Pesquisa CN.com.Br citando Estudo Kiddos, 2004, 2005/2006, Brasil, Crianças 6 a 11 anos

6 https://cvirtual-anvisa.bireme.br/tiki-read_article.php?articleId=468

7 https://www.propagandasembebida.org.br/manifesto/manifesto.doc

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*Promotor de justiça do Ministério Público de São Paulo, professor titular de direito constitucional da PUC/SP e membro do conselho diretor do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor)

**Advogada, mestre em direito das relações sociais - direitos difusos e coletivos - pela PUC/SP, e coordenadora do projeto Criança e Consumo do Instituto Alana






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