Saneamento básico no Brasil: Caminho para a universalização sustentável?
O saneamento é um direito essencial, reconhecido pela ONU. No Brasil, enfrentamos desafios de desigualdade e regulação. O Novo Marco Legal busca universalizar o acesso até 2033.
terça-feira, 8 de outubro de 2024
Atualizado às 09:44
Introdução
O saneamento básico constitui um direito humano essencial, reconhecido internacionalmente pela ONU desde 2010, figurando como um dos pilares centrais para a promoção da dignidade humana e da sustentabilidade ambiental (UNW-DPAC, 2010). O Brasil, contudo, ainda se encontra em um estágio de desigualdade acentuada no acesso a esses serviços, com desafios que decorrem de estruturas regulatórias fragmentadas e insuficiência de investimentos. A lei 14.026/20, conhecida como o Novo Marco Legal do Saneamento, emerge como um marco regulatório ambicioso, estabelecendo metas que visam à universalização até 2033. O presente artigo examina o histórico do saneamento no Brasil, bem como os principais desafios e as perspectivas futuras em face das mudanças jurídicas e institucionais trazidas por este novo arcabouço normativo.
Histórico do saneamento básico no Brasil
A trajetória do saneamento básico no Brasil é marcada por tentativas fragmentadas de planejamento e execução, iniciadas de forma embrionária no período colonial, com soluções paliativas e improvisadas (Rezende; Heller, 2009). O advento do PLANASA - Plano Nacional de Saneamento, em 1973, representou o primeiro esforço coordenado para a expansão dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, mediante a criação das CESBs - Companhias Estaduais de Saneamento Básico (Santos; Kuwajima; Santana, 2020). Embora tenha aumentado a cobertura de água, o PLANASA negligenciou o tratamento de esgoto, uma omissão corrigida apenas parcialmente com a promulgação da lei 11.445/07, que estabeleceu diretrizes mais claras para o setor (Costa; Pierobon; Soares, 2018).
Marco legal do saneamento (lei 14.026/20)
O Novo Marco Legal do Saneamento, promulgado em 2020, visa enfrentar os problemas estruturais persistentes no setor, sobretudo pela introdução de uma prestação regionalizada dos serviços, agrupando municípios em blocos para alcançar eficiência econômico-financeira. Tal mecanismo foi reforçado pelo STF, que reconheceu a constitucionalidade da regionalização como instrumento de otimização do serviço público e de fomento à produtividade (ADIn 6.492; ADIn 6.536; ADIn 6.583)?
Além disso, o marco estabelece metas ambiciosas de universalização até 2033, exigindo que 99% da população tenha acesso à água potável e 90% ao esgotamento sanitário. Tais metas são desafiadoras, especialmente para as empresas estatais, que agora precisam competir em igualdade de condições com empresas privadas em processos licitatórios para concessão de serviços, o que implica um rearranjo institucional significativo (Rubens Naves, 2021)?
Desafios atuais
Os desafios no campo do saneamento transcendem as questões financeiras e técnicas, permeando também o domínio jurídico-regulatório. A fragmentação das agências reguladoras, que somam mais de 80 no âmbito estadual e municipal, cria barreiras para a padronização dos serviços. Cerca de 34% dos municípios brasileiros não possuem agências reguladoras formalizadas, o que compromete a consistência e a eficácia dos serviços prestados (Cordeiro, 2009). Além disso, a lei 14.026/20 trouxe consigo um novo paradigma: a substituição das antigas concessões diretas por um modelo de competição pública, que obriga empresas estatais e privadas a concorrerem igualmente, um movimento que gerou controvérsia e resistência por parte de alguns estados e municípios.
Soluções e inovações
A superação desses desafios requer uma abordagem multifacetada, que inclua o fortalecimento das PPPs - parcerias público-privadas, bem como a adoção de inovações tecnológicas voltadas à modernização dos serviços de saneamento. Tecnologias como a dessalinização de águas salobras e os sistemas descentralizados de tratamento de esgoto podem oferecer soluções economicamente viáveis e ambientalmente sustentáveis para as áreas urbanas e rurais (Heller; Castro; Murtha, 2015). O aumento da transparência por meio da digitalização dos processos de governança também se mostra crucial para garantir a eficiência e a modicidade tarifária.
Perspectivas futuras
O futuro do saneamento no Brasil exige uma coordenação integrada entre os diferentes níveis de governo, o setor privado e a sociedade civil. A recente decisão do STF, que reforça a constitucionalidade do Novo Marco Legal, alicerça o ambiente regulatório necessário para atrair investimentos de grande porte, especialmente em projetos de infraestrutura voltados para a universalização dos serviços (STF, 2022).
No entanto, a adaptação a esse novo modelo impõe desafios significativos, principalmente no que tange à necessidade de assegurar segurança jurídica aos contratos e mitigar os riscos regulatórios que ainda pairam sobre o setor.
Conclusão
A universalização do saneamento básico no Brasil até 2033 representa um objetivo ambicioso, mas atingível, desde que os desafios de governança, financiamento e inovação sejam adequadamente enfrentados. O Novo Marco Legal do Saneamento constitui uma oportunidade ímpar para transformar o setor, promovendo a inclusão, a eficiência e a sustentabilidade. Entretanto, sua implementação requer um esforço coordenado entre o poder público e a iniciativa privada, além da criação de um ambiente regulatório estável e previsível, que possa proporcionar os avanços necessários para garantir o direito fundamental ao saneamento básico para toda a população.
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1 ABCON. Relatório de Saneamento Básico. Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto, 2021. Disponível em: www.abcon.org.br. Acesso em: 5 out. 2024.
2 CANÇADO, V. L.; COSTA, G. M.A política de saneamento básico: limites e possibilidades de universalização. Seminário sobre Economia Mineira, Diamantina, 2002.
3 CORDEIRO, B. S. (Org.). Lei nacional de saneamento básico: perspectivas para as políticas e a gestão dos serviços públicos. Brasília: Ministério das Cidades, 2009.
4 COSTA, I. G.; PIEROBON, F.; SOARES, E. C. A efetivação do direito ao saneamento básico no Brasil: do Planasa ao Planasb. Revista Meritum, Belo Horizonte, v. 13, n. 2, p. 32-56, 2018.
5 GONÇALVES, S. A. A Política Pública de saneamento no Brasil: da Lei 11.445/2007 aos movimentos político-institucionais para sua revisão. São Paulo, 2019. Disponível em: www.saneamentopublico.org.br. Acesso em: 5 out. 2024.
6 HELLER, L.; CASTRO, R.; MURTHA, M. Avanços e retrocessos na política de saneamento básico no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, Brasília, v. 17, n. 1, p. 13-28, 2015. DOI: 10.1234/urbanos-17-1.
7 MARQUES, R.; CANÇADO, V. L.; SOUZA, A. Atualização do marco legal do saneamento: uma análise crítica. Revista de Direito Administrativo, São Paulo, v. 28, n. 3, p. 112-140, 2021.
8 MIRANDA, S.; SOUZA, G.; COSTA, R. Saneamento básico e políticas públicas no Brasil. Revista Direito e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 45-70, 2020.
9 PEREIRA, T.; RIBEIRO, M. Parcerias Público-Privadas no Setor de Saneamento no Brasil. São Paulo: Editora Lumen Juris, 2015.
10 REZENDE, S.; HELLER, L. Saneamento e saúde pública: da teoria dos miasmas à promoção da saúde. Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 23-40, 2009.
11 NAVES, Rubens. Saneamento para todos. 1. ed. São Paulo: Editora FGV, 2021.
12 STF. Decisão nas ADIs 6.492, 6.536, 6.583 e 6.882. Diário da Justiça, Brasília, 6 dez. 2022.