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Liberdade, ainda que tardia? O STF e a consagração da autonomia na recusa terapêutica. Apontamentos e Reflexões

STF consagra a liberdade religiosa na recusa terapêutica. Mas, e a recusa motivada por outras razões? E quanto à autonomia e liberdade de crença dos incapazes?

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Atualizado às 11:43

Razões de ordem religiosa podem levar alguém a recusar determinado procedimento ou tratamento médico? Essa questão, e tantas outras que dela decorrem1, têm sido propostas há décadas nas aulas introdutórias dos cursos de Direito. É um clássico, um "clichê" da propedêutica jurídica.

Professores das primeiras letras de Direito Constitucional e de Direito Privado ensinam que, na ponderação entre direitos fundamentais, não há prevalência de um ou de outro em abstrato. Estando em confronto, por exemplo, a vida e a liberdade religiosa, a decisão se dá concretamente, conforme as circunstâncias do caso e as características dos sujeitos envolvidos. Nos bancos da escola, aprendemos teoria e filosofia suficientes para embasar respostas seguras, considerando as noções de autonomia, autodeterminação e dignidade humana.

Ainda assim, apenas em 25 de setembro de 2024 essas respostas começam a se consolidar na jurisprudência brasileira. A decisão dos Recursos Extraordinários 979.742 e 1.212.272 é um marco jurídico na proteção da autonomia do paciente e da liberdade religiosa e, como tal, merece ser festejada. No entanto, questões importantes seguem sem definição. Festejemos, portanto, mas questionemos.

O RE 1.212.272 aborda diretamente o seguinte questionamento: Testemunhas de Jeová podem se recusar, por motivo de crença religiosa, a receber transfusão de sangue? No caso concreto sub judice, a autora estava prestes a submeter-se à cirurgia quando o hospital lhe exigiu que assinasse um termo autorizando eventual transfusão de sangue. Ante a recusa da paciente, a cirurgia foi cancelada, motivando o ajuizamento da ação para viabilizar o procedimento sem a assinatura e sem a transfusão.

O STF reconheceu-lhe razão, especialmente pelo fato de ela estar "no gozo pleno de sua capacidade civil" e ter tomado uma "decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida".

Por sua vez, no âmbito do RE 979.742, discutiu-se se o Poder Público deveria custear, para um paciente Testemunha de Jeová, tratamento médico alternativo, a ser realizado em outro estado da Federação. No caso, o autor precisava submeter-se a uma cirurgia com potencial necessidade de transfusão de sangue alogênico (de terceiros), sem que houvesse em seu estado (AM) tratamento alternativo pelo SUS. O paciente pleiteou judicialmente, portanto, a respectiva transferência e o tratamento fora de seu domicílio, às custas do Estado.

O STF reafirmou o posicionamento pela legitimidade da recusa de tratamento por convicções religiosas, e foi além: determinou ser dever do Estado fornecer procedimento alternativo disponível no SUS, ainda que fora do domicílio do paciente. Ou seja, entendeu o STF que o direito à liberdade religiosa impõe ao Estado prestações positivas, de modo a garantir-lhe efetividade e consistência prática.

Percebe-se a tendência a que o STF consolide esse entendimento. Espera-se, naturalmente, que ele se repita na decisão da ADPF 618, cujo pedido central envolve justamente a aplicação interpretativa sobre normas restritivas a respeito do exercício de tal direito de forma plena. Agora, tem-se um direcionamento muito mais claro a respeito do tema.

Os julgados analisados têm o mérito de admitir que o Direito não é valorativamente neutro. Tem como valor central o personalismo ético, que funda a ideia de dignidade e impõe o reconhecimento da personalidade humana e dos direitos da personalidade. Em outras palavras, a pessoa humana é o fundamento, a razão de ser e a finalidade do Direito e, como tal, deve ter preservada a liberdade de se autodeterminar, limitada apenas pelo reconhecimento, em igual medida, do outro. 

Nessa linha, vale dizer que, ao determinar o custeio público do tratamento alternativo, a decisão não viola, e, sim, promove a igualdade entre todas as pessoas, notadamente em face do SUS, que não poderia restringir determinado procedimento aos cidadãos de alguns estados da federação em detrimento dos demais.

É de se comemorar, também, que o STF tenha, finalmente, reconhecido normatividade à DUBDH - Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, aprovada pela UNESCO e firmada por 191 países em outubro de 2005.

Louvável, ainda, que tenha permitido a recusa via diretrizes antecipadas de vontade, consagrando a possibilidade de exercício pleno da autodeterminação do paciente.

Quando menos, a decisão confere segurança e estabilidade à prática médica no que diz respeito à recusa terapêutica por motivação religiosa, restando legitimado o profissional que acolhe e promove a autonomia do paciente, sem o temor de responder pelas consequências desta grave recusa quanto às suas possíveis consequências existenciais. Isso, claro, desde que verificada - e documentada - a plena competência decisória do sujeito, capaz, lúcido, informado e livre de influências externas.

O último ponto merece especial atenção.

É intuitivo que só se reconheça a possibilidade de recusa terapêutica a sujeitos plenamente capazes e conscientes. Em se tratando de incapaz, portanto, fica expressamente afastada a possibilidade de recusa pelos responsáveis, preservada a possibilidade de escolha, por estes, de tratamento alternativo eficaz e seguro, se houver. Se for o caso, o médico assistente (ou a instituição) pode resguardar-se mediante ordem judicial para realização do procedimento.

Brunello Stanciolli2 levanta a seguinte questão: como proceder diante de pessoa legalmente incapaz, porém com evidente capacidade cognitiva, de entendimento?

Para refletir a respeito, tomemos o caso literário do jovem Adam Henry (The Children Act, de Ian McEwan, 2014, inspirado em casos reais). Aos 17 anos e com leucemia, Adam precisava submeter-se a uma transfusão de sangue alogênica para que tivesse perspectiva de sobreviver. No entanto, junto com seus pais, recusa o tratamento, por ser a família Testemunha de Jeová.

Independente do desenrolar da obra, cabe a reflexão: o caso poderia ser equiparado ao de uma criança de tenra idade, incapaz de compreender sua situação e, mais ainda, de fazer escolhas terapêuticas? Ou poderia ser aplicado o conceito Gillick-competent3, para acolher a decisão do adolescente e permitir-lhe a recusa terapêutica apesar da incapacidade civil?

Em casos semelhantes ao do personagem, o Judiciário do Reino Unido tem admitido a intervenção pela preservação da vida, autorizando o tratamento apesar da recusa do menor4. Parece-nos ser idêntico o entendimento do STF, embora os julgados não mencionem a capacidade de entendimento.

A ser assim, os menores Testemunhas de Jeová devem ser submetidos a transfusões contra a vontade de seus representantes e, eventualmente, contra a própria vontade, mesmo que demonstrem os requisitos da capacidade de entendimento: maturidade emocional, compreensão intelectual e capacidade de tomar decisões racionais.

Em algum momento, porém, o Judiciário precisará enfrentar a questão da capacidade de entendimento de forma mais objetiva e direta, para preservar a dignidade de sujeitos que, embora considerados incapazes por lei, demonstram cada vez maior discernimento e percepção da realidade e exercem, na prática, autonomia sobre a própria existência e em relações sociais complexas.

Para além desse ponto, cabe questionar, com Telma Birchal5: O reconhecimento da autonomia do paciente para a recusa terapêutica limita-se aos fundamentos religiosos ou estende-se a qualquer motivação de ordem subjetiva ou de consciência moral? 

Embora os ministros do STF tenham sido categóricos ao estatuir a liberdade religiosa como fundamento legítimo da recusa terapêutica nos casos analisados, entendemos que se trata - ou deveria tratar-se - da máxima realização do personalismo ético, que não admite gradação ou restrição à dignidade humana. Ou seja, qualquer fundamento, desde que fruto de decisão livre e informada, deveria ser suficiente para legitimar a recusa terapêutica, em qualquer caso.

Esse entendimento foi consagrado no relatório final da comissão de juristas encarregada de propor uma revisão do Código Civil vigente6. A ser aprovado o texto, neste ponto irretocável, o Direito brasileiro há de experimentar verdadeira evolução na consagração da pessoa, com a promoção de sua dignidade e liberdade essencial.

Em conclusão, celebramos a decisão do STF que, embora tardiamente, consolida a possibilidade de recusa terapêutica por motivos religiosos, consagrando a liberdade de crença e, consequentemente, a autonomia individual. Esperamos que o entendimento se amplie para alcançar qualquer hipótese de recusa por pessoa plenamente capaz e consciente. 

Deixamos, por fim, à reflexão a abordagem do tema quanto a eventuais efeitos jurídicos da manifestação de vontade de pessoas civilmente incapazes, mas com reconhecida maturidade e discernimento sobre a própria existência e dignidade, sendo inegável o legado que o tema adquiriu com o avanço firmado pelo STF.

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JUNGES, José Roque. Bioética. São Leopoldo: Unisinos, 1999.

SIMONELLI, Osvaldo. Direito Médico. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024.

STANCIOLI, Brunello Souza. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade - ou como alguém se torna o que quiser. Indaiatuba: Foco, 2023.

TUNIK, Marck. State Authority, Parental Authority, and the Rights of Mature Minors. Disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC8418455/; acesso em 29/9/2024.

VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria Geral do Direito Civil. 3.ed. Coimbra: Almedina,2005.

1 O poder público deve custear tratamento alternativo? Representante legal de incapaz pode recusar tratamento em nome do representado? Etc.

2 Professor do Corpo Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito na UFMG; doutor em Direito pela UFMG.  Questionamento apresentado em grupo de discussão da Sociedade Brasileira de Bioética

3 O termo Gillick-competent foi cunhado no Reino Unido, a partir do caso em que Victoria Gillick contestou a possibilidade de médicos fornecerem contraceptivos a menores sem o consentimento dos pais. Decidiu-se que menores podem consentir em tratamentos médicos se forem considerados suficientemente maduros para entender as implicações do tratamento.

4 Re O(A Minor) (Medical Treatment) [1993] 1 FCR 925, [1993] 2 FLR 149. 53; Re S (A Minor) (Medical Treatment) [1993] 1 FLR 37; .Re R (A Minor) (Blood Transfusion) [1993] 2 FCR 544.

5 Professora do Departamento de Filosofia da UFMG; doutora em Filosofia pela USP. Questionamento apresentado em grupo de discussão da Sociedade Brasileira de Bioética.

6 Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. § 1º É assegurada à pessoa natural a elaboração de diretivas antecipadas de vontade, indicando o tratamento que deseje ou não realizar, em momento futuro de incapacidade; § 2º Também é assegurada a indicação de representante para a tomada de decisões a respeito de sua saúde, desde que formalizada em prontuário ou em escrito particular, datados e assinados, com eficácia de cinco anos; § 3º A recusa válida a tratamento específico não exime o profissional de saúde da responsabilidade de continuar a prestar a melhor assistência possível ao paciente, nas condições em que ele se encontre ao exercer o direito de recusa. Art. 15-A. Plenamente informadas por médicos sobre os riscos atuais de morte e de agravamento de seu estado de saúde, as pessoas capazes para o exercício de atos existenciais da vida civil podem manifestar recusa terapêutica para não serem constrangidas a se submeter à internação hospitalar, a exame, a tratamento médico, ou à intervenção cirúrgica. Parágrafo único. Nos termos do §1º do art. 10 deste Código, toda pessoa tem o direito de fazer constar do assento de seu nascimento a averbação das declarações mencionadas neste artigo.

Osvaldo Simonelli

VIP Osvaldo Simonelli

Advogado e Professor. Esp. em Direito Médico. Ms. em Ciências da Saúde. Idealizador do Programa de Formação em Direito Médico. Fundador do DMed15 - Inteligência Coletiva em Direito Médico e da Saúde.

Mariana Perlatto

Mariana Perlatto

Advogada, especialista em Direito Médico, Mestre em Direito Privado e membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Bioética, regional Minas Gerais Membro do DMed15 - Inteligência Coletiva em Direito Médico e da Saúde.

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