Análise jurídica e econômica do programa RenovaBio e créditos de descarbonização (CBIOs): A necessidade de diálogo institucional e autocomposição na jurisdição constitucional
Programa RenovaBio, suas deficiências e a necessidade de diálogo institucional e mediação no STF para aprimorar a política de biocombustíveis.
sexta-feira, 4 de outubro de 2024
Atualizado em 3 de outubro de 2024 14:24
1. Introdução
O programa RenovaBio, instituído pela lei 13.576/171 e regulamentado pelo decreto 9.888/192, constitui a política nacional de biocombustíveis do Brasil. Seu principal objetivo é promover a expansão sustentável dos biocombustíveis na matriz energética nacional, reduzir a intensidade de carbono no setor de transportes e, assim, contribuir para o cumprimento das metas ambientais assumidas pelo Brasil no Acordo de Paris. A principal ferramenta do programa é o mercado de CBIOs - Créditos de Descarbonização, um mecanismo financeiro que busca compensar a emissão de GEE - Gases de Efeito Estufa e incentivar a utilização de combustíveis renováveis.
Os CBIOs são certificados financeiros emitidos por produtores e importadores de biocombustíveis com base na NEEA - Nota de Eficiência Energético-Ambiental, criada pela EMBRAPA - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. O RenovaBio impõe aos distribuidores de combustíveis fósseis a obrigação de adquirir CBIOs proporcionalmente ao volume de combustíveis transportados/comercializados, com a finalidade de compensar suas emissões de carbono. A meta de cada distribuidor é calculada pela ANP - Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis e revisada anualmente.
2. Avaliação do TCU - Tribunal de Contas da União
O relatório do TCU de 2024 avaliou a governança e a gestão dos CBIOs no âmbito do RenovaBio, apontando diversas fragilidades e deficiências nos processos de controle e fiscalização. Dentre as principais observações do TCU, destacam-se:
- Falta de Coordenação Institucional: O relatório identificou lacunas na articulação entre as entidades responsáveis pela implementação do RenovaBio, como o MME -Ministério de Minas e Energia, a ANP e o ministério da economia, o que compromete a eficácia da política pública e o cumprimento das metas estabelecidas.
- Deficiências no controle e na certificação de CBIOs: A ANP não possui recursos materiais e humanos suficientes para garantir uma fiscalização adequada da emissão e comercialização dos CBIOs. O TCU também constatou falhas na certificação de biocombustíveis, que podem levar a uma superestimação da eficiência energética e, consequentemente, a uma emissão inadequada de CBIOs.
- Fragilidades na governança do programa: A governança do RenovaBio carece de mecanismos de monitoramento, transparência e definição de indicadores de desempenho, o que impede a correta avaliação dos resultados alcançados e limita a eficácia do programa como um todo.
- Efeito sobre investimentos no setor de biocombustíveis: O ambiente de incerteza gerado pela volatilidade dos preços dos CBIOs e pela falta de diretrizes claras para reinvestimento dos recursos obtidos compromete a atratividade de novos investimentos e afeta a confiança dos agentes do mercado.
Diante dessas deficiências, o TCU recomendou a adoção de um plano de ação por parte do MME e da ANP, com medidas voltadas para o fortalecimento da governança do RenovaBio, a revisão dos processos de certificação dos CBIOs e a promoção de uma melhor articulação entre as entidades responsáveis pela execução da política pública3.
3. Questões constitucionais: ADI - Ações diretas de inconstitucionalidade 7617 e ADI 7596 no STF
O programa RenovaBio e a obrigatoriedade de aquisição dos CBIOs têm sido objeto de questionamento judicial quanto à sua constitucionalidade. Atualmente, tramitam no STF a ADI - Ação Direta de Inconstitucionalidade 7617 e a ADI 7596, que contestam a constitucionalidade da lei 13.576/17 e dos dispositivos que regulamentam a obrigatoriedade de aquisição de CBIOs por distribuidores de combustíveis fósseis.
As ADIs argumentam que a imposição de metas compulsórias apenas para os distribuidores de combustíveis fere os princípios constitucionais da isonomia, da livre concorrência e do poluidor-pagador. Sustenta-se que a concentração das obrigações de compensação em um único elo da cadeia produtiva desrespeita a lógica de responsabilidade ambiental compartilhada e gera uma oneração desproporcional para os distribuidores, ao passo que exime outros agentes relevantes, como refinarias e produtores de combustíveis fósseis.
Além disso, as ADIs levantam a questão da natureza jurídica do CBIO, que é apresentado como um crédito financeiro, sem destinação específica para fins de sustentabilidade ambiental. O eventual desvirtuamento do objetivo do programa e a ausência de reinvestimento dos recursos arrecadados em práticas sustentáveis são utilizados como argumento para demonstrar a falta de conformidade do RenovaBio com os princípios constitucionais e com as diretrizes ambientais do Acordo de Paris.
4. Propostas para solução: Diálogo institucional e autocomposição na jurisdição constitucional
Diante dos questionamentos constitucionais e das deficiências apontadas no relatório do TCU, o diálogo institucional entre todos os envolvidos no RenovaBio é essencial para a construção de soluções que garantam a eficácia e a sustentabilidade do programa. Nesse sentido, a mediação no STF, por meio de audiências de contextualização e reuniões entre representantes do governo, do setor produtivo e de entidades ambientais, é uma alternativa viável para promover uma solução pacífica e consensual.
A autocomposição na jurisdição constitucional, caracterizada pelo uso de mecanismos como a mediação e a conciliação para resolver litígios no âmbito do STF, permite que as partes envolvidas possam negociar e chegar a acordos que atendam aos interesses públicos e privados de maneira equilibrada. A mediação no STF possibilita um diálogo mais amplo e inclusivo, envolvendo todos os envolvidos, como produtores de biocombustíveis, distribuidores de combustíveis fósseis, órgãos reguladores, representantes do Ministério Público, entidades ambientais e especialistas nesta temática.
A utilização da autocomposição na jurisdição constitucional não apenas reforça a legitimidade das decisões autocompositivas, mas também contribui para a construção de um ambiente de cooperação entre os Poderes e entre os diversos setores da sociedade4. No contexto do RenovaBio, a mediação no STF pode resultar em ajustes regulatórios, revisões das metas de descarbonização e propostas de novas políticas públicas que promovam a sustentabilidade do programa e garantam a segurança jurídica necessária para o seu desenvolvimento. A decisão adjudicada pelo STF, seja pela declaração de constitucionalidade ou declaração de inconstitucionalidade, pode não resolver a espiral do conflito e até aumentar a tensão.
5. Sugestões para aperfeiçoamento do RenovaBio
Com base nos fundamentos apresentados acima podemos extrair algumas sugestões para o RenovaBio:
Promoção do diálogo institucional: Estabelecer um fórum de discussão entre representantes do governo, do setor produtivo e de entidades ambientais para promover um diálogo contínuo sobre as melhores práticas para o aperfeiçoamento do programa, por meio de práticas autocompositivas perante o Supremo Tribunal Federal.
Fortalecimento da governança: Implementar um plano integrado de fiscalização e supervisão, com indicadores de desempenho específicos para monitorar a efetividade das metas de descarbonização e o impacto econômico do programa.
Inclusão de todos os agentes da cadeia produtiva: Estender as obrigações de aquisição de CBIOs a outros agentes econômicos responsáveis pela emissão de GEE, como refinarias e produtores de combustíveis fósseis, promovendo uma distribuição mais equitativa das responsabilidades ambientais.
Estabilidade de preços e controle de volatilidade: Adotar mecanismos regulatórios para limitar a especulação financeira e garantir maior estabilidade e previsibilidade no mercado de CBIOs.
Reinvestimento em práticas sustentáveis: Definir diretrizes para que os recursos arrecadados com a venda de CBIOs sejam destinados a projetos de desenvolvimento tecnológico e eficiência energética no setor de biocombustíveis.
6. Considerações Finais
O RenovaBio, como política pública voltada para a descarbonização do setor de transportes, apresenta um modelo inovador, mas enfrenta desafios significativos em sua implementação e governança. As deficiências apontadas pelo TCU, a volatilidade dos preços dos CBIOs e a concentração de responsabilidades nos distribuidores de combustíveis fósseis podem comprometem a efetividade do programa. Nesse contexto, o diálogo institucional por meio de mediação no STF é um caminho relevante para construir soluções consensuais e promover ajustes necessários para fortalecer o RenovaBio.
A adoção de mecanismos de autocomposição na jurisdição constitucional, como a mediação e a conciliação, contribui para a construção de um ambiente regulatório mais transparente e eficiente. A partir do diálogo e da cooperação entre os Poderes e os agentes econômicos, o RenovaBio pode se consolidar como um instrumento eficiente de descarbonização e sustentabilidade ambiental, alinhado aos objetivos do Acordo de Paris e à promoção de uma matriz energética mais equilibrada e diversificada.
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1 Lei disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13576.htm
2 Decreto disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/d9888.htm
3 "Como resultado, o Cbio pode não atingir valores suficientes para a indução de investimentos e, assim, não incentivar a ampliação da participação dos biocombustíveis na matriz energética, prejudicando o alcance dos objetivos do RenovaBio. Todavia, encontram-se em curso iniciativas para o aprimoramento do programa, motivo pelo qual não foi proposta medida corretiva. Existem ainda fragilidades no controle exercido pela Agência Nacional de Petróleo (ANP) sobre a geração e a certificação do Cbio, o que pode prejudicar a confiabilidade do lastro dos Cbio, mas que tendem a ser solucionadas pelo desenvolvimento de solução tecnológica pela Agência, para melhorar a atividade fiscalizatória. Além disso, foram detectadas incoerências entre os fundamentos aplicados ao RenovaBio e as políticas automotivas, especialmente em relação aos conceitos de eficiência energética, que podem dificultar a integração entre as políticas. No entanto, não foi proposta medida corretiva, tendo em vista que o Programa Combustível do Futuro, criado em 2021, busca resolver essas divergências. Por fim, constatou-se que a governança do monitoramento dos resultados do Programa Selo Biocombustível Social (SBS) teria negligenciado, ao longo dos seus quinze anos de vigência, as diretrizes energéticas e econômicas do Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB) e que os objetivos energéticos de diversificação e desenvolvimento de novas biomassas não estão sendo alcançados de forma satisfatória, mediante a ausência de indicadores de desempenho e metas, com consequente renúncia fiscal, custos de transação e prejuízos à livre competição no setor.(..) O Tribunal recomendou ação da Casa Civil a respeito da avaliação do Programa SBS e deu ciência de ponto de atenção, em relação ao mesmo tema, ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Adicionalmente, deu ciência da deliberação aos principais entes públicos relacionados às políticas públicas analisadas." Relatório do TCU disponível em https://sites.tcu.gov.br/relatorio-de-politicas/11-auditoria-operacional-para-avaliar-as-principais-politicas-de-biocombustiveis.html
4 VEIGA, Guilherme. Mediação nas cortes superiores: da teoria à prática. Editora Thoth, 2023.
Guilherme Veiga Chaves
Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Direito Constitucional Internacional pela Universitá di Pisa/UNIPI, Itália. Advogado sócio do escritório Gamborgi, Bruno e Camisão Associados Advocacia.