A responsabilidade do consultor de investimentos
A responsabilidade do consultor de investimentos envolve orientar clientes em mercados complexos, minimizando riscos e seguindo normas administrativas, civis e penais.
sexta-feira, 4 de outubro de 2024
Atualizado em 3 de outubro de 2024 14:11
Introdução
O mercado de capitais lato senso - que é maior do que o mercado de valores mobiliários - tem se notabilizado por uma progressiva sofisticação nos seus institutos e na sua estrutura operacional, com o surgimento de novos atores voltados para a sua dinamização. Vai muito longe o tempo em que imperavam apenas os corretores oficiais de fundos públicos, as sociedades corretoras e as sociedades distribuidoras de títulos e valores mobiliários. Mais tarde os bancos de investimento e os bancos múltiplos passaram também a operar nesse setor.
Esse mercado envolve elevado nível de risco (mensurável) que muitas vezes evolui para o mundo da incerteza (não mensurável), a partir de movimentos no ambiente geopolítico e geoeconômico, nos quais mudanças radicais dos seus rumos acontecem em uma questão de horas, a saber, por exemplo, um ataque terrorista; a eleição de um candidato radical - tanto faz se das chamadas direita ou esquerda -; um terremoto; uma enchente repentina que destrói a economia de toda uma região; incêndios devastadores; e por aí segue uma lista muito ampla.
No sentido acima as decisões de investimento não podem depender de alguma análise simplista de agentes superavitários, que podem escolher investir nos mercados imobiliário, de renda variável ou de renda fixa. É necessária a busca de elementos de qualidade, para o fim de minimizar a assimetria de informações presente nesses mercados, nos quais o investidor é sempre a parte mais vulnerável, em termos relativos.
Veja-se que mesmo o mercado imobiliário apresenta diversas nuances, por exemplo entre a escolha por comprar imóveis novos "na planta" para revenda ou para locação futura; ou por buscar oportunidades no setor dos imóveis usados. Outra opção pode ser a escolha de estúdios pequenos, destinados ao novo perfil dos nem-nem (nem carro, nem muita mobília, só o estritamente necessário1) - ou a faixa dos muito ricos, que buscam imóveis de alto luxo, com muito espaço. E quando se vê esse mercado explodindo em uma substancial quantidade de unidades em construção a pergunta imediata que se faz é se ele durará o tempo suficiente para a maturação do investimento ou se ele poderá ficar logo saturado, considerada as dificuldades que enfrenta o interessado para juntar a entrada, mínima exigida e fazer um financiamento.
Renda fixa ou variável, se perguntam os investidores? A Selic sobe ou desce? Idem o dólar e o índice Bovespa. Seria melhor gastar o dinheiro em bens antes que a inflação eleve o seu preço; ou que haja uma crise de desabastecimento depois tantas enchentes e de tantos incêndios no Brasil, e da possibilidades de guerras?
Essas são algumas das questões que esses consultores têm de enfrentar antes de serem capazes de orientarem os seus clientes sobre os seu investimentos.
Aqui não será tratada a figura do assessor de investimentos (antigo agente autônomo de investimentos, atualmente tratada pela res. CVM de 14.02.2023) que atua como um tipo especial de mandatário no mercado de valores mobiliários2.
Mas antes vamos começar pelo começo, diria o nosso Conselheiro Acácio.
1. Modalidades de consultores, financeiro e/ou de investimentos e de valores mobiliários
O mundo da necessidade de aconselhamento é vasto e diversificado, abrindo-se espaço para profissionais qualificados e também para aventureiros, tendo estes encontrado livres para si as avenidas largas das redes sociais, nas quais eles pululam vendendo o seu peixe para incautos, a partir da credibilidade que constroem para si por meio de circunstâncias diversas que os levam a grande notoriedade. Infelizmente é nesse ambiente aberto e praticamente incontrolável que no mesmo dia se encontra um trouxa com um malandro que daquele tira proveito. O trouxa é agraciado com uma credibilidade sem limites e cai facilmente nas garras do aventureiro. Infelizmente a vítima fica fora do radar dos consultores, preferindo optar muitas vezes pelos malfadados influencers, porque não busca aconselhamento adequado. Coloca-se fora do mundo da devida proteção.
Nesse cenário as duas áreas que aqui interessam são as do mercado financeiro estrito senso e dos mercados de capitais e de valores mobiliários estes últimos dois distintos entre si segundo o seu objeto.
O mercado financeiro estrito senso é o de crédito, aquele em relação a qual se fala em aplicações de renda fixa (pré ou pós fixada). É exercido no ambiente das instituições financeiras ou o das a elas equiparadas, como tais definidas nos art. 17 e 18, caput da lei 4.595/64. Observe-se que as entidades atuantes no mercado de capitais e de valores mobiliários evoluíram da responsabilidade inicial do BCB para a competência da CVM, nos termos a lei 6.385/76, arts. 1º e 2º, este último no qual estão taxativamente relacionados os valores mobiliários.
Note-se que quanto ao mercado de capitais lato senso não há uma indicação de quais sejam as instituições financeiras ou entidades que nele atuam, tendo o legislador preferido trabalhar com as operações diversas por elas praticadas. Veja-se, por exemplo, que um banco múltiplo pode operar tanto no mercado financeiro como no de capitais, enquanto uma corretora de valores obrigatoriamente atua no último, sem poder captar recursos do público e fazer operações de crédito.
1.1 Consultor financeiro. Conceito e requisitos não formais. Responsabilidade
A esse título é relacionada uma série de atividades nas quais no qual ele pode trabalhar, como o planejamento financeiro dos seus clientes; ações de coleta e de análise específica das informações de interesse daqueles; a gestão de ativos; a gestão de riscos aos quais está sujeita a atividade dos clientes; etc.
Trata-se de um contrato de prestação de serviços, regido pelos artigos 593 e segs. do CC, exercido em caráter profissional, pessoal e remunerado, exceto quanto a este último fator quando fizer parte de um pacote prestado pelo cliente por uma instituição financeira, segundo a natureza e extensão das relações entre as partes. O valor da retribuição devida ao consultor poderá ser livremente pactuado entre o consultor e seu cliente, não podendo essa relação jurídica ser contratada por mais de quatro anos. Esse instituto contém elementos do mandato, da agência, da distribuição, da corretagem ou da gestão de negócios, sob a pena de se desqualificar como tal para os fins jurídicos.
Do ponto de vista técnico esse consultor deve estar preparado para o exercício nas áreas escolhidas, não havendo requisitos formais para tanto perante o BCB para esse fim, estando disponível a obtenção de certificados outorgados por entidades ligadas a esse mercado, de natureza não oficial, que servem como demonstração da capacidade de exercer a função com eficiência. Entre eles destacam-se dois selos nesse mercado: (i) a certificação CFP, que segue um modelo internacional da FPSB - Financial Planning Standards Board, considerada de excelência nesse mercado; (ii) Cursos de Certificação da Ambina; e (iii) Cursos de Certificação da Febraban. Trata-se de entidades de grande reconhecimento no preparo de consultores financeiros, correspondendo a portas que se abrem para ingresso nessa função.
Dessa forma, o BCB não tem competência para atuar frente aos consultores financeiros, exceto quando agirem sob alguma forma na prática de atividades relacionadas no arts. 17 e 18, da lei 4.595/64.
Como consequência da responsabilidade do consultor financeiro ela remanesce nos planos da responsabilidade civil e penal, conforme se configure algum problema nessas áreas, de forma culposa ou dolosa. Veja-se que aqui estão sendo tratadas as relações jurídicas entre o consultor e o seu cliente, não avançando a análise sobre o papel do destinatário dos investimentos, uma instituição financeira ou entidade assemelhada, particularmente.
Em primeiro lugar o consultor financeiro pode ser condenado pela prática de ato ilícito, na forma do art. 186, do CC, campo onde avultam os casos de dano causado ao cliente por negligência ou imprudência, quando orienta aquele para fazer operações temerárias, fora do padrão que poderia ser entendido como risco normal no negócio, especialmente também na ausência de informações suficientes e adequadas quando se fez a opção pela operação danosa. Nessa situação de responsabilidade coloca-se com peso muito maior o aconselhamento doloso, para a realização pelo cliente de operações ilícitas.
As perdas sofridas pelo cliente, configurada a responsabilidade do consultor financeiro, se resolvem em perdas e danos, computadas segundo a configuração de dano emergente e/ou de lucro cessante, conforme determinam os arts. 402 e 404 do CC.
1.2 Consultor de investimentos no mercado de capitais estrito senso. Conceito e requisitos não formais. Responsabilidade
Observe-se que a lei 6.385/76 relaciona no seu art. 2º o campo das atividades sujeitas à sua disciplina a qual, em relação aos serviços de consultor e de analista, se restringe às operações relacionadas aos valores mobiliários. Podemos entender por conseguinte, à guisa de exemplo, que estão fora da sua alçada - e, portanto, da CVM - os contratos futuros, de opções e de outros derivativo cujos ativos subjacentes não sejam valores mobiliários. Da mesma forma, caracterizando-se outras operações no mercado de capitais fora do espectro daquela lei, não existe órgão regulador que as discipline, exceto quando vierem a se caracterizar como instituições financeiras, nos termos do já mencionado art. 17 da lei 4.595/64, caso em que estarão subordinadas ao BCB.
No sentido acima, o patamar da responsabilidade desses consultores é o mesmo acima referido quanto aos consultores financeiros referidos no item 1.1, supra.
1.3 Consultores de valores mobiliários. Requisitos formais. Responsabilidade
A tutela desses consultores encontra-se moldada pela Res. CVM 19, de 25.02.2021, com alterações introduzidas pela Res. CVM 179/23, a partir da matriz encontrada no inciso VII do art. 1° da lei 6.385/76 e, portanto, sob a disciplina da CVM. O regramento pormenorizado demonstra a importância que é dada a essa atividade, tendo em vista os danos que ela pode causar aos investidores quando mau exercida.
Como consultoria de valores mobiliários o art. 1º da Res.19 da CVM dispõe que consiste na prestação dos serviços de orientação, recomendação e aconselhamento, de forma profissional, independente e individualizada, sobre investimentos no mercado de valores mobiliários, cuja adoção e implementação sejam exclusivas do cliente.
As formas dessa orientação de orientação, recomendação e aconselhamento encontram-se relacionadas no parágrafo 1º do mesmo dispositivo, a saber:
- sobre classes de ativos e valores mobiliários;
- sobre títulos e valores mobiliários específicos;
- sobre prestadores de serviços no âmbito do mercado de valores mobiliários; e
- sobre outros aspectos relacionados às atividades abarcadas pelo caput.
Ficam excetuadas (§ 2º) tanto em relação a pessoas físicas e jurídicas a atuação exclusiva de:
- como planejadores financeiros, cuja atuação circunscreva-se, dentre outros serviços, ao planejamento sucessório, produtos de previdência e administração de finanças em geral de seus clientes e que não envolvam a orientação, recomendação ou aconselhamento de que trata o caput;
- na elaboração de relatórios gerenciais ou de controle que objetivem, dentre outros, retratar a rentabilidade, composição e enquadramento de uma carteira de investimento à luz de políticas de investimento, regulamentos ou da regulamentação específica incidente sobre determinado tipo de cliente; e
- como consultores especializados que não atuem nos mercados de valores mobiliários, tais como aqueles previstos nas regulamentações específicas sobre fundos de investimento em direitos creditórios e fundos de investimento imobiliários
Ainda, nos termos do parágrafo 4º, os assessores de investimento, gerentes de investimentos de instituições financeiras e outras pessoas que atuem na distribuição de valores mobiliários podem prestar informações sobre os produtos oferecidos e sobre os serviços prestados pela instituição integrante do sistema de distribuição de valores mobiliários pela qual trabalhem ou tenham sido contratados, sem configurar a atividade de que trata o caput, (com redação dada pela resolução CVM 179/23).
O dispositivo sob exame volta-se para a disciplina da autorização para o exercício da atividade de consultoria de valores mobiliários, pessoa natural ou jurídica; o respectivo pedido de autorização; os requisitos para o reconhecimento; a suspensão e o cancelamento dessa autorização; a prestação de informações; as regras de conduta; as vedações; a segregação de atividades; as penalidades administrativas; etc.
No plano das regras de conduta, destaca-se o princípio geral a ser obedecido pelo consultor, concernente ao exercício das atividades com boa fé, transparência, diligência e lealdade, de forma a se colocar os interesses dos clientes acima dos próprios (arts. 16 e 17).
No tocante às vedações de maneira geral elas se referem a qualquer serviço relacionado à execução de atividades respeitantes aos produtos objeto da orientação, a não ser quando observados os requisitos de segregação de atividades objeto do art. 21; à garantia de rentabilidade; à omissão de informações sobre conflitos de interesse; ao recebimento de qualquer remuneração ou vantagem direta ou indireta, por meio de partes relacionadas, potencialmente prejudiciais à independência na prestação dos serviços de consultoria; a ser beneficiado com qualquer mandato outorgado pelo cliente perante intuições do sistema de distribuição de valores mobiliários; etc; (art. 18).
As penalidades se apresentam pela configuração de infração grave, conforme disposto na lei 6.385/76; e na forma de multa diária na forma prevista no art. 25.
Esse tratamento da atuação dos consultores de investimento, objeto da referida res. 15 da CVM, certamente resultará na adequada prestação desses serviços, sendo deveras importante a capacidade dessa autoridade no sentido da sua fiscalização.
2. A responsabilidade penal dos consultores de investimento
Há duas fontes legais no âmbito do direito penal, a respeito da atuação dos investidores de investimento no exercício de sua atividade, pela ordem histórica a lei 7.492, de 16.06.1986 (lei dos crimes contra o SFN); e a própria lei 6.385/76. Passemos a examiná-las.
(a) Lei dos Crimes contra o SFN)
Conforme a atuação do consultor de investimentos ele poderá eventualmente ser responsabilizado no exercício de sua atividade:
- ao divulgar informação falsa ou prejudicialmente incompleta sobre instituição financeira (art. 3º, caput);
- ao induzir ou manter em erro o seu cliente investidor relativamente a operação ou situação financeira, sonegando-lhe informação ou a prestando falsamente (art. 6º);
- fraudar a fiscalização ou o investidor, inserindo ou fazendo inserir, em documento comprobatório de investimento em títulos ou valores mobiliários, informação falsa ou diversa daquela que deveria constar (art. 9º); e
- Fazer inserir elemento falso ou omitir elemento exigido pela legislação, em demonstrativos contábeis de instituição financeira, ou instituição integrante do sistema de distribuição de títulos de valores mobiliários (art. 10).
(b) Crimes contra o mercado de capitais
Nesse campo são enumerados os seguintes ilícitos possíveis (art. 27-D e 27-E):
- Utilizar em favor do cliente informação relevante de que tenha conhecimento, ainda não divulgada ao mercado, que seja capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiros, de valores mobiliários;
- Repasse ao cliente de informação sigilosa relativa a fato relevante a que tenha tido acesso em razão de cargo ou posição que ocupe em emissor de valores mobiliários ou em razão de relação comercial, profissional ou de confiança com o emissor; e
- Exercer, ainda que a título gratuito, no mercado de valores mobiliários, a atividade de administrador de carteira, de assessor de investimento, de auditor independente, de analista de valores mobiliários, de agente fiduciário ou qualquer outro cargo, profissão, atividade ou função, sem estar, para esse fim, autorizado ou registrado na autoridade administrativa competente, quando exigido por lei ou regulamento.
Conclusão
Como se verifica, de um lado a atividade do consultor de investimentos é importante para a orientação adequada dos clientes nesses mercados, como obrigação de fazer e não de resultado, em relação à qual estão presentes os critérios orientados para uma atividade a ser exercida de forma idônea e proveitosa para aqueles e, de outro lado a configuração de responsabilidades nos planos administrativo, civil e penal.
______
1 Situação da "Geração Z", os nascidos entre 1990 e 2010, que somente desejam "morar".
2 A esse respeito vide de Marcelo Lucidi e André Marcassa o item 22.1.2 da obra "Aspectos da Teoria Geral do Mercado de Capitais", Ed. Dialética, São Paulo, 2024.
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.