PL 2978/23: O "match" entre o mercado & a sociedade anônima de futebol (SAF) e a busca pelo "fair play" financeiro
O PL 2978/23 busca aprimorar a governança das SAF - Sociedades Anônimas do Futebol, atraindo investidores por meio de compliance e transparência.
quarta-feira, 2 de outubro de 2024
Atualizado às 09:25
1. Introdução
Em busca de um ambiente seguro e previsível para o investimento no futebol profissional no Brasil, o PL 2.978/23, se aprovado, terá a capacidade de alterar e acrescentar dispositivos à lei 14.1931, a fim de aperfeiçoar a governança das Sociedades Anônimas do Futebol, resguardar os investidores e preservar os direitos dos clubes, dos profissionais do futebol e dos atletas em formação.
Em que pese a relevância de outras alterações trazidas no PL telado, buscar-se-á enfatizar a capacidade que o §6º2 do art. 5 do projeto terá de impactar positivamente em termo de sintonizar a SAF com a exigência dos investidores tão bem "acostumados" com as normas de governança que subsidiam o mercado.
A lei da SAF introduziu em nosso arcabouço jurídico instrumentos que permitem a transição do modelo organizacional do futebol profissional a um ambiente "mais seguro", chancelando a sucessão de associações civis sem fins lucrativos para empresas como forma também de evoluir os requisitos de governança corporativa e proteger os novos investidores de exposição aos passivos anteriores do clube de futebol.
Mas as normas de governança até então delineadas, em que pese já configurem avanço legislativo em prol da integridade no "mundo do futebol", podem não atender, ainda, aos investidores ambientados a um mercado de capitais altamente lastreado por normas de governança. Assim, há que se enaltecer a pretensa reforma legislativa trazida no PL 2.978/23, que vem a fomentar o diálogo entre operadores de mercado financeiro e o "mercado da bola".
Ademais, as oportunidades de negócios no mercado de futebol profissional brasileiro são cada vez mais atraentes, sendo nítido que os investidores profissionais nele têm interesse em investir. Entretanto, os negócios da bola careciam de uma estrutura legal que garantisse uma melhor governança, bem como proteção contra os passivos pré-existentes, tópicos que a lei da SAF veio a abordar.
Assim, há que se dizer que a reestruturação financeira dos clubes de futebol no Brasil passa necessariamente pela internalização de uma cultura de integridade empresarial via programas de compliance no âmbito das empresas/clube.
Para maximização do potencial dos clubes no âmbito do mercado de capitais mais do que nunca há que se falar da relevância das normas de governança, que têm o condão de impactar positivamente na marca estampada pela empresa. Aquelas pessoas jurídicas que, inicialmente, desenvolveram no seu "interior" regras de governança corporativa visando a estipular medidas preventivas às práticas ilícitas como parte de sua política interna almejam com isso também ampliar seu capital reputacional ao deferir maior proteção aos interesses dos seus stakeholders.
2. Contextualização do PL 2978/23
O projeto de lei 2.978/23 é uma iniciativa crucial para a melhor regulamentação das SAF no Brasil, visando a modernizar a gestão dos clubes e torná-los mais atraentes para investidores. Essa proposta surge em um cenário em que muitos clubes enfrentam sérias dificuldades financeiras, acumulando dívidas que ultrapassam bilhões de reais, além de operar em um ambiente caracterizado pela falta de transparência e práticas de governança inadequadas.
O referido PL surge em um cenário de transformação no futebol brasileiro, em que o modelo tradicional de clubes, historicamente operado como associações civis sem fins lucrativos, já não atende mais às exigências de transparência, eficiência e sustentabilidade financeira. O projeto de lei busca aprimorar a lei das SAFs, com vistas a ajustar o mercado de capitais ao ambiente do futebol, tendo como consabido tal instituto jurídico concebido como veículo para profissionalizar a gestão dos clubes, atrair investidores e, ao mesmo tempo, mitigar os riscos associados aos passivos herdados das antigas estruturas associativas.
Mais que isso, a SAF vem a propor novo modelo de gestão que busca não apenas a profissionalização, mas também a implementação de normas de compliance que garantam a conformidade legal e regulatória3. A ideia é que, ao profissionalizar a gestão, os clubes se tornem mais sustentáveis e competitivos, alinhando-se às melhores práticas do mercado financeiro global.
A proposta de alteração legislativa visa permitir maior segurança jurídica aos investidores e tornar o futebol brasileiro mais competitivo no cenário internacional. A mudança de paradigma para a SAF fomenta um ambiente de negócios que não só atende às normas do mercado financeiro, como também promove um futebol mais organizado e financeiramente saudável.
3. Análise do §6º do art. 5º do PL e sua sintonia com o mercado de capitais
O §6º do art. 5º do PL 2978/23 estabelece diretrizes para a governança das SAFs, enfatizando a necessidade de transparência, accountability e compliance. Essas normas são fundamentais para criar um ambiente de confiança que atraia investimentos.
O compliance, entendido como um conjunto de medidas para garantir a conformidade com leis e regulamentos, desempenha um papel central nesse contexto. A adoção de programas de compliance robustos nas SAFs tende a minimizar riscos legais e financeiros, além de promover a ética na gestão esportiva. Público e notório, ademais, que a implementação de práticas de compliance efetivas tem o condão de aumentar a atratividade das empresas no mercado.
A relação entre as SAFs e o mercado de capitais é direta: com a adoção de práticas de governança e compliance, as SAFs se colocam em uma posição vantajosa para captar recursos. Investidores buscam segurança e previsibilidade, e a transparência nas operações é essencial para construir essa confiança.
O §6º do art. 5º do PL 2978/23 traz, assim, ao estipular como regra para a SAF que ao menos um membro do conselho de administração e um membro do conselho fiscal sejam independentes, inovação crucial a título de evolução no que tange a padrões de governança corporativa de modo a equipará-los àqueles praticados no mercado de capitais. Sim: adoção conselhos de administração independentes, auditorias periódicas, e o cumprimento de normas de transparência exigidas por órgãos reguladores, como a CVM - Comissão de Valores Mobiliários.
Este dispositivo visa alinhar as SAFs às expectativas dos investidores que já estão acostumados a operar em ambientes regulados, como bolsas de valores e mercados internacionais. A abertura das SAFs ao capital externo demanda que os clubes, agora transformados em empresas, ofereçam aos investidores um nível de segurança equivalente ao que encontram em outros setores da economia.
A sintonia entre as SAFs e o mercado de capitais cria uma lógica de investimentos, em que o clube deixa de ser visto apenas como uma paixão esportiva e passa a ser uma oportunidade de negócios. Para isso, a governança corporativa tem um papel central na atração de investimentos sustentáveis e na melhoria da competitividade financeira dos clubes.
4. A governança como incentivo ao "sucesso" da SAF para a consecução de seus fins: Profissionalização do esporte
Como já enfatizado, a governança eficaz é um dos pilares para o sucesso das SAFs. Os principais elementos que compõem uma boa governança incluem a formação de conselhos de administração competentes, a transparência nas decisões4 e a criação de mecanismos de accountability. Esses aspectos não apenas garantem a sustentabilidade financeira das SAFs, mas também promovem uma cultura de responsabilidade e ética.
A governança corporativa na SAF, ainda, ao estruturar a tomada de decisões, impede a centralização de poder nas mãos de poucos, o que é comum no futebol tradicional, e promove uma gestão profissional com foco em resultados tanto no campo esportivo quanto no financeiro.
O compliance, por sua vez, se insere nesse contexto como uma ferramenta essencial para a governança. A implementação de um programa de compliance robusto pode ajudar a mitigar riscos associados a fraudes, corrupção e má gestão, impacto que também é identificado na melhoria quanto à confiança dos investidores propensos a alocar recursos nessa empresa. O compliance é marca, selo de qualidade, que corresponde a diferencial competitivo quando o assunto é "business".
Além disso, a governança e o compliance ajudam a profissionalizar o esporte, permitindo que os clubes otimizem seus recursos, melhorem o desempenho esportivo, atuem com maior previsibilidade no mercado - facilitando acordos de patrocínio e direitos de transmissão, de modo a ampliar a possibilidade de captação de recursos no mercado de capitais - definitivamente ciclo virtuoso que atenderá ao mercado e aos "amantes do futebol" brasileiro.
5. O "fair play" financeiro como desafio ao compliance desportivo
O fair play financeiro é um conceito essencial que visa garantir a saúde financeira dos clubes, evitando que se endividem irresponsavelmente em busca de resultados imediatos. No contexto das SAFs, é imprescindível que as normas de governança e compliance sejam complementadas por um compromisso firme com o fair play financeiro.
Rasamente falado, tem-se que o "fair play" financeiro visa estabelecer regras claras para o equilíbrio econômico entre os clubes, garantindo que as competições esportivas sejam justas e evitando o endividamento excessivo. No entanto, o cumprimento dessas regras representa um desafio significativo para as SAFs, especialmente diante da necessidade de adequar seus modelos financeiros à nova realidade empresarial.
Apesar de se tratar de termo com pouco uso em solo brasileiro, não é novidade: "A Alemanha adota regras para estimular a boa administração financeira desde 1962, por meio da Bundesliga. Na Itália, o sistema começa a vigorar em 1981 por força de legislação. Na Holanda, o fair play financeiro surge em 2003 pelas mãos da KNVB - a federação nacional. A Uefa cria seu próprio sistema de licenciamento e fair play financeiro em 2009, a partir daí com regras para todo o continente europeu, num momento em que os clubes passavam por mau momento financeiro. O mundo inteiro passava por uma crise econômica, na verdade." 5
Sabe-se que é por meio de uma governança sólida, aliada a um programa de compliance eficaz, que os clubes de futebol poderão operar dentro dos limites do fair play financeiro. Padrões de integridade fomentados pelas exigências do mercado tenderão a garantir que as decisões financeiras sejam tomadas de forma consciente e sustentável, prevenindo crises futuras. A conformidade com os regulamentos e a transparência nas operações são fatores críticos para construir um ambiente saudável no futebol.
Portanto, clubes e investidores devem estar atentos às práticas de fair play financeiro - que deverão ter suas exigências delineadas no programa de compliance6 desenhado na empresa de futebol que pretender vir "holofote" para investidores. Esse é o caminho para se fomentar a disseminação de uma cultura voltada à sustentabilidade - inclusive financeira - no futebol brasileiro.
Neste contexto, o "fair play" financeiro precisa ser incorporado aos estatutos das SAFs como uma política contínua de responsabilidade e sustentabilidade, o que demanda um sistema de governança forte e comprometido com a integridade e o equilíbrio financeiro do clube. A fiscalização rigorosa e a imposição de sanções para o descumprimento das normas são partes fundamentais desse processo e serão postas, antes mesmo do que via "poder estatal", pelo próprio mercado ao não injetar valores naquele clube que não der o devido respaldo aos seus "stakeholders".
Conclusão
O PL 2978/23 representa um avanço significativo na regulamentação das Sociedades Anônimas do Futebol, especialmente no que se refere ao alinhamento das SAFs com as práticas de governança corporativa exigidas pelo mercado de capitais. Para que o "fair play" financeiro seja efetivamente atendido, é imperativo que as SAFs adotem mecanismos de compliance robustos e que garantam a transparência e a responsabilidade na gestão dos clubes.
Somente com o aprimoramento das normas de governança, integridade e fiscalização será possível assegurar um ambiente de negócios propício para os investidores, ao mesmo tempo em que se protege a competitividade e a saúde financeira do futebol brasileiro.
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1 Normativa que institui a Sociedade Anônima do Futebol e dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico.
2 "Art. 5º (...) § 6º Ao menos um membro do conselho de administração e um membro do conselho fiscal deverão ser independentes, conforme conceito estabelecido pela Comissão de Valores Mobiliários." (NR)
3 Faleiros, José Luiz de Moura. "Sociedades Anônimas do Futebol e compliance criminal". Ed. Plácido. MG. 2023. P. 17
4 Monfardini, Fernando. "Compliance no Fuebol". Ed. Ofício. ES. 2020. P. 69.
5 https://ge.globo.com/blogs/blog-do-rodrigo-capelo/post/2020/02/17/entenda-como-funciona-o-fair-play-financeiro-no-futebol-europeu-e-quais-clubes-estariam-ameacados-se-o-sistema-existisse-no-brasil.ghtml Acesso em 26/9/24.
6 Programas de compliance eficazes devem incluir a transparência nas transações, a gestão dos passivos e o controle rigoroso das finanças, impedindo que os clubes gastem mais do que arrecadam e evitando a formação de novas dívidas.
Júlia Flores Schütt
Promotora de Justiça no Ministério Público do Rio Grande do Sul; Doutorado em Direito - Compliance Criminal pela Universidade de Salamanca/Espanha; Mestrado em Técnicas Anticorrupção e Políticas de Integridade pela Universidade de Salamanca/Espanha; Pós doutoranda pela UFRGS - processo civil e direito da insolvência; Foi coordenadora do GAECO combate à Lavagem de Dinheiro do MPRS (2021/2023); Pós graduação pela FMP em Direito Digital, Cybersecurity e Inteligência Artificial.
Pedro Freitas Teixeira
Doutor e mestre em Direito pela UERJ. Especialista em Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falências. Presidente da Comissão de Direito Empresarial da OAB/RJ. Membro da Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD/CBF). Professor Convidado do FGV LawProgram. Sócio do TPB Advogados.