Prisão imediata à condenação no júri e a presunção de inocência
A Constituição não autoriza a imediata execução de sentença penal condenatória proferida pelo júri. Logo, não há como se dar início à execução da pena imposta antes do trânsito em julgado, que é o marco final, para iniciar à execução da prisão-pena. Não há que falar em ofensa à soberania dos veredictos.
quarta-feira, 2 de outubro de 2024
Atualizado às 14:55
O STF decidiu, recentemente, o Recurso Extraordinário (RE) nº1235340/SC, em regime de repercussão geral, Tema nº 1.068, que autoriza a imediata prisão do réu em face condenação imposta pelo Tribunal do Júri.
O STF entendeu que o cumprimento imediato da pena não viola à presunção de inocência em razão da soberania dos veredictos.
A tese de repercussão geral fixada foi:
"A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada".
Vamos, então, a seguir fazer uma crítica epistemológica. A propósito, a doutrina é para doutrinar. Cada um no seu quadrado, não é?
Com todo o respeito que a Corte merece, aliás, é uma instituição essencial à proteção dos direitos fundamentais: só faltou o Supremo combinar com a queridona Constituição!
Não me leve a mal: defendo à Constituição!
Equívoco da decisão do STF
Por que o equívoco do STF? Porque a Lei Maior tem uma pedra no meio do caminho, como no poema de Drummond, que é a presunção de inocência:
"ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" (CF, art. 5º, LVII).
A regra supra é autoexplicativa. Clara como a luz solar. Trata-se de uma regra precisa. Não há ponderação. É um direito fundamental assegurado ao cidadão para limitar o "monstro" Estado, no seu poder punitivo. É uma garantia do cidadão, na democracia, contra as "maldades jurídicas".
Pois então. A prisão-pena, por óbvio, só pode ser aplicada a quem for culpado. Logo, não se pode executar uma pena a quem não é culpado, não é?
Considere as seguintes premissas:
A -não se pode executar uma pena a quem não é culpado
B-ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória
Qual a conclusão da lógica constitucional ?
C- não se pode executar uma pena até o trânsito em julgado de sentença
Deste modo, sempre com todo respeito, a decisão do Supremo que autoriza a imediata prisão do réu condenado pelo júri, é contra à Constituição!
Inclusive, a infeliz decisão do STF, está na direção oposta da sua própria jurisprudência, nas ações declaratórias de constitucionalidade 43, 44 e 54, onde foi falado o óbvio do óbvio: a sentença só pode ser executada após o trânsito em julgado da condenação.
Ora, não há nenhuma razão para tal precedente não se aplique ao Tribunal de Júri. Por que não valeria? Por quê?
Simples assim! Alguma dúvida?
Um filósofo já disse: uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. À vista disso, não se pode confundir a soberania dos veredictos do júri em definir o fato e responsabilidade penal com a imediata prisão do réu.
Afinal, onde está escrito isso na Constituição Federal (CF) de que a após soberania dos veredictos a prisão será imediata? Reparem o que diz a Carta Magna, para que haja qualquer dúvida:
Art. 5º, XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;
Por outras palavras, o réu condenado pelo Tribunal de Júri, em que pese a sua grande importância e ser sobrando-o que significa que sua decisão, em regra, não poderá ser alterada pelo juiz togado, a exceção, é claro, da desconstituição mediante revisão criminal e da apelação (art. 593, III, "d", do CPP), não tem que, automaticamente, iniciar o cumprimento da pena.
Não, mesmo!
Outra vez pergunto: onde está escrito na CF que o réu condenado pelo júri vai imediatamente preso?!
Um ponto importante: é enganoso que não é possível a prisão antes do trânsito em julgado. Jamais foi proibido prender. A prisão cautelar processual é constitucional. É admissível. Desde que, claro, fundamentada com base nos quatro pressupostos previstos no artigo 312 do CPP.
Ou seja, o réu condenado pelo júri poderá cautelarmente ser preso pelo juiz-presidente. Porém, é claro, não automaticamente.
Limites da interpretação à Constituição
Veja-se: há um limite na interpretação à Constituição. O julgador não pode fazer uma nova norma, usurpando o papel do legislador, vale dizer, decidindo o direito que acha que deveria ser, com sua visão do mundo; mas decidindo o direito posto à luz da Carta Magna.
Ora, não se pode abandonar e maltratar à Constituição com argumento metajurídico: de que o condenado pelo júri sai pela frente ou que os homicídios estão aumentando.
Não se pode, ao bel-prazer, desfigurar o propósito do Poder Constituinte Originário (PCO) que criou a cláusula pétrea da presunção de inocência, a qual é inegociável.
Desse jeito, não cabe aos juízes ignorar ou menosprezar texto expresso da Constituição, a pretexto de uma "interpretação".
Além do que, a interpretação jamais poderá ficar submissa ao gosto ou opinião pessoal do intérprete. Não há discricionariedade. Aliás, a discricionariedade já nasce com o DNA da arbitrariedade. O Direito vem, exatamente, para confrontar o arbítrio!
É possível a execução imediata de condenação proferida por Tribunal do Júri ?
Não. Não é possível! A Constituição não autoriza a imediata execução de sentença penal condenatória proferida pelo júri.
Ca pra nós: no Direito querem sempre fazer um vale-tudo distorcendo o sentido semântico da presunção de inocência e o trânsito em julgado, que, aliás, é o marco temporal final; onde somente a partir dele, a prisão-pena poderá ser executada.
Tudo isso, é atropelar a hermenêutica constitucional. É dar um drible na Constituição dizer que: não ofende o princípio constitucional da presunção de inocência a prisão imediata após a condenação pelo júri.
Contem outra, senhores!
É evidente de que qualquer resposta adequada ao Direito tem que ter sempre o DNA da Constituição.
Vamos, então, deixar o texto constitucional dizer:
"ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória "
Pode ler de novo. É isso mesmo que você entendeu:
"não se pode executar uma prisão-pena até o trânsito em julgado de sentença. A exceção, é claro, havendo os requisitos da prisão cautelar".
Que coisa: temos que a toda a hora repetir obviedades óbvias. É sinal de que algo vai muito mal no Direito...
Reflexão necessária
A reflexão necessária: com a decisão do Supremo, a regra da presunção de inocência, não vai valer para os condenados pelo Tribunal de Júri, que devem ser presos imediatamente.
Não obstante, a presunção de inocência, vai valer, por exemplo, para quem roubou, furtou, estuprou e outros crimes, em consequência, podendo aguardar o julgamento do recurso em liberdade.
E agora, José? Ficou uma esquizofrenia jurídica. Salta aos olhos a transgressão à Constituição. É uma situação kafkiana que se afasta absurdamente da lógica constitucional da presunção de inocência.
Triste decisão. Incrível: a Constituição diz X e o STF Y...
Pode isso, excelências?!
Pois é, não poderia à luz da presunção de inocência. Mas, infelizmente, isso acontece: predominou a opinião do julgador. Não a Magna Carta. A propósito, é uma interpretação conforme a vontade do intérprete. A Constituição passou a ser uma folha de papel.
De certo modo, la loi c'est moi (a lei sou eu). Coisas do nosso STF!
Mas há que rememorar o que disse Sartre:
"o inferno são os outros ".
Pois então. Presunção de inocência só é bom quando é para mim, nossa família e os amigos...
Para os outros: cadeia, neles!
Lei nº 13.964/2019: caso de condenação pelo júri a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão
Numa palavra final: chegamos até aqui sem falar na Lei nº 13.964/2019, que permitiu a execução imediata da condenação pelo júri, desde que a pena seja igual ou superior a 15 anos.
Vamos lá. A nosso sentir, há violação à presunção de inocência quando ocorrer a execução imediata da pena, pelos fundamentos expostos anteriormente, devendo, sim, ser declarado a inconstitucionalidade do art. 492, I, "e", do Código de Processo Penal, com a nova redação determinada pela Lei 13.964/2019.
Conclusão
Ninguém é a favor da impunidade! Somente o criminoso! Mas há, sim, que se respeitar os direitos fundamentais, notadamente a cláusula pétrea da presunção de inocência, em um Estado Constitucional e Democrático de Direito.
A Constituição não autoriza a imediata execução de sentença penal condenatória proferida pelo júri. Logo, não há como se dar início à execução da pena imposta antes do trânsito em julgado, que é o marco final, para iniciar à execução da prisão-pena. Não há que falar em ofensa à soberania dos veredictos.
Ainda falta muito para dizer que a presunção de inocência se tornou incontestável no Brasil. De repente, não mais do que de repente, o Supremo pode mudar de posição. Quem sabe? É que um dia, o STF fala uma coisa. Já no outro dia, muda de jurisprudência...
Mas tenho esperança: Deus vai voltar a ser brasileiro.
Nesse dia, todos vão respeitar à Constituição!
Que assim seja!