Um "sistema" que não incentiva o heroísmo: Há "direito fundamental de contar mentiras"?
Causou comoção nas redes a condenação de duas cientistas por desmentirem Fake News em que foi dito que o diabete era causado por vermes. Além do absurdo da condenação, chama atenção o conteúdo da sentença. Muita injustiça e pouca fundamentação.
terça-feira, 1 de outubro de 2024
Atualizado às 09:23
A primeira parte do título desse artigo me recorda a passagem de um livro do Renomado Flávio Tartuce que, ao abordar a polêmica responsabilidade civil (dever de indenizar) daquele que causou danos para realizar salvamento, escreveu que o Código Civil parecia desestimular o heroísmo. Eis a passagem:
"Vejamos um exemplo para ilustrar a aplicação desses polêmicos comandos legais. Imagine-se um caso em que uma criança grita em meio às chamas de um incêndio que atinge uma residência. Um pedestre vê a cena, arromba a porta da casa e salva a criança da morte iminente, prestes a acontecer. Nesse caso, se o dono da casa não causou o incêndio, deverá ser indenizado pelo pedestre herói (art. 929 do CC). Somente se o incêndio foi causado pelo dono do imóvel é que não haverá dever de indenizar. No primeiro caso, o herói terá direito de regresso contra o real culpado pelo incêndio (art. 930 do CC). Observa-se, com tais conclusões, que o Código Civil atual, a exemplo do seu antecessor, continua a não incentivar intervenções heroicas."1 (Grifos nossos).
Bom, não é apenas o código civil que faz isso. O contexto envolto ao direito no país realiza façanha de igual estranheza.
A segunda parte do título advém de reflexões acerca do "direito de mentir". Se adequa aqui uma pergunta: há direito fundamental a contar mentiras? Em tese, em razão da legalidade na sua vertente negativa, haveria direito a mentir, pois inexiste texto de lei que proíba, no geral, tal atitude. Obviamente, existem exceções, como a vedação a mentir para um juiz na condição de testemunha. Quanto ao réu, esse, sim, pode mentir. Na verdade, me parece ser o caso mais robusto de "um direito de mentir", pois ele, o réu, pode mentir para o Estado que se personifica no juiz.
Sem adentrar de forma excessiva nessa questão, não teria o porquê de alguém que conte uma mentira ou outra ser penalizado. Mas quando essa mentira coloca em risco pessoas e quando o autor da mentira, ou melhor, da Fake News, a propaga por intermédio de um megafone colossal denominado de rede social, o Estado deveria ter meios para o inibir. Afinal, como pontuava Hobes, uma das funções do Estado é garantir que as pessoas não morram. Porém, todavia e, entretanto, no Brasil de 2024, não é bem assim. Além de o Estado não alcançar intervenção nesse caso, quem o fez, isto é, quem agiu bravamente como herói ao desmantelar, com ciência, é bom ressaltar, acaba por ser penalizado, por ele, o Estado.
Recentemente, ganhou as manchetes nacionais o seguinte título: "Cientistas são condenadas por desmentir Fake News". Embora o título possa parecer uma tentativa de espalhar outra Fake News, pois se apresenta como ficcional tal manchete, de fato, não é. Há tentativas aqui e outras acolá em tentar o argumento de que elas, as protagonistas do canal "Nunca vi 1 cientista" não foram condenadas por desmentir uma Fake News, mas sim porque teriam exposto dados do autor da ação, aquele que espalhou Fake News. Ora, ao final, como se diz popularmente, "dá no mesmo". "Dá no mesmo", pois a sentença carece de argumentos aptos a legitimar a condenação das rés, logo, como não houve - e isso será demonstrado 5 linhas adiante - abuso por parte delas seja quanto ao uso da imagem do requerente, seja porque não houve divulgação de dados que já não fossem públicos, elas foram, sim, condenadas por desmentir Fake News. Pois, carente nos autos provas desses dois pontos abordados, o que sustenta o ajuizamento da ação e a condenação foi isso. Embora, obviamente, nem o autor, nem a juíza admitam.
O requerente demandou em juízo pedido de remoção de vídeo do canal "Nunca vi um cientista" e indenização por danos morais. Argumentou que o vídeo, no qual as requeridas desmentiam uma postagem dele em que se dizia que vermes causavam diabete, teriam sido feitas ameaças à sua pessoa, acusação de que ele teria causado a morte de pacientes e que teriam sido expostos indevidamente seus dados e sua imagem. Embora seja óbvio que um profissional da saúde que possua rede social, venda por meio delas seus cursos e possua amplo alcance esteja sujeito a ser refutado, inclusive com a exibição de seu perfil, que já é público, o demandante alegou que não poderia ocorrer emprego de sua imagem. Por qualquer motivo que seja, o autor que faz uso da imagem de terceiros, como pontuado em contestação, entende que, no seu caso, esse uso é ilegítimo. E pior: a magistrada concordou.
Por intermédio da sentença, a juíza do caso condenou as requeridas ao pagamento de R$ 1.000,00 (mil reais) a título de compensação por danos morais e à remoção do vídeo.
Um exame não muito profundo dessa sentença localiza diversos absurdos. Primeiro, a generalidade com que se aborda a limitação à liberdade de expressão. Para não se distinguir muito de diversas decisões, inclusive da cúpula do judiciário nacional, a magistrada pondera o óbvio de que "liberdade de expressão não é um direito absoluto". Alguém duvida? É óbvio que dizer o óbvio (perdão pela repetição) não é desacerto por si só. Mas depois do óbvio, isto é, depois dessa ponderação, deveria suceder algo relacionado ao caso. Algum precedente que se acomodasse aos fatos do processo poderia ser citado. Nada disso! Apenas um precedente do STF que possui aptidão a ser utilizado em qualquer caso. Por falar em precedente, outro equívoco da decisão foi o de não ponderar o precedente invocado pela defesa das rés. Esse precedente, sim, é aplicável ao caso específico. E bem aplicável, pois o julgado do TJ SP versava sobre a impossibilidade de compensação por danos morais em caso de uso de imagem de figura pública. O mote daquela decisão é que, por ser figura pública e de amplo alcance, o requerente daqueles autos não podia se insurgir contra o uso de sua imagem. Acertadíssimo! Entretanto, o precedente nem sequer foi considerado na sentença. Ocorreu clara violação ao artigo 489 do CPC que determina em seu parágrafo primeiro:
§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento (Grifos nossos).
Outra agressão ao artigo mencionado reside no fato de que argumentos relevantes das requeridas que poderiam, se houvesse uma análise justa, influenciar na decisão, não foram considerados, quais sejam os de que no vídeo resposta as demandadas nunca acusaram o nutricionista de ter causado a morte de alguém e que os dados supostamente revelados já eram públicos. Aliás, é mostrado que os dados que o autor alega terem sido divulgados já estavam na sua página. Novamente, sem consideração alguma. Nítido é que tais argumentos, ou melhor, fatos, podem influenciar a conclusão de qualquer julgador, pois constituem ponto nevrálgico da tese exposta na inicial.
Outra crítica que deve ser feita acerca da superficialidade da decisão é que nem sequer foram avaliadas as preliminares sustentadas. Mais um elemento que fragiliza a acuidade e zelo quando da prolação da sentença. Tanto é assim que essa omissão foi objeto de embargos de declaração. As demais omissões deveriam ser embargadas. Embora o resultado fosse previsível, algo como "o juiz não está obrigado a analisar todos os argumentos das partes..." Ou "não há omissão na sentença embargada, pois ela analisou todos os pontos relevantes. " petição de princípio, pois.
Resta, agora, esperar que a sentença tenha seu resultado modificado pela turma em eventual recurso. Do contrário, a ideia do "direito de contar mentiras", ou melhor, espalhar Fake News, ganhará hipertrofia. Recordo-me da sustentação oral do atual ministro do STF, Luís Roberto Barroso, à época advogado, quando defendia a resolução do CNJ que vedava o nepotismo. Barroso disse retoricamente que não havia direito fundamental de contratar parentes. Não deveria existir também direito fundamental a espalhar Fake News, mas parece que há, pois a exposição científica técnica sobre uma Fake News acarretou uma condenação. Logo, parece haver sim esse "direito fundamental", porque sua "violação" levou a uma condenação, na fórmula básica: direito violado, indenização concedida.
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1 TARTUCE, Luiz Flávio. Manual de Direito Civil Volume Único. 5 ed. Método, 2015. p. 438.